"Tenho de proteger o país." Quando o conselheiro de Trump lhe roubou uma carta em nome da Segurança Nacional
Vendeu um milhão de exemplares no dia que chegou às bancas e tornou-se um best-seller em 24 horas. Mas o que faz de "Medo - Trump na Casa Branca" um dos livros do ano vai além do sucesso editorial.
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Foi escrito por Bob Woodward que tem no currículo, para além de dois Pulitzer, o caso Watergate - que acabaria com a destituição de outro Presidente, Richard Nixon. E mostra Donald Trump através dos olhos de quem com ele priva e trabalha. A TSF dá-lhe a ler a pré-publicação do prefácio do livro que chega esta terça-feira a Portugal, pela mão da D. Quixote.
"No princípio do mês de setembro de 2017, o oitavo mês da presidência de Trump, Gary Cohn, o antigo presidente da Goldman Sachs e principal conselheiro económico do presidente na Casa Branca, dirigiu-se cautelosamente para a secretária Resolute* , na Sala Oval. Em 27 anos na Goldman, Cohn - um metro e noventa de altura, careca, arrogante e cheio de autoconfiança - ganhara milhares de milhões para os seus clientes e centenas de milhões para si mesmo. Tinha pedido para ter acesso direto à Sala Oval de Trump sem precisar de autorização, e o presidente concordara. Em cima da secretária estava a minuta de uma carta do presidente dirigida ao presidente da Coreia do Sul, que punha fim ao Acordo de Comércio Livre Coreia do Sul-EUA, conhecido como KORUS. Cohn ficou estupefacto.Há meses que Trump ameaçava denunciar o acordo, que era uma das bases de uma relação económica, uma aliança militar e, mais importante, de operações e recursos ultrassecretos de segurança. Ao abrigo de um tratado que remontava à década de 1950, os Estados Unidos tinham 28 500 efetivos militares norte-americanos estacionados no Sul e operavam os mais secretos e confidenciais programas de acesso especial (SAP - Special Access Programs), que forneciam sofisticadas informações codificadas e recursos militares ultrassecretos. Os mísseis ICBM norte-coreanos já tinham a capacidade de transportar uma ogiva nuclear, talvez até ao território americano. Um míssil lançado da Coreia do Norte demoraria 38 minutos a chegar a Los Angeles. Esses programas permitiam que os Estados Unidos detetassem o lançamento de um ICBM na Coreia do Norte em sete segundos. No Alasca, a capacidade equivalente demorava 15 minutos - um enorme diferencial de tempo. A capacidade de detetar um lançamento em sete segundos daria tempo às Forças Armadas dos Estados Unidos para intercetar um míssil norte-coreano. É, talvez, a operação mais importante e mais secreta do Governo dos Estados Unidos. A presença americana na Coreia do Sul representa a essência da segurança nacional. A denúncia do acordo de comércio KORUS, que a Coreia do Sul considerava essencial para a sua economia, poderia levar a um corte total de relações. Cohn não queria acreditar que o presidente Trump estava disposto a correr o risco de perder vantagens vitais em termos de informações, que eram cruciais para a segurança nacional dos Estados Unidos. Tudo isto teve origem na fúria de Trump ao constatar que os Estados Unidos tinham um défice comercial anual de 18 000 milhões de dólares com a Coreia do Sul e gastavam 3,5 mil milhões de dólares por ano para manter as tropas norte-americanas naquele território. Apesar de relatos quase diários de caos e discórdia na Casa Branca, o público não tinha consciência da verdadeira gravidade da situação interna. Trump estava sempre a mudar de opinião, raramente estava concentrado e tinha um comportamento errático. Ficava mal-humorado, enfurecia-se com coisas grandes ou pequenas, e dizia a respeito do acordo de comércio KORUS: «Vamos denunciar o acordo hoje.»
E agora ali estava a carta, datada de 5 de setembro de 2017, um potencial detonador de uma catástrofe de segurança nacional. Cohn ficou preocupado com a possibilidade de Trump assinar a carta, se a visse. Foi então que retirou a proposta da carta da secretária Resolute e a colocou numa pasta azul onde se lia «GUARDAR». «Roubei-a da secretária dele», contaria mais tarde a um associado. «Não podia deixar que ele a visse. Ele nunca vai ver aquele documento. Tenho de proteger o país.» Na anarquia e desordem da Casa Branca, e da cabeça de Trump, o presidente nunca reparou na carta desaparecida. Habitualmente, Rob Porter, o secretário da Presidência e organizador dos documentos presidenciais, teria sido o responsável pela elaboração de cartas como esta para o presidente sul-coreano. Porém, desta vez, e de forma preocupante, a carta chegara a Trump através de um canal desconhecido. O cargo de secretário da Presidência é um dos cargos discretos, mas cruciais, em qualquer Casa Branca. Durante meses, Porter informara Trump sobre memorandos de decisões e outros documentos presidenciais, incluindo as mais confidenciais autorizações nacionais de segurança para atividades secretas das Forças Armadas e da CIA. Porter, um homem com um metro e noventa e três de altura, muito magro, de 40 anos e educado como mórmon, era um dos «homens cinzentos»: um homem da Administração com pouco brilho, que estudara na Faculdade de Direito de Harvard e fora bolseiro de doutoramento em Oxford com a prestigiada bolsa Rhodes. Mais tarde, Porter descobriria que havia várias cópias da minuta da carta, e Cohn ou ele próprio certificaram-se de que nenhuma ficava em cima da secretária do presidente. Cohn e Porter trabalharam em conjunto para fazer descarrilar aquelas que consideravam as ordens mais impulsivas e perigosas de Trump. Aquele documento, e semelhantes, simplesmente desapareceram. Quando Trump tinha uma minuta na secretária para rever, por vezes Cohn tirava-a e o presidente esquecia o assunto. Todavia, se estivesse na sua secretária, assinava-a. «Não é o que fizemos pelo país», diria Cohn em privado. «É o que o impedimos de fazer.»
Foi nada menos que um golpe de Estado administrativo, uma sabotagem da vontade do presidente dos Estados Unidos e da sua autoridade constitucional. Para além de coordenar decisões políticas e compromissos e organizar os documentos do presidente, Porter disse a um colega: «Um terço do meu trabalho era tentar reagir a algumas das ideias verdadeiramente perigosas que ele tinha e tentar dar-lhe motivos para acreditar que talvez não fossem muito boas.» Outra estratégia era atrasar, procrastinar, citar restrições legais. O advogado Porter disse: «Mas atrasar as coisas ou não lhas transmitir, ou dizer-lhe... com razão, não apenas como uma desculpa... isto tem de ser corrigido, ou precisamos de aperfeiçoar isto, ou não temos o aval da equipa jurídica... isso era 10 vezes mais frequente do que tirar papéis da sua secretária. Era como se estivéssemos a andar continuamente à beira do abismo.» Havia dias ou semanas em que a operação parecia estar sob controlo, e recuavam alguns passos da beira do precipício. «Outras vezes, caíamos no abismo e tínhamos de agir. Era como se estivéssemos sempre a andar no limite.» Muito embora Trump nunca tenha mencionado a carta desaparecida em 5 de setembro, não se esqueceu do que queria fazer em relação ao acordo de comércio. «Houve várias versões daquela carta», contou Porter a um associado. Mais tarde, numa reunião na Sala Oval, o acordo sul-coreano foi alvo de uma acesa discussão. «Não quero saber», disse Trump. «Estou farto destas discussões! Não quero ouvir falar mais nisto. Vamos sair do KORUS.» Começou a ditar uma nova carta que queria enviar. Jared Kushner, o genro do presidente, levou as palavras de Trump a sério. Jared, de 36 anos, era conselheiro sénior da Casa Branca e tinha um porte calmo, quase aristocrático. Estava casado desde 2009 com Ivanka, a filha de Trump. Como era a pessoa que estava sentada mais perto do presidente, Jared começou a escrever o que ele estava a dizer. «Termina a carta e traz-ma para eu assinar», ordenou Trump.
Jared preparava-se para transformar o que o presidente ditara numa nova carta quando Porter teve conhecimento do que estava a acontecer. «Envie-me a minuta», disse-lhe. «Se vamos fazer isto, não pode ser feito em cima do joelho. Temos de redigir a carta de uma forma que não nos embarace.» Kushner mandou-lhe uma cópia em papel da sua minuta. Não serviu para muito. Porter e Cohn tinham a coisa preparada para demonstrar que estavam a fazer o que o presidente pedira. Trump esperava uma resposta imediata. Eles não iriam falar com ele de mãos vazias. A minuta fazia parte do subterfúgio. Numa reunião formal, os assessores que se opunham à saída do KORUS apresentaram todos os tipos de argumentos - os Estados Unidos nunca tinham denunciado um tratado de comércio livre; havia questões legais, questões geopolíticas, questões vitais de segurança nacional e de serviços secretos; a carta não estava pronta. O presidente foi inundado com factos e lógica. «Bem, vamos continuar a trabalhar na carta», disse Trump. «Quero ver a próxima proposta.» Cohn e Porter não prepararam nova proposta de carta. Por isso, não havia nada para mostrar ao presidente. A questão desapareceu temporariamente na neblina da tomada de decisões presidenciais. Trump ocupou-se com outras coisas. Mas a questão do KORUS não desaparecia. Cohn falou com o secretário da Defesa James Mattis, um general da Marinha reformado que era, talvez, a voz mais influente entre os membros da Administração e assessores de Trump. O general Mattis, um veterano de guerra, servira 40 anos nas Forças Armadas. Com um metro e setenta cinco e uma postura muito direita parecia permanentemente cansado da vida. «Estamos a cambalear na borda do precipício», disse Cohn ao secretário da Defesa. «Desta vez, podemos precisar de algum apoio.» Mattis tentava limitar as visitas à Casa Branca e concentrar-se nas questões militares, mas percebendo a urgência da questão veio à Sala Oval. «Senhor presidente», disse, «Kim Jong Un representa a ameaça mais imediata para a nossa segurança nacional. Precisamos da Coreia do Sul como aliada. Pode parecer que o comércio não está relacionado com tudo isto, mas é fundamental. Os recursos militares e de informações americanos na Coreia do Sul são a espinha dorsal da nossa capacidade de nos defendermos da Coreia do Norte. Por favor, não abandone o acordo.» «Porque é que os Estados Unidos estão a pagar 1000 milhões de dólares por ano por um sistema de defesa antimísseis na Coreia do Sul?», perguntou Trump. Estava furioso com o sistema de defesa antimísseis Terminal de Defesa Aérea de Alta Altitude (THAAD - Terminal High Altitude Area Defense) e ameaçara retirá-lo da Coreia do Sul e passá-lo para Portland, no Oregon. «Não estamos a fazer isto pela Coreia do Sul», declarou Mattis. «Estamos a ajudar a Coreia do Sul porque isso nos ajuda.» O presidente pareceu aquiescer, mas apenas momentaneamente. Em 2016, o candidato Trump deu-me a mim e a Bob Costa a sua definição do cargo de presidente: «Acima de tudo, é a segurança da nossa nação. [...] É o número um, dois e três. [...] Tornar as Forças Armadas fortes para não deixarem que coisas más aconteçam ao nosso país a partir do exterior. E, sem dúvida, penso que vai ser sempre a minha preocupação principal dessa definição.»2 A realidade é que em 2017 os Estados Unidos estavam amarrados às palavras e atos de um líder emocionalmente agitado, inconstante e imprevisível. Membros da sua equipa tinham-se unido para bloquear de forma premeditada o que acreditavam serem os impulsos mais perigosos do presidente. Era um esgotamento nervoso do poder executivo da nação mais poderosa do mundo. O que se segue é essa história."
*A secretária foi construída a partir dos destroços do navio britânico HMS Resolute e foi oferecida ao presidente Rutherford B. Hayes pela rainha Vitória em 1880. (N. T.)