De Sarilhos a um sarilho para adversários. Manuel Fernandes apaixonou-se pelo Sporting pela mãe e a ouvir relatos
O antigo jogador, conhecido em Alvalade como o "eterno capitão", morreu, esta quinta-feira, aos 73 anos, vítima de doença prolongada
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"Foi um jogo que mexeu comigo. Há poucos jogadores que num dérbi com o Benfica marcam quatro golos. Fica para a vida." Para a vida de Manuel Fernandes fica muito mais do que um jogo que ficou marcado na história do Sporting e do jogador. As palavras atrás citadas, são do antigo goleador, alguns anos após ter ficado eternizado num dos dérbis mais marcantes de sempre. Mas Manuel Fernandes foi muito mais do que um simples jogo. Manuel Fernandes foi um dos melhores de todos os tempos do futebol português. Os números falam por si: 324 golos em 631 jogos. É de alguém que trata a baliza por tu. Alguém que fica na memória para os sportinguistas como o "eterno capitão".
Manuel Fernandes tinha o chamado "faro de golo", um toque de bola requintado, uma admirável capacidade de condução de bola e de fugir à marcação aos adversários e, também, a facilidade em finalizar com sucesso, fosse com os pés ou de cabeça. São habilidades que caracterizam o antigo goleador e que o tornam num dos melhores de sempre. É, ainda nos dias de hoje, detentor do recorde de jogador com mais jogos nas pernas no campeonato português - 486. A carreira não é inteiramente dedicada ao Sporting, mas foi nos leões onde se notabilizou, sobretudo como jogador, tendo também exercido as funções de treinador e dirigente.
Os relatos e o Sporting
O Sporting é uma paixão que nasce cedo com Manuel Fernandes. A "culpa" é da mãe que era uma grande fã do clube de Alvalade e que passou o "bichinho" ao filho. O antigo jogador perdeu a mãe com tenra idade, mas a chama do Sporting manteve-se acesa no coração do rapaz que adorava seguir os jogos do Sporting através da rádio, dos relatos de futebol. Consta que às escondidas da mãe, já depois de se deitar, em véspera de dias de escola, Manuel Fernandes, ainda um miúdo, ficava acordado na cama, de telefonia no ouvido num volume baixo, a ouvir os relatos dos jogos europeus do Sporting.
Nasceu a 5 de junho de 1951 em Sarilhos Pequenos, no concelho da Moita e, desde jovem, foi um sarilho para os adversários que iam encontrando pelo caminho nas ruas dessa pequena vila do distrito de Setúbal. É no futebol de rua que Manuel Fernandes desenvolve alguns dos seus atributos e começa a abrir a tampa do frasco de talento, que o faria ingressar nas escolhas do Sarilhense, aos 16 anos. Do Sarilhense dá rapidamente o salto para a CUF, um clube do Barreiro, que na altura militava na primeira divisão. Por lá, ainda faz seis épocas a um bom nível, destacando-se dos outros e fazendo por merecer, em 1975, um convite do Sporting.
O 7-1 que fica na história
O "Manel dos Sarilhos Pequenos" chega a Alvalade com a difícil missão de substituir Yazalde, que tinha saído precisamente na época anterior. Não acusou a pressão. Estreou-se em grande, com um hat trick num jogo particular frente à Académica, em agosto de 1975, numa vitória por 5-3 dos leões. O primeiro jogo com a camisola verde e branca foi "o momento de maior glória da carreira" de Manuel Fernandes, descreveu assim o ex-jogador. Ao todo, foram doze épocas ao serviço do Sporting, 433 jogos e 57 golos (dados do site zerozero.pt). O segundo mais marcante para Manuel Fernandes (porque o mais marcante foi o da estreia), é a goleada por 7-1 ao Benfica, em que o craque apontou quatro golos. (Ver vídeo)
O Sporting era comandado por Manuel José, que treinava a equipa, e acabou por nem ser campeão nesse ano, mas o dia 14 de dezembro de 1986 foi vivido como se da festa da conquista de um título se tratasse, com a maior goleada de sempre ao rival lisboeta. Manuel Fernandes marcou todos os golos na segunda parte, aos 50, 71, 82 e 86 minutos e levou a bola de jogo para casa, para oferecer à filha que, curiosamente, celebrava o aniversário nesse dia. O antigo jogador conta a história que o defesa Gabriel já estava preparado para levar para casa a bola do jogo, mas o autor do póquer não deixou. Para quem nunca viu jogar Manuel Fernandes, as imagens que sobram deste jogo em memória, ilustram bem o instinto de matador que tinha em frente à baliza.
De jogador a treinador... e dirigente
A carreira do número 9 é quase toda ela dedicada ao Sporting, onde venceu dois campeonatos nacionais, duas taças de Portugal e uma supertaça, mas Manuel Fernandes também quis explorar outras aventuras. A meio do trajeto em Alvalade, o antigo futebolista teve uma proposta tentadora dos Estados Unidos para jogar no Rochester Lancers durante uma temporada, em 1977 e, dois anos depois, voltou a terras norte-americanas para representar os New England Tea Men, para destoar um pouco do percurso quase 100% português da carreira como futebolista. Pela seleção, completou trinta internacionalizações e faturou por sete vezes, mas ficou sempre com a mágoa de não ter sido convocado para as fases finais do Europeu de 1984 e do Mundial de 1986.
Pendura as botas em 1989 ao serviço de um clube que também tinha no coração, um clube da terra dele, o Vitória FC (de Setúbal), mas não consegue largar os relvados e os balneários, já que no mesmo ano em que arruma as chuteiras pega na pasta de treinador. Começa logo por assumir o comando técnico dos sadinos e, por aí, seguiu numa longa carreira de treinador, de mais de vinte anos, passando ao todos por dez clubes. Começou no Vitória (de Setúbal) e acabou no Vitória, um dos clubes do coração, mas o Sporting também tinha que lá estar. Pegou nos leões uma vez como treinador adjunto e outra como treinador principal, sem ter, obviamente, o mesmo sucesso que teve como jogador.
Em 2015, Manuel Fernandes decide deixar a vida de comandar no campo e prefere coordenar para o campo. Encerra a carreira de treinador e transfere-se para o departamento de scouting do Sporting, onde cumpre funções durante quatro épocas. É no Sporting que se sente bem e por lá fica, já mesmo depois de ter cessado as funções no gabinete de observação, integrando a equipa do canal de televisão do clube para fazer análises semanais.
Uma vida dedicada ao Sporting e retribuir com amor foi aquilo que o clube fez. As homenagens em Alvalade fizeram escorrer as lágrimas da cara do antigo craque, até porque, aquilo que ainda o ligava a vida, "aquilo que o alimentava, era a hipótese de ver o Sporting campeão". Foi o que disse há umas semanas, o filho, Tiago Fernandes, aos microfones da TSF. O último suspiro da vida de Manuel Fernandes tem o grito de "campeões" e uma das últimas imagens que guarda é de uma enorme cartolina na bancada do estádio com a sua figura a dar um pontapé na bola e com a frase "obrigado, eterno capitão".