"Quando os europeus chegaram, os pretos eram pretos. Depois passaram a negros"

Rogério de Carvalho nasceu em Gabela, Angola, há 81 anos. É encenador de teatro, uma profissão que abraçou no final dos anos 60, já em Portugal, depois de se ter formado em economia.

Tinham-me avisado: ele anda sempre com sacos de livros. E lá estava o saco, de onde tirou um manuseadíssimo Les Nègres, de Jean Genet, que ficou em cima da mesa. É esta a peça que tem no Teatro São Luiz, com um elenco de 13 atores negros como o autor queria. No fim da conversa, enquanto descansava, disse que o teatro é assim: depois de um primeiro contacto, não é possível largá-lo. Foi o que lhe aconteceu a ele, nascido há 81 anos na terra do café, a Gabela, Angola.

Os Negros há de ser sempre atual. Não diz respeito a um contexto específico. Concorda?

Não diz respeito a um contexto específico e é a quarta vez que enceno este texto. Há sempre um momento de uma época em que a peça se torna imprescindível, apetecível para o público. O tema toca-nos, neste momento, por aquilo que se tem passado pelo mundo, e em particula em África, a emigração através do Mediterrâneo. É uma peça que nos toca. Quando estávamos a ensaiar, lembrava-me da imagem daquela criança morta.

Na praia?

Sim, toca-nos profundamente. Por outro lado, o problema da cor, no sentido de negro e preto, está sempre como tema de discussão entre várias comunidades.

Escolheu 13 atores, todos negros. O Jean Genet utiliza a palavra nègre, que e mais pejorativa do que noir, mas em português é o contrário. Há conotações diferentes quando dizemos negros ou pretos. Manteve o título Os Negros.

O tradutor manteve e nós também. Em Portugal a palavra negro passa por não ser pejorativa, mas a palavra correta ao referir-se a uma pessoa preta é mesmo preto. A palavra que identificamos como pura e que se relaciona com as pessoas nascidas em África que tenham a cor preta é a palavra preto. À medida que as pessoas foram adquirindo uma aproximação à cultura ocidental, entraram numa alienação porque perderam as raízes, as ligações aos movimentos culturais. Quando os europeus chegaram a África, os pretos eram os pretos, depois foram-se transformando em negros. Enquanto para os franceses nègre corresponde a uma alienação, a palavra noir não o é. Nègre é um aculturado, que tem uma relação mais próxima com a civilização ocidental, com a cultura ocidental, mesmo no que se refere ao teatro ocidental. Isso significa que houve uma passagem de noir a nègre no sentido da alienação, é um movimento alienatório, uma perda de identidade. Na própria peça, Genet faz essa transposição de um ritual em que se procura aproximar dessa identidade.

Na peça há uma pergunta: "De que cor é o negro?" Na verdade os próprios atores têm todos cores diferentes. Chamarmos negros àquele grupo de pessoas é um pouco absurdo.

São cores diferentes, mas a pureza da cor, se podemos chamar cor, diferente da etnia, encontramos em qualquer situação. A única coisa que distingue é que há uma transferência da discussão. O documentário de Jean Rouch [Les Maîtres Fous, 1955], de onde parte o Genet, é sobre negros que estão na cidade, apanhados pela vida ocidental, e todos os anos fazem um ritual que abrange pessoas de várias classes - doutores, médicos, engenheiros, operários - pessoas que todos os anos vão para o interior, e fazem um ritual, uma busca da identidade.

Estamos a falar dos anos 50 do século passado, tanto o documentário como a peça, escrita em 1958.

Do século passado, pois é...

Tinham-me descrito o Rogério como uma pessoa que anda sempre com sacos cheios de livros. E não é que me apareceu no estúdio com um saco de livros?

Hoje é só um saco com dois livros. Eu frequento muito as livrarias, sou um viciado em leituras. Procuro sempre novidades em francês e em português. O teatro obriga-nos a um trabalho intelectual, de pesquisa. Trabalhar um texto corresponde a um investimento de pesquisa e de aquisição. Ao terminar um espetáculo, imediatamente começamos a preparar outro e os livros têm de ser diferentes, é necessário, é um mínimo de instrumentos culturais, no processo de perceber a mensagem do texto, se podemos falar em mensagem. Utilizamos pouco o sentido de fazer um espetáculo e tentar transmitir uma mensagem muito forte.

Nasceu em Angola e veio para Portugal aos 18 anos.

Tive de começar quase do zero, porque o processo de vida era completamente diferente, o processo de realidade. Tive que ser um aculturado.

Só foi para a escola aos 12 anos. No entanto, aos 18 já tinha completado o curso comercial?

Tive a sorte de ter uma vizinha, uma senhora de Tomar, que reunia crianças com necessidades, não existiam escolas. Ela punha-se a ler textos que achávamos interessantes e que nos atraíam. Formou-se um grupo de crianças das 17:00 até ao jantar.

Que tipo de livros ela lia?

Livros com muitas imagens, por exemplo a Branca de Neve e os Sete Anões, O Feiticeiro de Oz, e sobretudo muitas revistas como o Mosquito. Nós não sabíamos ler. E isso provocou-nos atração para aprender. Apareceu um senhor que dava umas aulas, pagava-se pouco, e nós começámos a frequentar. Com o impulso dado por essa senhora, começámos a ir a casa dele. Quando aprendi a ler, ou quando o senhor achou que eu estava apto para ler, deu-me uma maçã. Naquela altura a vida não era fácil.

O que faziam os seus pais?

Os meus pais vendiam umas coisinhas. Até aos 12 anos eu nunca tinha calçado um sapato. Isso faz parte da vida, da nossa vivência entre nós, andávamos quase todos descalços.

Depois foi para o Huambo onde fez o curso comercial?

Não, depois apareceu lá uma senhora que formou um colégio e dava quase todas as disciplinas. Fizemos uma espécie de ciclo preparatório. Como não havia ali outras possibilidades, o meu pai arranjou uns trocozitos, fartou-se de trabalhar, e fui para o Huambo. Tive sorte.

Foi sozinho?

O meu pai foi-me lá levar, tinha um carrito. Fiquei num colégio de padres Maristas, e fiz lá o curso comercial.

Depois foi então o salto para Lisboa. Foi difícil adaptar-se?

Foi terrível, a solidão. Naquela altura não havia os meios de comunicação de hoje, a facilidade com que as pessoas hoje interagem. Era uma vida económica, tinha de resolver o problema com meia dúzia de patacos que o meu pai mandava.

Tirou o curso de Economia?

Fui trabalhar para um banco, enquanto estudava Economia, porque tive que aliviar essa despesa ao meu pai. Mas antes fiz o curso do Instituto Médio, que era próximo da escola do Conservatório Nacional. Ia estudar para o café Castanheira, e os alunos do Conservatório iam lá também. Acabei por estabelecer contacto com eles.

Foi aí o contacto com o teatro?

Foi. Era uma geração, não me lembro dos nomes, de atores que têm um papel importante.

Quando quis fazer teatro, colocou-se a questão da cor?

A questão antes não me interessava. A cor apareceu como nos Estados Unidos. Hoje os negros americanos fazem cinema e há elencos com brancos, negros, etc. Há uma lógica que explica isso. Mas as peças que se fazia naquela altura tinham personagens tipificadas, logicamente brancas, não fazia sentido um negro a fazer de branco. O mercado estava fechado. Até que alguém me disse: a única possibilidade é ir para a revista. Mas como eu estava a estudar Económicas e não dependia do teatro, não segui esse caminho. O primeiro contacto que tive ficou, e acabei por licenciar-me em Economia, e trabalhei nessa área, fui até para Angola. Mas já tinha começado no teatro aqui em Portugal, um teatro marginal, fora do circuito comercial.

Foi dar aulas de Matemática?

Sim, o trabalho do banco era extenuante e eu não entrava muito com essa profissão. Fui dar aulas na Escola Emídio Navarro, atraí um grupo de alunos e fizemos um núcleo. E tínhamos um diretor que mal percebia o que nós fazíamos.

Estamos a falar de antes do 25 de Abril?

Antes do 25 de Abril, sim. Começámos a fazer espetáculos que a censura proibia no circuito comercial mas dentro da escola não havia essa fiscalização. Vários críticos da época interessaram-se, como o Carlos Porto. Foi um processo gratificante na medida em que a população de Almada e os próprios alunos criaram uma consciência social. Havia movimentações, mas como era dentro da escola não havia problemas, o diretor fazia com que as coisas passassem. Eu entretanto tinha tirado o curso de ator no Conservatório, e depois tirei mais dois anos com professores estrangeiros.

Não chegou a ser ator, começou a ser encenador?

Nem encenador era.

Também trabalhou com o grupo de teatro da Lisnave?

Isso foi mesmo na altura do 25 de Abril. Era uma peça do Brecht, não me lembro qual. Estreámos mas depois deixámos de o fazer porque o elenco agregava elementos de grupos partidários diferentes, e no final do espetáculo discutia-se, e naturalmente as linhas ideológicas eram segundo o partido de cada um.

Esteve, ainda enquanto amador, no Grupo de Intervenção Teatral da Trafaria, que teve bastante atividade.

Sim, fiz três peças mas a que me marcou foi As Três Irmãs de Tchekov, um autor que não era feito em Portugal. O espetáculo teve um certo sucesso, foram lá o Luís Miguel Cintra e o Jorge Silva Melo, com o elenco da Cornucópia, e interessaram-se, quiseram que o fossemos apresentar à Cornucópia. Foi um marco. As pessoas começaram a interessar-se. Naquele tempo havia uma certa crise no teatro. O Carlos Avillez era diretor do Nacional e tinha o São Luiz. Foi aí que me estreei como profissional.

Agora é um regresso, depois de tantas voltas do Teatro São Luiz.

Sim, quase não reconheço as salas. Mas foi ali que fiz a Magdalena de Jaime Salazar Sampaio [1981].

Vamos dar um salto no tempo, que é muito preenchido. A partir daí, tem encenado clássicos desde Gil Vicente, Molière, Marivaux, Strindberg, Cocteau, Pinter, e tem agora Os Negros de Jean Genet com um grupo de atores que não é uma companhia formal. Tudo partiu de uma iniciativa do Teatro Griot, com quem tem trabalhado.

Eu não faço parte da Griot, eles convidaram-me para fazer um workshop e dali nasceu um espetáculo - Faz Escuro nos Olhos - depois um outro de um poeta sul-africano [Breyten Breytenbach, As Confissões Verdadeiras de um Terrorista Albino]. E uma vez que havia a possibilidade de organizar um elenco com pessoas de origem africana, achámos que seria interessante fazer Os Negros de Jean Genet.

São tudo pessoas com raízes em África, mas de países muito diferentes, muitos deles nascidos em Portugal, que trabalham em situações muito diferentes. Como conseguiu organizar-se ali durante dois meses, que foi o tempo - curtíssimo - de preparação da peça? Todos eles disseram que foi muito complicado trabalhar consigo, muito duro mas muito bom.

É fácil entender-se, porque por trás da palavra teatro vaticina-se uma realidade de diversão, de não compromisso e até de profissionalização. O teatro é complexo, porque o ator tem de ter técnicas para poder resolver os problemas que vai encontrar. É preciso encontrar a solução para que ele consiga criar quando está a representar. Um ator é um criador, não é um ilustrador de textos, não é uma pessoa passiva.

Não é um papagaio.

E o espaço não é de falatório. E muitas vezes o conceito que se dá de teatro é facilitado. O hábito de ir ao teatro deve ser desenvolvido para que as pessoas consigam entrar num processo de realidade. Muitas vezes identifica-se o teatro com a realidade, pensa-se que o que se passa no palco é o mesmo que se passa cá fora. Não é bem assim.

Este texto é muito complexo.

É muito complexo porque a ação vai sendo construída à vista do público, não há uma narrativa com princípio, desenvolvimento e fim. Não há um tempo, o tempo às vezes é circular, às vezes é entrecortado, o que se disse há bocado já não corresponde ao que se diz agora. Isso complica a identificação entre o universo do teatro, da representação, e o universo da realidade. O próprio espetáculo joga muito num processo dialético entre o que se passa dentro do espaço de representação, que é uma representação. Eles próprios dizem que estão a fazer um espetáculo para distrair o público - os brancos - de acontecimentos que estão passar-se fora do palco. Mas chega-se à conclusão de que o teatro é um vazio, não há nada, aquilo que se pressupunha ser um cadáver, um caixão e um catafalco afinal era uma armação em cima de duas cadeiras. Muitas vezes o teatro é ilusório, cria a ilusão, é um teatro de ilusão. Aqui não. Aqui cria-se qualquer coisa e a seguir reduz-se a nada aquilo que se criou. E isso às vezes é um bocado difícil, para quem está habituado a representar um drama, uma ilustração ou do texto ou da realidade do nosso quotidiano. Torna-se necessário que o ator reflita sobre o problema do que é o teatro. Porque tudo é feito porque existe a linguagem, a palavra, e a palavra em si é que cria a realidade, enquanto num drama a palavra sustenta as ações que desenvolvem a narrativa. Aqui a palavra quase existe por si só, no jogo subtil de escuta, porque são textos belíssimos, que se ouvem com uma certa poeticidade.

E foram traduzidos por um poeta, Armando Silva Carvalho.

Claro, claro.

Tem um trabalho extraordinário de cenário, do José Manuel Castanheira, e de luz, do Jorge Ribeiro, e de som, do Chullage.

É uma equipa.

E os atores?

São muito generosos.

Não transparecem as tensões, o esforço, parece que tudo flui. É um milagre.

Sim, é um milagre no sentido de criar uma unidade em torno de pessoas diversas, cada um com a sua idiossincrasia, de fontes culturais diferentes. Foi difícil encontrar um ponto comum. Mas o próprio trabalho, a complexidade, o esforço, isso pode traduzir-se numa solidariedade que acompanha o levantamento. Muitas vezes é doloroso... nós fazíamos ensaios e as pessoas estavam cansadas, no calor, nos meses de agosto e setembro. Mas o teatro tem isto a que chama milagre. É o que acontece quando se fazem as coisas com um certo gozo, não um gozo masoquista, mas um prazer de estar a trabalhar à volta de uma coisa que se desconhece. Quando partimos, no primeiro dia de ensaios, não sabemos para onde as coisas vão resultar, é sempre uma incógnita. Essa dúvida está sempre a perseguir-nos e isso às vezes desespera-nos. Cada ensaio é um espaço que se cria para o dia seguinte. Nunca trabalhamos no sentido do esmorecimento. Avisamo-nos a nós próprios de que as coisas não são fáceis, e as pessoas preparam-se para fazer um esforço. Um ator, e neste caso o Grupo Griot, está a viver o nascimento de qualquer coisa. Eu já não vivo a mesma espontaneidade nem a mesma precipitação. Porque as coisas não aparecem de um momento para o outro. Está-se às vezes dias, horas, até que finalmente surge qualquer coisa que nos dá vitalidade para prosseguir e assim sucessivamente. O teatro é um trabalho complexo porque nunca há certezas. Temos, por experiências anteriores, que o caminho será de uma determinada forma. Temos, por companheiros de percurso, que as coisas irão aparecer, mas ainda não apareceram, ainda não estão, e isso às vezes é um bocado desesperante. E temos sempre qualquer coisa à frente que nos aponta - a estreia.

É um limite?

Um limite que não podemos ultrapassar. Mas nós não sofremos. Sentimos o cansaço, a fome, a sede, mas não sofremos.

Isso é uma novidade, porque ouvi dizer que houve alturas em que se esquecia de comer.

Quando era novo. Hoje como bem, tem que ser.

Este é um espetáculo de bom teatro, vale a pena, recomendo.

É muito bom mas é relativo. No teatro hoje encontramos uma saída, amanhã já não sabemos se haverá essa saída, é sempre o imponderável.

Isso também é a vida do espetador.

Sim, é uma realidade nossa, faz parte da sociedade.

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