As práticas, os milhões e os direitos humanos: FIFA violou estatutos ao atribuir Mundial à Arábia Saudita?
Está a crescer a opinião de que a organização reguladora do futebol a nível mundial terá preferido a Arábia Saudita antes de qualquer outra candidatura para organizar o Mundial em 2034. Um antigo responsável da FIFA, ouvido pela TSF, denuncia que "ninguém tem coragem para enfrentar a sua liderança", ao mesmo tempo que as organizações humanitárias temem uma repetição do pior que o Catar mostrou.
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Os milhões que os sauditas têm investido no desporto, em especial no último ano, são fonte de sedução para atrair craques a nível mundial, com natural destaque para o futebol. A longa lista de contratações de clubes sauditas na última janela de transferências conta com nomes como Karim Benzema, Neymar, ou o português mais famoso do planeta: Cristiano Ronaldo.
O segredo - que não o é para ninguém - por detrás deste fenómeno está nos lucros que a Arábia Saudita arrecada com a venda do petróleo, já que o país é o maior exportador mundial deste minério.
Muitos críticos têm afirmado que o regime liderado pelo príncipe herdeiro Mohammed Bin Salman, o responsável pelo projeto, está a fazer sportswashing com tamanho investimento. Significa isto que, através do desporto, promove uma imagem mais positiva do país, quando por detrás está uma intenção de ocultar aspetos mais negativos como o sistemático desrespeito pelos direitos humanos.
De resto, esta é prática recorrente em regimes autocráticos do Médio Oriente, e o exemplo mais próximo, em tempo e geografia, é o Catar, país que recebeu o mundial de futebol no ano passado.
Investigações independentes concluíram que houve corrupção, com denúncias de subornos e compra de votos, na atribuição desse mundial por parte da FIFA. Joseph Blatter, que liderava a instituição em 2010, quando o Catar foi escolhido, admitiu recentemente que tinha sido um "erro" essa atribuição. Sem falar nos escândalos, o antigo responsável reconheceu a culpa, mas sobre uma eventual realização do evento no verão, quando os termómetros atingem valores elevados.
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Organizações de defesa dos direitos humanos em alerta com opção Arábia Saudita
Apesar de o Mundial ter sido no inverno, os estádios foram construídos sob um intenso calor ao longo dos últimos dez anos. Soaram alertas de abusos laborais e falta de condições para os milhares de migrantes que lá trabalharam, vindos de países como Índia, Paquistão ou Nepal. Os números apontam para mais de 6500 mortos.
A Human Rights Watch, organização que vigia o respeito pelos direitos humanos em todo o mundo, alertou na semana passada que o Mundial, ao ser atribuído à Arábia Saudita, pode resultar num cenário muito parecido com o do Catar. A instituição, para além de lembrar que as famílias das vítimas no Catar nunca foram recompensadas, estima que vivam na Arábia Saudita 13,4 milhões de migrantes, que enfrentam diariamente abuso, o roubo do salário por parte dos patrões e o calor.
Há proteções inadequadas contra as altas temperaturas, acrescenta, e a lei do trabalho é de tal forma repressiva que "abandonar um trabalho sem permissão é crime, mesmo para quem tenta escapar ao abuso".
A organização conclui, por isso, que à semelhança do Catar, também no regime saudita há um desrespeito pelos direitos humanos e acusa a instituição que regula o futebol em todo o planeta de não ter aprendido a lição.
Miguel Poiares Maduro, que presidiu ao Comité de governação da FIFA entre 2016 e 2017, diz mesmo que os estatutos da organização estão a ser violados. O antigo responsável adianta que na sequência dos casos de corrupção ao atribuir os mundiais da Rússia em 2018 e do Catar em 2022, a FIFA adotou em 2015 princípios que estão a ser esquecidos, a começar "pela garantia de que os direitos humanos nunca ficariam em causa".
A organização foi mais longe e definiu que "em países onde não há uma tradição positiva em matéria de direitos humanos, haveria a sua promoção".
Não parece ser essa a ambição da Arábia Saudita, até pelo longo historial de desrespeito pelos direitos humanos. A Human Rights Watch lembra as "execuções em massa, a repressão aos direitos das mulheres, o assassinato de centenas de migrantes na fronteira com o Iémen" que o país tem potenciado. A organização acrescenta também que há tortura e longas penas de prisão para os críticos do governo, "relações fora do casamento ou relações homossexuais são crimes", cuja punição pode passar pela morte.
Mas o regime saudita também persegue, denuncia esta organização, quem preza pelo respeito pelos direitos humanos: os ativistas são perseguidos, o que dificulta a realização de um trabalho com segurança. Torna-se, assim, difícil de realizar "uma monitorização independente", requisito essencial, sublinha a Human Rights Watch, para qualquer país organizador do mundial de futebol.
O "estranho timing" do anúncio da candidatura e a atribuição, com a desistência da Austrália
O dia 31 de outubro foi a data final para a entrega de candidaturas. A Austrália retirou-se da corrida para receber a competição, o que deixou a pista livre para a Arábia Saudita. O presidente da FIFA anunciava ao final da noite dessa terça-feira que, para além das localizações dos próximos mundiais já conhecidas, o de 2034 rumava, uma vez mais, ao Médio Oriente, o que era já esperado uma vez que só havia um candidato.
A Arábia Saudita tinha-se posicionado para receber o mundial no início do mês, a 4 de outubro, no mesmo dia em que a FIFA anunciava a data limite para o envio de candidatura.
"A Arábia Saudita apresenta a sua candidatura no dia em que a FIFA diz que abre o prazo e depois dá um prazo de 20 dias para os outros. É óbvio, que era impossível preparar de forma séria uma outra candidatura em tão pouco prazo", afirma Miguel Poiares Maduro.
O antigo responsável da FIFA não fica surpreendido, afirma que é sinal de que as "práticas do passado" estão de regresso: "A FIFA funciona como um cartel político. Ninguém se atreve a contrariar as decisões da Presidência e da sua liderança. Portanto, muito poucas federações teriam a coragem de se candidatar contra aquilo que o Comité Executivo decidiu quanto à Arábia Saudita".
Miguel Poiares Maduro estranha que num tão curto espaço de tempo, o Catar e a Arábia Saudita, países da mesma geografia, recebam dois mundiais, recordando que os sauditas ainda vão receber este ano, no próximo mês, o campeonato do mundo de clubes. "Não deixa de ser extraordinário. Com é possível que a FIFA ignore naturalmente que isto vai ser visto de forma crítica em muitos outros lugares do mundo?"
Para o também ex-ministro, as reformas de 2015, que a FIFA implementou na sequência dos escândalos de corrupção, - que passavam, por exemplo, por "regras mais fortes de transparência" - não deram em nada.
"Foram adotadas não porque que porque aqueles mandam no futebol achassem que realmente a FIFA e a organização do futebol devesse mudar, mas sim porque acharam que tinham de transmitir externamente uma aparência de mudança e de reforma para evitar os riscos de perder patrocínios e de uma intervenção dos governos que era real na altura", explica Poiares Maduro.
O ex-presidente do Comité de regulação da FIFA diz que desde então muito mudou: "A pressão das autoridades públicas e das empresas diminuiu muito porque o custo reputacional voltou a diminuir. Por outro lado, houve uma mudança dos principais financiadores das atividades da FIFA, de empresas que estavam em regimes democráticos para outras partes do globo onde essas empresas e esses países têm muito menos preocupação com a questão dos direitos humanos".
Solução passa por maior regulação?
A Arábia Saudita vai mesmo organizar o mundial como foi anunciado pelo presidente da FIFA. Para além da Human Rights Watch, também a Amnistia Internacional alerta para a importância de a FIFA ter a garantia de que os direitos dos trabalhadores estarão assegurados e a liberdade de expressão também. As organizações lançaram o alerta antes de se saber a localização do Mundial de 2034, mas têm insistido no apelo.
Miguel Poiares Maduro antecipa que nos processos de seleção nada vai mudar, a não ser que o poder político assuma o seu papel e comece a regular as organizações do futebol. "Nenhum cartel, seja económico ou criminoso, se reforma a partir do seu interior", acrescenta.
O antigo responsável alerta para a existência de um conflito de interesses em organizações com a FIFA e a UEFA: "São, ao mesmo tempo, reguladores de um mercado em que são igualmente agentes económicos. Definem quem pode aceder, que clubes podem ser licenciados, que competições é que podem ter lugar"
Poiares Maduro diz que não há nenhuma outra área da sociedade em que isto aconteça e afirma que a União Europeia tem poder suficiente para impor regras.
A saída, antecipa o ex-ministro, pode estar numa decisão favorável do Tribunal de Justiça da União Europeia à criação da Superliga na Europa. Mesmo não sendo a favor desta luz verde, Poiares Maduro afirma que "a decisão poderia induzir o sistema político e o legislador europeu a regular as organizações desportivas. Se tiver esse fator de promoção da regulação das missões desportivas nesse contexto, depois isso [regulação da FIFA] pode vir a acontecer.