Crews portuguesas que se qualificaram para mundiais de hip-hop sem dinheiro para chegar aos EUA
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"Cinco, seis, sete, oito" e começam a dançar. O corpo mexe-se e o coração sente. É uma mistura entre "sonho", "desejo" e uma "gigante frustração". Este é o cenário que se vive nas salas de treino das crews portuguesas que conquistaram os palcos da Maia, no Porto, e que se apuraram para o maior campeonato de danças urbanas do mundo. Felizes, mas sem dinheiro: terá Portugal alguma equipa a representar o país nos Estados Unidos?
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Francisco Dias tem 18 anos e compete há oito, mas em 2023 experienciou um momento que nunca irá esquecer: "Somos campeões nacionais". O bailarino é aluno da R&D, em Aveiro, e competiu este ano na categoria varsity com a R&D Gang, que conquistou o 1.º lugar. Agora, resta-lhe a ambição de conseguir arranjar os 40 mil euros necessários "para ir lá fora".
O sonho é partilhado também com os bailarinos da Just Dance School (JDS), no Porto, que ficaram em 2.º lugar na categoria de JV MegaCrew. No entanto, para estes, é garantido que o desejo ficou já adiado por mais um ano.
A Vitória e o Henrique têm 16 e 19 anos, respetivamente. Competem, dão aulas, e entre o "está mal" e o "vamos recomeçar" contaram à TSF que estão "muito felizes" pelo lugar que alcançaram no Hip Hop International Portugal (HHI). Mas quando o muito bom começa a saber a pouco? A vitória torna-se um "sentimento agridoce", pois já não é a primeira vez que os atletas fazem parte do "top 5" e não dão o próximo passo.
"A dificuldade em conseguir angariar o orçamento necessário para levar 20 atletas [aos EUA] é desgastante", disse o treinador e fundador da JDS. Fernando Lopes, também conhecido por 'Nando', garantiu que está a tentar arranjar financiamento através da organização de eventos e estabelecimento de parcerias, mas que jamais será possível em "três, quatro meses" alcançar esse objetivo.
Em Aveiro, o plano de ir aos Estados Unidos ainda está em marcha e a equipa está a recolher fundos online. Mariana Curado, fundadora e diretora artística da Academia R&D, recordou os momentos de criança no mundo da dança e disse que são "momentos assim, completamente diferentes do quotidiano" que guarda consigo. "É uma experiência única (...) e eles merecem", sublinhou.
"Vamos, é para ir. O pensamento tem de ser este (...) e o caminho está a ser feito, mas são muitos gastos, muitas responsabilidades para dois treinadores", acrescentou o treinador Rui Soares.
No mundo da competição desde 2015, Rui já teve oportunidade de ir aos Estados Unidos: "Foi um sonho, não sei explicar". Uma viagem longa de avião, com escala de oito horas em Filadélfia. Quando saiu do aeroporto começou "logo a chorar". O calor era muito, as temperaturas oscilavam entre os 43 e os 50 graus Celsius. Apesar de ser difícil lidar com essas condições, tudo o resto "é incrível", contou. Ir aos mundiais permite conhecer pessoas, culturas e métodos de treino novos. Rui lembra-se de estar com o bloco de notas do telemóvel a anotar tudo o que os outros grupos faziam: "Como é que eles treinavam, quanto tempo descansavam, qual era o aquecimento deles?". A experiência traduz-se numa aprendizagem. O foco deixa de ser os resultados e passa a ser a evolução pessoal.
Eu continuo a querer ir lá todos os anos e a querer lutar por ir
Histórias que ficam e que inspiram os mais novos. No meio da ingenuidade e felicidade espontânea, os mais pequenos também já compreendem a importância de "mostrar o talento às pessoas".
Vasco tem 12 anos e entrou para o mundo da competição com quatro. Nos treinos, na JDS, podia ver-se como um peixe num tanque de tubarões, mas, além de saber que dentro da crew são todos amigos, o Vasco sabe que a mentalidade de um competidor tem de ser "querer ser o melhor de todos".
Na edição deste ano, a JDS apurou três equipas de escalões diferentes - JD Megacrew (2.º lugar, Megacrew), JD Legacy (5.º lugar, varsity), JD ECSTZY (5.º lugar, Minicrew). A Academia R&D, além do primeiro lugar na categoria varsity (R&D Gang), conquistou o segundo lugar no escalão júnior (R&D Newbies) e kids (R&D Cool Kidz).
O Hip Hop International é uma competição de dança urbanas que acontece em Portugal desde 2015, no Complexo Municipal da Maia, no Porto. As cinco melhores crews de cada escalão oficial - júnior, varsity, adult, minicrew, Jv megacrew e megacrew - asseguram a oportunidade de participar no World Hip Hop Dance Championship, em Phoenix, Arizona, que este ano acontece de 30 de julho a 6 de agosto.
Sacrifício e disciplina? "É preciso querer"
Por detrás destes resultados, há treinos diários, há treinos extra, há escola, há testes e há uma vida pessoal. Tem de haver "espírito de sacrifício", o mesmo que serve também como preparação dos atletas, desde pequenos, para a vida fora dos palcos.
Na Academia R&D os treinos de competição acontecem às sextas e aos sábados, mas os alunos têm ainda de fazer, durante a semana, as aulas normais das turmas onde estão inseridos e pelo menos uma das aulas de outros estilos - house, popping, female, break.
Não há um dia em que eles não venham à academia
Na JDS os moldes são semelhantes: duas horas semanais para competição, mais treinos técnicos - popping, dancehall, house, waacking e/ou hight hells.
À TSF, os atletas dizem que é "preciso querer" e saber "gerir o tempo", e os treinadores deixam claro que a prioridade é sempre a escola. É uma relação recíproca de total liberdade, total responsabilidade, onde se espera também que os alunos, por exemplo, não faltem "por uma constipação ou coisas mais levianas".
"Fica um bocado a ideia de que está a ter mais horas de treino e, por isso, ele está a dançar melhor. Mas não é! É efetivamente porque a pessoa tem noção de sofrimento, do que é passar por barreiras que existem (...) A capacidade do atleta de se superar, em grupo e individualmente, alterar o que tiver que alterar e ter a certeza que não vai falhar...Eu acho que isto dá um estofo enorme para o futuro", disse Mariana Curado.
Questionados sobre se alguma vez pensaram em desistir, os atletas entrevistados foram todos claros na sua resposta: "Não". Apesar de reconhecerem que existem momentos difíceis, a paixão que sentem quando dançam compensa tudo o resto.
Eu sempre gostei muito de competir e de dançar. Aliás, quando eu era criança achava que era muito para me entreter, mas aos 14 anos percebi que era mesmo aquilo que eu queria fazer
Alguns, além de bailarinos, são também coreógrafos e devagar já começaram a dar aulas. Aquilo que a dança lhes dá para a vida, é o que esperam conseguir dar também aos seus alunos. Vitória, professora de hight heels na JDS, sente-se confiante quando dança e só quer que os alunos "tirem o melhor proveito das aulas, que se sintam à vontade e se divirtam".
Por outro lado, lidar com a exigência da competição não era possível sem ajuda. Embora os protagonistas sejam os bailarinos que pisam o palco e que abdicam de tempo livre, nada "era possível sem o apoio dos pais", contam os treinadores.
No Porto, o treino acabava às 21h30 de sexta-feira e os pais esperavam os filhos à porta, sempre a contar com um possível atraso. Em Aveiro, a demora foi uma realidade. O treino estava previsto terminar ao 12h00 de sábado, mas foi necessário mais tempo. "Foi preciso mais tempo, está tudo bem, mandei uma mensagem para o grupo dos pais a avisar (...) Eles têm noção do trabalho e que os miúdos são efetivamente bons e que merecerem", explicou Mariana Curado.
O grupo de pais dos alunos aveirenses tem estado a trabalhar para levar os filhos aos Estados Unidos ainda este ano.
Hip-hop está "perto, mas ainda longe"
Há empenho, dedicação e apoio familiar. A qualidade é visível e o nível da competição aumenta de ano para ano, sendo, para o treinador Fernando Lopes, o "HHI português o melhor a nível europeu". Mas a boa vontade não é suficiente, havendo ainda "um grande caminho a percorrer", a começar no combate ao "desconhecimento sobre o que é que são efetivamente as danças urbanas".
Dançar não é apenas dar uns passos e mexer o corpo. As danças urbanas, aliás, nasceram como uma mensagem. E, talvez, se as pessoas soubessem isso, haveria "muito mais respeito pela cultura hip-hop". Pelo menos na perspetiva de Mariana Curado, que faz questão de explicar aos alunos, aos pais e ao público que assiste aos espetáculos da Academia, o que é o hip-hop: "O objetivo é sempre que as danças urbanas cresçam e estejam no mesmo patamar de outros estilos, que já têm tanta credibilidade na sociedade".
Fazer evoluir o hip-hop em Portugal passa também por tornar esta modalidade federada, como já acontece com o breaking desde 2020. O esforço não pode ser todo dos alunos. Se estes beneficiassem do estatuto de atletas federados, seria possível, por exemplo, justificar as faltas para ir às aulas e uma melhor gestão de horários de treinos.
Os apoios existem e variam em função das autarquias (...), mas isto não é uma competição federada (...). Era bom os alunos terem um estatuto de atleta de alta competição, em que possam justificar as faltas para ir lá fora, por exemplo
Para os alunos, a "dança é um lifestyle". Dentro da comunidade, "devia haver mais trabalho, desde divulgação a atitudes". Egos à parte, "no final do dia o que conta é a união e o ambiente saudável". Fora da comunidade, já existe uma mentalidade mais aberta. No entanto, "falta noção do suor" que os bailarinos colocam no seu corpo. Francisco Dias, sublinha a necessidade de desconstruir a ideia de que o ballet clássico "é o topo do topo" e compreender que as danças urbanas também conseguem construir um espetáculo.
Além da competição, a Academia R&D trabalha neste sentido. Todos os anos os bailarinos procuram passar ao público uma mensagem através do movimento do corpo. "Reflete" foi o tema da produção artística deste ano e teve como mote: "Onde nos refletimos? Nos espelhos? Nos outros? Somos todos diferentes ou todos iguais? Como refletimos o que somos? Será real? Virtual? Verdade ou mentira? Há mesmo um mundo espelhado a ser construído? Somos verdadeiramente o nosso reflexo? Somos verdadeiramente o que pensamos? Temos ainda essa liberdade? Espelho meu, espelho meu, há alguém mais belo do que eu?".
Mariana Curado admitiu que é isto que gosta de fazer, "trabalhar a nível criativo e a nível de desenvolvimento de temas que são pertinentes" e que vão ao "encontro também de educação e de formação dos bailarinos".
"Perto, mas ainda longe", bailarinos e professores esperam que as danças urbanas continuem a evoluir e acreditam que um dia a cultura do hip-hop será vista como uma arte.
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Break é uma modalidade federada
O breaking vai estrear-se nos Jogos Olímpicos de 2024, que vão ter lugar em Paris. A B-Girl Valeria Karamysheva faz parte da família R&D e é uma esperança olímpica portuguesa.
Apesar de a modalidade ser federada, a atleta não está isenta de dificuldades. Há poucas competições em Portugal e para ir competir ao estrangeiro, tem de suportar todos os gastos. No entanto, a B-Girl reconhece esta conquista e considera ser "muito bom" para que as pessoas atribuam maior credibilidade às danças urbanas.
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É muito bom para a geração futura para perceber que há benefícios nesta modalidade e que se pode viver disto.
Tal como os bailarinos de hip-hop, Valeria tem de saber gerir o seu tempo. "É desafiante" e teve de "aprender" a fazê-lo. Nem sempre correu tudo bem, mas deu-lhe uma boa preparação para o mundo universitário, onde irá ingressar no próximo ano.
Este ano a "grande novidade do HHI" foi receber o Campeonato Nacional de que breaking, numa organização conjunta com a Federação Portuguesa de Danças Desportiva. Esta competição deu acesso a quatro B-Girls e a quatro B-Boys à qualificativa mundial para os Jogos Olímpicos de Paris 2024.
