O bicampeão europeu José Augusto e a caminhada entre os gigantes do futebol
José Augusto marcou o primeiro golo da seleção portuguesa num campeonato do mundo de futebol. Bicampeão europeu pelo Benfica, foi um dos melhores extremos do futebol dos anos de 1960. Como jogador, treinador e selecionador nacional, conviveu com outros nomes do futebol mundial. De Eusébio a Pelé, passando por Di Stefano, Béla Guttmann ou Otto Glória.
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Já não há balizas no retângulo pelado junto à rua Dom Manuel de Mello, no Barreiro. José Augusto escolheu viver sempre por ali, perto do lugar hoje despido, mas ocupado outrora pelo antigo estádio do Futebol Clube Barreirense. O clube pelo qual deu os primeiros passos no desporto, não só no futebol. O clube onde jogava o seu pai, Alexandre Almeida. Mas aquela praça dá também para outros locais da vida da antiga glória do Benfica. Como a Sociedade Democrática União Barreirense, "Os Franceses", associação que presidiu durante anos, que ainda hoje gosta de visitar, logo ali ao lado do pelado, cruzando o Jardim dos Franceses.
"Ainda me sinto lá, naquele que campo que hoje está devoluto. O campo que cruzo no caminho para casa, à hora de almoço, para chegar mais rapidamente. Atravesso o campo e, tudo aquilo é, para mim, memória de um momento, uma saudade".
Foi naquele campo, o antigo Estádio Dom Manuel de Mello, que José Augusto deu os primeiros passos numa carreira repleta de títulos e de oportunidades. Os seus ídolos de infância jogavam naquele pelado. "Atuavam no Barreirense, claro. Eram Armando Ferreira, que havia sido jogador do Sporting, e ainda "Faia", João Júlio Almeida e Silva. Mas aquele era um futebol vistoso, totalmente diferente do futebol de hoje. Não havia, à época, a dureza que hoje se aponta. Enfim, os tempos mudam, as organizações são hoje muito mais exigentes do que naquele tempo. Nessa altura, havia respeito pelo adversário, considero que hoje não é tanto assim. Mas algumas equipas ainda o fazem, exorbitam a qualidade de campo para o espectador".
José Augusto viveu numa época de futebol vistoso, e foi um dos mais prestigiados protagonistas. A estreia com a equipa principal chegou cedo no percurso de José Augusto. "Contra o Caldas. Ganhamos 1-0. Era uma honra jogar num clube como o Barreirense, onde o meu pai havia sido um bom jogador. Mas eu, quando era criança, tinha o desejo de jogar basquetebol, e joguei ainda nos juniores do Barreirense. Isto até que um dia, um dirigente me disse não,'não pode ser'". José Augusto teve de escolher naquele momento entre o futebol e o basquetebol.
A anatomia de golos históricos e o encontro com Di Stefano
Ficou do percurso juvenil de José Augusto, como jogador de basquetebol do Barreirense, a apetência pelo salto. "Eu não era dos mais altos, tinha um metro e 73 centímetros, não era o [José] Torres (risos)". Recordo-me que no primeiro jogo com o Sporting da minha carreira, marquei três golos - mas só dois contaram porque o árbitro me invalidou o terceiro. Ainda hoje guardo a fotografia daquele momento, um golo de cabeça, o terceiro, ao guarda-redes Carlos Gomes".
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"Tinha essa apetência para marcar de cabeça, algo que vinha do basquetebol, relacionado com o tempo de salto. Não tinha a altura de outros, mas tinha impulsão, tinha essa noção de que conseguia saltar pela forma como ia para o cesto. E também era rápido. Corria os 100 metros em 10,03 segundos. Houve um dia em que me queriam levar para o atletismo. Respondi, "qual atletismo qual quê!" Afinal, era mais divertido com a bola".
Eram atributos que faziam de José Augusto um jovem avançado temível no Barreirense. "Comecei como avançado centro. Mas não era aquele avançado centro que jogava em cunha [entre os centrais]. Jogava como Alfredo Di Stefano, tentava imitá-lo porque o vi jogar algumas vezes. Era um avançado centro que vinha ao meio campo, tentava organizar o jogo. Eu tentei fazer o mesmo, seguir o que fazia Di Stefano".
O encontro como o ídolo aconteceu meses mais tarde, num jogo de preparação do Barreirense. "Em Espanha. Foi um amigo que tive no desporto. Isto porque ele teve curiosidade, após o primeiro jogo, de falar comigo, porque viu que eu fazia aquilo que ele também fazia". Alfredo Di Stefano era a referência da equipa que dominava o futebol do velho continente, talvez o primeiro ídolo de dimensão global. Ajudara o Real Madrid a conquistar as cinco primeiras edições da Taça dos Campeões, a atual Liga dos Campeões.
Na outra margem do rio Tejo, onde moram Coluna, Águas ou Santana
Em 1959, José Augusto trocou o FC Barreirense pelo Sport Lisboa e Benfica. No balneário da equipa estavam nomes consagrados como José Águas, Mário Coluna, Santana ou Cavém. "Eu já estava à vontade quando cheguei ao Benfica. Isto porque já tinha tido alguns dos jogadores como colegas, tanto nos juniores como nos seniores. Os treinos e estágios da seleção libertaram-me de todos os receios. Já era um jogador com todos os predicados", explica José Augusto sobre a escolha dos encarnados para continuar a carreira após a saída do Barreirense.
"Tive, na altura, alguém do Futebol Clube do Porto que me falou, mas também do Sporting - era Armando Ferreira. Mas respondi-lhes: não, eu vou para o Benfica porque eles fizeram uma festa de homenagem ao meu pai no Barreiro. A receita desse jogo deu para o meu pai viver uns anos, já que estava doente, com tuberculose". Essa tarde de futebol, a homenagem a Alexandre Almeida no Barreira, ajudou José Augusto a traçar o destino que o levaria ao topo da Europa.
Béla Guttmann e a conquista da Europa e os treinadores estrangeiros que o Benfica deve manter
A chegada de José Augusto à Luz coincide com o primeiro ano de Béla Guttmann, vindo do Futebol Clube do Porto. "Béla Guttmann tinha uma relação espetacular com os jogadores. Era alguém com quem se podia falar. Não se zangava com ninguém. Quando tinha de chamar a atenção dizia-nos, "não faças isso, não faças aquilo". Um tom assertivo, gestos secos que acompanhavam as palavras dirigidas aos atletas.
Mas a presença do técnico húngaro foi decisiva para elevar a qualidade da equipa de José Augusto, Mário Coluna ou José Águas. "Os treinos eram, fundamentalmente, treinos de velocidade. Só entravam-mos no treino individual com bola depois de passar pelo processo de corrida. Aquele era um trabalho diferente do que havíamos tido. Mas era também alguém com grande lucidez. O que nos dizia sobre o jogo era aquilo que, normalmente, acontecia".
"Tive sempre bons treinadores. Béla Guttmann. [Fernando] Riera, um senhor do futebol. [Elek] Schwartz também. Ainda hoje acredito que o Benfica deve ter sempre treinadores estrangeiros para melhorar as suas condições. Foi assim no passado, será assim no futuro. Isto não tem nada que ver com o que são os treinadores portugueses - até porque eu fui treinador português no Benfica. Eu sempre apliquei aquilo que aprendi". Essa inovação trazida por vários treinadores vindos de outras paragens ajudou a preparar José Augusto para uma carreira futura no banco.
Com Béla Guttmann estava a desenhar-se a primeira conquista europeia dos encarnados, o título da Taça dos Campeões de 1960/1961. No percurso até à final, fica na memória de José Augusto a exibição histórica na Dinamarca diante do Aarhus. "No final fui levado aos ombros, por crianças, jovens de 10, 12 anos, não mais. Isso ficou marcado em mim". O resultado de 1-4 para as águias tinha o carimbo de José Augusto com dois golos ainda na primeira parte.
Chamaram-lhe "Garrincha português", após aquele jogo na Dinamarca, o avançado que, feito extremo direito na Luz, ajudou as águias à conquista do primeiro título europeu na final de Berna, diante do Barcelona (3-2) de Kocsis, Czibor, Kubala e "Luisito" Suárez. Mas algo mudou na equipa? "Não. Já estávamos habituados às conquistas. O Benfica já tinha vencido a Taça Latina". A mudança para os anos seguintes já morava na casa da águia.
Eusébio da Silva Ferreira. A aparição de um mito
O Benfica já era campeão europeu quando emerge a figura de Eusébio da Silva Ferreira. José Augusto, um dos craques da equipa, recorda a chegada do menino. "Na primeira semana de trabalho a parte física. Segunda semana, método de treino, treino individual, treino de velocidade. E aí o gajo [Eusébio] ganhava sempre. Eu, que era o mais veloz da equipa, ficava sempre a uma distância de um estender de braço. Para mim foi o melhor jogador português que conheci. Era imparável. Os pontapés que dava na bola, aquela posição do corpo, a força que tinha dentro dele, era do outro mundo".
Dentro dele, de Eusébio, morava uma capacidade indomável que surpreendia os companheiros de equipa. Eusébio marcou dois golos na segunda final consecutiva das águias na Taça dos Campeões Europeus. O Benfica derrotou o Real Madrid (5-3) de Di Stefano, Ferenc Puskas e Gento, com Eusébio e um jovem António Simões no corredor esquerdo, lado aposto a José Augusto.
José Augusto jogou de "águia ao peito" durante 11 épocas, conquistou duas Taças dos Clubes Campeões Europeus, oito Campeonatos Nacionais, e três Taças de Portugal e três Taças de Honra. Em 479 jogos marcou 207 golos.
O caminho europeu do Benfica fez-se contra outras grandes equipas. O Ajax de Johan Cruyff "um grande jogador", que travou uma batalha com José Neto, explica José Augusto. Mas o jogador que viria a ser treinador e selecionador sempre apreciou o que faziam os húngaros. "Jogadores técnicos, tinham uma forma de jogar da qual gostava. Eram mais ao meu sabor".
1966. O primeiro golo português num mundial na melhor classificação de sempre
No primeiro mundial de futebol da era da televisão, o primeiro golo português escapou à emissão da RTP, que nem havia começado quando José Augusto marcou de cabeça. Estavam decorridos apenas dois minutos no jogo quando, no primeiro pontapé de canto da partida, o camisola "12" de Portugal marcou o primeiro golo diante da Hungria (3-1).
"Esses golos estão, ainda hoje, dentro de mim", recorda José Augusto, hoje com 85 anos. "Fiz muitos golos de cabeça, tudo porque tinha grande impulsão. Mas são 274 golos na carreira, mesmo jogando como extremo. Isto sem contar os golos do Barreirense", lembra.
Aquela aventura mundial de 1966, em Inglaterra, começava com uma fase de grupos com Brasil de Pelé, a Hungria - que José Augusto admirava pelos jogadores mas também pela influência de Béla Guttmann -, e a Bulgária.
"Foi um mundial extraordinário. Pergunta se nos desvalorizam? Não, a partir do primeiro jogo ficamos logo identificados pelos nossos adversários. Logo no jogo com a Hungria - de grande capacidade técnica, mas aos quais faltava a tática -, ganhamos (3-1, com dois golos de José Augusto) com um sistema que cobria o meio campo". Mérito de Otto Glória, "bom treinador, e, sobretudo, bom homem".
No primeiro pontapé de canto, do primeiro mundial, o primeiro golo da seleção portuguesa, um golpe de cabeça inesquecível de José Augusto, que festejou abraçado a Eusébio. À passagem pelo meio-campo, Mário Coluna saudou José Augusto com um aperto de mão. Aquele era apenas o primeiro capítulo da melhor participação portuguesa num campeonato do mundo.
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"Deixa-me jogar". O pedido do amigo Edson, Pelé para o mundo
Quebrada a oposição da Bulgária (3-0), seguia-se o Brasil de Pelé. "Era a final da primeira fase, mas não tivemos receio algum. Mandamos com um gajo para marcar o Pelé. Ele só dizia assim "homem, me deixa jogar! Me deixa jogar!". Era eu quem tinha ido marcar", afiança José Augusto.
"Disse ao treinador [Otto Glória] que Pelé não ia tocar na bola. Marcava o perto, a distância era esta (estende a palma da mão, braço dobrado), onde ele ia eu também ia. 'O que você está fazendo?', perguntava-me Pelé. Tínhamos uma relação próxima de tal forma que hoje somos amigos. O Edson (...) que conheci numa das seleções mundiais em que joguei", recorda. Portugal venceu o Brasil por 3-1 e mandou para casa a equipa campeã do mundo em 1958 e 1962.
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Otto Glória gozava da confiança dos jogadores. O técnico brasileiro mantinha uma relação próxima e cordial, explica José Augusto. "Otto Glória tinha uma bagagem extraordinária. Tinha os jogadores na mão, com uma boa relação com qualquer um de nós. Quando havia problema dizia 'vou falar grosso!'. Mas para além de ser bom homem, era também um bom treinador", explica o antigo internacional português.
A intervenção do técnico foi decisiva ao intervalo do encontro diante da Coreia do Norte, nos quartos-de-final da competição. Uma seleção desconhecida mas que surpreendeu Portugal logo a partir do primeiro minuto. "Os gajos chegaram a 3-0. Nós fizemos 3-2, 3-3. As posições dos jogadores variam consoante os movimentos desenhados por eles nos treinos. Ficamos surpreendidos"
Repetiu-se a fórmula que travou Pelé. José Augusto lembra o gosto que teve na abordagem ao adversário, na forma como perseguiu o opositor mais perigoso. "Mas eu vejo que era o capitão dos gajos que mexia com aquilo. Fui marcá-lo. Quando os travamos foi um desacerto total. Ainda marquei nesse jogo. E depois aparece Eusébio. Ficou 5-3".
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Para além dos quatro golos lendários de Eusébio, José Augusto voltou a apontar um golo de cabeça diante da Coreia do Norte. A história das semifinais diante da equipa da casa, a Inglaterra, fica marcada pela exibição do árbitro, refere José Augusto. "Um bom árbitro, [o francês, Pierre Schwinté], mas num jogo em Inglaterra, já se sabe", diz, encolhendo os ombros. A mudança do palco do encontro de Liverpool para Wembley também não ajudou.
Restou a Portugal jogar pelo terceiro lugar - que, até 2022, garante a melhor participação portuguesa de sempre num Campeonato do Mundo de Futebol -, diante da União Soviética, com um gigante de luvas negras na baliza.
"Lev Yashin era o melhor guarda-redes do mundo. Havia muitos outros muito bons, mas, ele era o melhor. No entanto, ainda lhe mandei lá uma boladas (risos)". O pontapé de Eusébio de grande penalidade era indefensável [1-0 aos 12 minutos], motivou orgulho entre a seleção nacional. A potência do pantera negra havia superado a muralha de Yashin. Portugal levava a medalha com uma assistência de José Augusto para Torres no segundo logo (2-1).
O fim do percurso como jogador no Benfica fez-se ainda com algumas das referências da década na equipa. José Augusto foi nomeado treinador ainda com Eusébio em campo. Mais tarde, haveria de ser ainda selecionador nacional de futebol. "A equipa estava feita. Tínhamos os jogadores do Benfica, do Sporting, todos se conheciam. O meu trabalho não era difícil". Faltava tempo para organizar a seleção em torno de um sistema, explica José Augusto. "Chegaram a ser nove do Benfica e dois do Sporting. Tinha de agarrar nessa situação".
Sempre o Barreiro, a outra margem
Mas nunca esqueceu as raízes. "Sempre quis dar um contributo ao Barreiro. Fui presidente da Sociedade Democrática União Barreirense, conhecida como "Os Franceses" por 30 anos. Ajudei a construir a escolha que ainda hoje têm".
"É difícil encontrar um currículo como o meu no futebol", explica.
Essa ligação ao Barreiro valeu-lhe um momento curioso. "Joguei por todas as seleções, incluindo a seleção militar da NATO, num torneio em que fomos campeões. Recordo-me que fomos chamados por Salazar após essa conquista. Era já a segunda vez para mim, porque já lá tinha ido com o Benfica. Dessa primeira vez, ao passar por mim e ser-lhe apresentado, fiz questão de mencionar que me chamava José Augusto e que vinha do Barreiro".
As palavras de José Augusto ficaram na memória de Salazar. "O Barreiro era uma terra de oposição. Por isso, na segunda ocasião em que fui com a equipa militar até Salazar, ele passou por fulano, beltrano, mas, ao passar por mim, disse ao delegado da seleção. "Este eu já conheço, é José Augusto, do Barreiro". No final, o diretor da federação perguntou-me porque me conhecia Salazar, se já tinha estado preso (risos)".
