Como Abel Ferreira conquistou o Palmeiras. Os treinos e a harmonia do treinador que "soube ouvir"
O treinador português não foi a primeira opção do Palmeiras para substituir Vanderlei Luxemburgo, mas Abel Ferreira soube conquistar a direção do clube. Conhecia a história do Palmeiras, os treinadores estrangeiros, os jogadores do clube de São Paulo. Depois conquistou os adeptos e convenceu os jogadores. Será que a "3ª Academia" tem um português como protagonista?
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Após o apito final em São Paulo, o abraço entre guarda-redes e treinador tinha o significado de dever cumprido, de agradecimento, explicava ainda ofegante gigante Weverton Silva, guardião do Palmeiras. A jogar em casa nas meias-finais da Taça Libertadores, o clube de Abel Ferreira perdeu por 2-0 frente aos argentinos do River Plate. Objetivo daquela partida era sobreviver, tirar o peso dos ombros: o Palmeiras vencera por 3-0 na Argentina, sofreu cedo na segunda mão, voltou a sofrer antes do intervalo. Por isso, logo após o apito do derradeiro apito, Weverton apertou o português Abel Ferreira contra o peito, em pleno relvado.
"Eu não quero mesmo ser treinador. Não é fácil a vida de treinador. O cara [Abel Ferreira] não deve dormir bem, deve ficar pensando no jogo, pensado em quem vai jogar, pensando no adversário. Digo isso pensando que ele está lá fora, não pode fazer nada. Só nós, que estamos lá dentro, ainda podemos fazer algo, um lance ou uma defesa", explicava o guarda-redes à televisão do Palmeiras, logo após a partida.
Paulo Vinícius Coelho, jornalista conhecido no Brasil como PVC, que trabalha entre outros para o grupo Globo, na SporTV, colunista na Folha de São Paulo e da rádio CBN, tem acompanhado de perto o percurso do treinador português. Das conversas que mantém com dirigentes e jogadores, PVC destaca o ambiente criado em torno da equipa pelo treinador português. "Os jogadores gostam muito do Abel, ele conquistou os atletas criando no balneário um ambiente de harmonia", explica.
A mensagem transmitida pelo novo treinador nas primeiras semanas tinha como objetivo recuperar o grupo de trabalho, os jogadores alheados, desacreditados pela dificuldade em manter o clube no topo da classificação. "Estamos aqui todos juntos a trabalhar, todos juntos, porque precisamos de representar bem esta camisola. Lutamos para ganhar, se perdermos amanhã estamos cá de novo para lutar pela próxima vitória. Era esse o discurso no início", sublinha o jornalista, sobre as conversas que manteve nos últimos meses com atletas do Palmeiras.
A mensagem e a mudança de um treinador que soube ouvir
Os jogadores encontraram no técnico português alguém que, explica PVC, os tentou compreender desde o primeiro dia no clube. "Do ponto de vista técnico Abel teve uma grande humildade. Ele foi falar com o Andrey Lopes [auxiliar técnico, adjunto que esteve como treinador interino antes da chegada de Abel Ferreira]. Andrey tinha ganho quatro jogos consecutivos, Abel Ferreira falou com ele sobre isso", explica o repórter. Era necessário mudar a forma de jogar da equipa, a mentalidade, embora com pouco tempo para treinar entre viagens e jogos consecutivos.
"Os jogadores gostam muito do Abel, ele conquistou os atletas criando no balneário um ambiente de harmonia", PVC
"Abel percebeu tudo o que aconteceu de errado com Scolari, com Mano Menezes, com Wanderley Luxemburgo, sabia tudo o que os jogadores não gostavam". O histórico recente do clube tinha ditado a demissão de três treinadores durante o último ano, alguns dos atletas estavam desacreditados, tanto pela estrutura técnica como pelos adeptos, conta PVC. O discurso de Abel Ferreira tinha de agregar novamente o grupo, e devia coincidir com uma forma de jogar que tirasse partido do melhor que os jogadores sabiam fazer, existindo pouco tempo para treinar e uma enorme sequência de jogos.
A forma de jogar da equipa tinha de coincidir com essa mensagem passada para o balneário. "Abel Ferreira montou uma equipa com marcação no bloco intermediário, bola recuperada para utilizar os jogadores muito velozes que tem. Dos 44 golos marcados, dez são de contragolpe. Nesse estilo, bola recuperada na intermediária, e rapidez para definir a jogada. Não é uma equipa de troca de passes, não é o Barcelona do Guardiola", explica PVC. Os jogadores tinham finalmente uma ideia de jogo com a qual se sentiam cómodos.
O ambiente no balneário mudou com os resultados. "Rony era um jogador desacreditado, ele que tinha sido contratado por seis milhões de euros no início do ano e que não conseguia jogar. Com Abel o Palmeiras marcou 44 golos. Dois jogadores tiveram participação em 12 ações de golo: Raphael Veiga [10 golos e dois passes para golo] e Rony (sete golos e cinco passes para golo], e eles eram jogadores desacreditados", acrescenta o jornalista.
A sombra de Jesus no Brasil e a segunda escolha
Ainda antes de conhecer pessoalmente os jogadores, Abel Ferreira convenceu a direção do clube de São Paulo no diagnóstico que fez à equipa. O treinador foi identificado pelo departamento de análise de desempenho e análise de mercado do Palmeiras, explica o repórter Thiago Ferrei, jornalista do site brasileiro UOL. Após uma conversa direta de Abel Ferreira com o vice-presidente Alexandre Zanotta, um primeiro encontro, seguiu-se uma reunião com toda a direção do Palmeiras que convenceu os dirigentes.
"O exemplo de Jorge Jesus não teve peso direto na escolha", explica Thiago Ferri. "O Palmeiras entendeu que precisava de um treinador fora do Brasil", e Abel Ferreira agradou aos dirigentes. A primeira opção foi Miguel Ángel Ramírez, treinador do Independente del Valle. Um técnico espanhol que impressionava nas provas sul-americanas, com um estilo de jogo atraente, um nome que já anteriormente tinha sido ponderado pela direção do clube de São Paulo. Meses antes, também o atual treinador do Atlético Mineiro Jorge Sampaoli foi discutido, mas as negociações com o argentino saíram frustradas devido à postura do técnico durante o processo.
Abel Ferreira era treinador do PAOK, clube de Salónica, Grécia. Tinha deixado pelo caminho o Benfica de Jorge Jesus na 3ª pré-eliminatória de acesso à Liga dos Campeões. "Assisti a esse jogo aqui na ESPN do Brasil, Mas ele não foi contratado por ter eliminado Jorge Jesus. Houve dedo de agentes internacionais. Por exemplo, Quique Sétien foi oferecido ao Palmeiras por um agente internacional que trabalhou com o Barcelona. Esta contratação teve o dedo de Giuliano Bertolucci, por intervenção de Jorge Macedo, que trabalhou já com Jorge Jesus. Ele avalizou a contratação de Abel. A partir daí o Palmeiras estudou esta possibilidade", explica PVC.
Nem o facto de Abel Ferreira ser português teve interferência direta na escolha. "A direção queria um treinador internacional", lembra PVC. Por isso a primeira escolha recaia, naquele momento, em Miguel Ángel Ramírez. "Muita gente ignorou algo que Jorge Jesus disse enquanto estava no Flamengo. Ele explicou que não era bom treinador por ser português, mas antes porque, simplesmente, ele Jorge Jesus, era bom treinador. Seria bom treinador no Brasil, em Portugal ou na China", comenta PVC. Jesus ajudou os dirigentes brasileiros a alargar horizontes, provou que alguém vindo de outro contexto se pode adaptar.
A história do clube e o perfil dos jogadores na ponta da língua
A situação do Palmeiras era estável quando da escolha de Abel Ferreira, mas o plantel tinha sofrido um ajuste. Devido à pandemia, o clube teve de apertar o cinto, lembra PVC. "O Palmeiras diminuiu 25% da folha de vencimentos do plantel", estabilizando a dívida do clube nos 500 milhões de reais no início da temporada. "Uma reforma do elenco com Wanderley Luxemburgo, campeão paulista, contra o Corinthians, lançando os miúdos Gabriel Veron - que já tinha jogado no ano passado, Gabriel Menino e Patrick de Paula", lembra PVC.
Os nomes dos jogadores jovens e o perfil do restante plantel estavam já na cabeça de Abel Ferreira na primeira reunião que teve com dirigentes do Palmeiras. Fontes próximas do treinador garantem que Abel ficou impressionado durante o período que dedicou à análise do plantel do Palmeiras. Para além dos nomes que já conhecia, jogadores como Filipe Melo, Luiz Adriano ou Lucas Lima - em tempos associado ao Futebol Clube do Porto -, o treinador português descobriu uma nova fornada de talento vindo da academia do clube paulista.
"Abel falou sobre a história do Palmeiras. Isso fez a diferença também na primeira conferência de impresa como treinador, depois da qual foi muitíssimo elogiado pela crítica. Falou dos técnicos estrangeiros na história do Palmeiras, no estilo de jogo do clube no passado - o estilo "academia. As pessoas arregalaram os olhos e disseram, "quem é esse?"", PVC.
Após o primeiro encontro com um dos dirigentes do Palmeiras, Seguiu-se um segundo encontro, explica Thiago Ferri, onde a direção do Palmeiras, presente em peso, ficou em definitivo convencida da opção. Abel Ferreira não só mostrou conhecimento da equipa como da história do clube, da passagem de treinadores estrangeiros, dos objetivos do emblema.
O discurso que impressionou os dirigentes nas reuniões anteriores à contratação foi semelhante ao apresentado pelo treinador na primeira conferência de imprensa do "Verdão". "Abel falou, inclusive, sobre a história do Palmeiras. Isso fez a diferença também na primeira conferência de imprensa do Palmeiras, que foi muitíssimo elogiado pela crítica. Falou dos técnicos estrangeiros na história do Palmeiras, no estilo de jogo do clube no passado - o estilo "academia" [apelido dado às equipas do Palmeiras das décadas de 1960 e 1970]. As pessoas arregalaram os olhos e disseram, "quem é esse"".
O incrível mês de janeiro. Dez jogos em 24 dias
"Abel chegou ao balneário e falou: "eu sei que vamos ganhar, mas também sei que vamos empatar e vamos perder. Vou ser elogiado quando ganharmos, vou ser criticado quando perdermos, o futebol é assim". Essa tranquilidade dele conquistou muito os jogadores", aponta PVC. As eliminatórias ultrapassadas na Taça dos Libertadores e na Copa do Brasil deixaram o Palmeiras na final da competição interna - jogos com o Grémio em fevereiro -, e nas meias-finais da Libertadores contra o River Plate, ao virar do novo ano.
O calendário de janeiro preocupava os dirigentes e equipa técnica. Embora nos lugares cimeiros do campeonato brasileiro, a distância para o primeiro classificado ditou uma opção pela gestão nas provas internas. Dez jogos em apenas um mês, sendo o último a possível final da Libertadores no Rio de Janeiro.
"Os jogadores do Palmeiras dizem que Abel é um treinador muito focado nos detalhes. Tanto na hora de atacar como na hora de defender, ou na bola parada, os jogadores frisam que Abel Ferreira estuda muito bem os adversários e prepara muito os jogos. Tem muito cuidado com o lado tático", Thiago Ferri
PVC explica que ao olhar para o calendário, sobretudo depois da vitória categórica na Argentina frente ao River (0-3) na primeira mão das meias-finais da prova continental, os responsáveis do Palmeiras entenderam que existiam duas datas cruciais para a gestão do balneário. O jogo em casa contra o eterno rival Corinthians, para o campeonato, e a segunda mão, no Allianz Park, casa do Palmeiras, para a segunda mão das meias-finais da Libertadores.
Calendário de janeiro de 2021 do Palmeiras
Quarta, 6 de janeiro - River 0-3 Palmeiras (Libertadores)
Sábado, 9 de janeiro - Sport 0-1 Palmeiras ((Campeonato)
Quarta, 13 de janeiro - Palmeiras 0-2 River (Libertadores)
Sábado, 16 de janeiro - Palmeiras 1-1 Grémio (Campeonato)
Segunda, 18 de janeiro - Palmeiras 4-0 Corinthians (Campeonato)
Quinta, 21 de janeiro - Flamengo 2-0 Palmeiras (Campeonato)
Domingo, 24 de janeiro - Ceará 2-1 Flamengo (Campeonato)
Terça, 26 de janeiro - Palmeiras 1-1 Vasco (Campeonato)
Sábado, 30 de janeiro - Palmeiras vs Santos (Libertadores)
Do discurso ao método. O dia com dois treinos e um jogo
Na eliminatória com o River, a imprensa brasileira destacava o envolvimento de Abel Ferreira na preparação dos dois jogos. O treinador comprou e leu "El Pizarron de Gallardo: Así armó un River ganador", livro sobre o técnico rival, escrito por Christian Leblebidjian. Juntou a isso um perfil pormenorizado de cada jogador do clube argentino, bem como aos últimos jogos dos argentinos.
"Os jogadores do Palmeiras dizem que Abel é um treinador muito focado nos detalhes. Tanto na hora de atacar como na hora de defender, ou na bola parada, os jogadores frisam que Abel Ferreira estuda muito bem os adversários e prepara muito os jogos. Tem muito cuidado com o lado tático", aponta Thiago Ferri.
Depois da derrota e do jogo sofrido com o River Plate em casa (0-2), O clássico contra o Corinthians. O Palmeiras ganhou 4-0 jogando em casa e jogadores, corpo técnico e dirigentes devem ter pensado finalmente, "tirei o peso das minhas costas"", explica PVC. O objetivo estava cumprido, havia agora tempo e margem de manobra para gerir a equipa até à final de dia 30 de janeiro.
"Na manhã ele treinou com a equipa que ia jogar à noite [frente ao Vasco da Gama], e à tarde com a equipa que ia jogar no sábado [na final da Libertadores]. Depois Abel foi para o jogo à noite", PVC sobre a última semana antes do jogo com o Santos FC
Os treinos em dia de jogo é uma das mudanças notadas por Thiago Ferri. "Como Jorge Jesus fazia também no Flamengo. Por exemplo, o Palmeiras treinou na manhã do jogo com o Corinthians que ganhou por 4-0. Foi uma mudança de rotinas bem aceite pelos jogadores", explica o repórter.
Na última semana de preparação para a final da Libertadores, a rotina escolhida para o dia de jogo com o Vasco da Gama explica bem o tipo de trabalho que o treinador português levou para o Brasil. "Na manhã ele treinou com a equipa que ia jogar à noite [frente ao Vasco da Gama], e à tarde com a equipa que ia jogar no sábado [na final da Libertadores]. Depois Abel foi para o jogo à noite", acrescenta PVC sobre as rotinas na última semana.
Em torno da equipa há um clima de festa crescente. "O Palmeiras tem uma conquista internacional, em 1951 a Copa Rio que a imprensa brasileira chamava de "Campeão do Mundo", lembra PVC. "Uma geração enorme cresceu dizendo que eram campeões do mundo (risos) Até que chegaram, de facto, os campeonatos do mundo da FIFA [Taça Intercontinental e Mundial de Clubes]. Essa Libertadores vai dar esperança aos adeptos de ter esse mundial, de chegar ao mundial de clubes".
Para chegar à tão desejada o Palmeiras tem de bater um dos rivais da cidade de São Paulo, o Santos, clube de Pelé, que nas décadas de 1960 e 1970 travou duelos míticos no futebol brasileiro com o Palmeiras da "Academia", o apelido dado pelos adeptos a essas equipas, com estilo de jogo vincado. Se vencer, Abel Ferreira repete o feito de Luiz Filipe Scolari, treinador que conquistou a única Taça Libertadores da história do Palmeiras, em 1999.
