Para ir a casa dos amigos, o método mais rápido era mesmo a bicicleta. Em A-dos-Francos não faltam ladeiras para escalar. Cada subida representa também uma possibilidade de descida. Na única rua da vila que parece não ser inclinada, a população junta-se para acompanhar as etapas da volta a Itália, e o "pantera cor-de-rosa", João Almeida, vestido com a "maglia" de líder da geral, aos 22 anos.
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Dário Almeida tem um ar cansado e está irrequieto. Chegou de Itália na segunda-feira, dia de pausa na volta a Itália, e conta regressar já na quarta-feira, dois dias depois. Viu o filho apenas por cinco minutos e à distância, explica enquanto bebe o café da manhã na sua cozinha. Recebe a reportagem da TSF em casa, no centro da vila de A-dos-Francos, manhã cedo porque "a hora pouco importa" se é para falar do filho, para falar do rebuliço em que a vida da família se tornou desde que João Almeida veste de rosa, "lá em cima", como diz o pai, nas montas italianas.
O pai encontrou o filho sereno na visita a Itália, mas também "capaz e crente". "O João está bem, fez um grande esforço no domingo [última etapa antes do descanso]. Ele nunca teve uma prova destas, de três semanas. Mas eu acho que ele não vai dobrar". Soube a pouco a visita que a família fez ao atleta de 22 anos em Itália, quando o Giro tem já mais de meio caminho andado.
"Os seguranças não nos deixam aproximar dele. Falamos alguns minutos e foi embora, foi à vida dele". Esta última expressão que Dário Almeida vai repetindo mostra o estado de espírito do pai, que mais tarde descreve. O filho faz o que gosta, é atleta de elite de uma modalidade que aprendeu a adorar, quando aos 12 anos pediu aos pais para deixar o futebol - jogava no clube local, era lateral-direito -, largar as subidas e descidas no relvado plano, para se entregar às bicicletas.
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"Sempre gostei de ciclismo. Ainda vi corridas de Joaquim Agostinho, lembra". O pai confessa que o filho, João, a princípio não gostava muito das provas. "Mas depois lá tomou o gosto, e agora é louco pelo ciclismo". Na oficina, local de trabalho de Dário Almeida, partilhou bons momentos com o filho, em voltas das bicicletas. "Afinar, montar, desmontar", pois claro, explica. Pai mecânico, filho ciclista.
"O João treina por aqui. Faz tudo, de Montejunto à Nazaré, percorre a zona de Alcobaça, da Benedita, treina em Rio Maior, ou em casa nos rolos quando chove. Vai à vida dele, e depois volta". Volta e há de voltar. "Ele vive aqui, connosco, e vai continuar a viver", diz entre risos o pai.
E a vitória no Giro? "É complicado", diz o pai, já com lágrimas nos olhos. Por isso vira a cara, respira. Complicado vencer, mas não impossível. E como é o João? "Não faço comentários, ele depois há de falar". Vai dar-se a conhecer diz o pai, agora que a camisola rosa que enverga o projetou no desporto nacional.
A casa de João Almeida fica numa viela onde o asfalto tem pintado, mesmo à porta, uma bicicleta zona, um motivo que se repete por toda a vila. Na rua, junto à pequena igreja de Nossa Senhora da Conceição - dizem os locais, herança antiga, do século XII -, há pequenos plásticos rosa hasteados nas varandas baixas, nos portões, atados nas árvores um pouco mais abaixo, depois da ladeira que separa a rua do centro da vila.
Quando João Almeida regressar, há de se sentir como numa etapa, dizem os populares, tantas as fitas rosa nas árvores que ladeiam as estradas, a maior parte já sem folhas neste final de verão.
Aprender a descer
Curva e contracurva, ladeira abaixo, ladeira acima. Para percorrer a dezena e meia de quilómetros da vila de A-dos-Francos e a sede de concelho, em Caldas da Rainha, são necessários cerca de 20 a 25 minutos, e especial cuidado quando chove. É na cidade que está a loja de bicicletas que mudou a vida de João Almeida. José Pedro Fernandes foi o primeiro treinador de João Almeida no ciclismo.
"O João apareceu aqui com os tios com 12 anos, queria praticar downhill", explica José, que trabalha ainda na loja, numa das zonas limite da cidade, próximo do centro de exposições local. "Vi que tinha ali um problema. Tinha de lhe dizer que não podia fazer dowhill com aquela idade", explica José Pedro Fernandes. A solução foi convencer o jovem, irrequieto, a optar por cross-country. Para isso recorreu a alguns vídeos. "Mostrei-lhe uns vídeos e o miúdo ficou superfeliz com aquilo. Os altos, baixos, as subidas descidas e as pedras". João estava rendido, e começou por ali a paixão pelas bicicletas.
Destemido, lembra José Pedro Fernandes, João Almeida começou também por essa altura nas provas de estrada como complemento do treino e competição do cross-country. O talento revelou-se pouco depois das primeiras competições, ao ponto de João Almeida convencer os pais a comprar uma bicicleta mais adaptada à modalidade.
José Pedro Fernandes também foi ciclista de estrada, percebeu por isso que devia insistir nesta vertente para João Almeida. Mas eram, e são, explica o antigo treinador, as características psicológicas que o distinguem dos restantes atletas. "Ele é muito decidido, muito focado. É por isso que digo - sobre a volta a Itália - que está aqui uma grande incógnita. Ele vai lutar enquanto tiver força para manter a camisola rosa". Mas será que vai conseguir? "É a primeira vez numa prova de três semanas", lembra José Pedro Fernandes.
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Um problema fonético
No café central, a Sociedade Recreativa, Cultural e Musical de A-dos-Francos só a discussão com os jornalistas sobre a forma como se diz o nome da terra supera o conversa sobre João Almeida. A dúvida está na acentuação do "A", um tema sobre o qual Francisco Filipe, residente em A-dos-Francos não tem dúvidas. Diz se "A-dos-Francos", porque não há acento. Mas mesmo sem dúvidas, admite, por vezes lá escapa o "À", porque dá mais jeito, porque todos o dizem assim nestas "bandas" explica.
E o João Almeida? "Um bom rapaz", filho da terra, que por ali continua a viver, em casa dos pais. "Ainda no outro dia o vi numa descida, lá ia ele na bicicleta e eu atrás no carro. Eu ia a 90 km/hora, faço lá ideia a que velocidade ele seguia". Descia destemido, é assim desde criança explica Francisco Filipe.
Os populares juntam-se por ali a partir das 7h30, hora a que se começam a servir os primeiros cafés. Às 10h30 já há gente nas cadeiras à entrada. Está por lá instalada uma televisão e colunas que permitem acompanhar a transmissão televisiva das etapas. Às 14h00 já não há cadeiras, quem chega assiste de pé, de copo na mão, com paciência, porque no ciclismo é necessária paciência, esperar horas pelo entusiasmo que, a maior parte das vezes, se reduz a pequenos segundos.
A prova do dia foi um misto de emoções. Já muitas dos que assistiam abriam a boca enfadados quando a etapa terminou. Não sem antes João Almeida dar um ar de sua graça. Com o holandês Wilco Kelderman na roda, ali mesmo, a uma rotação de distância, João Almeida acelerou. Olhou uma só vez para trás e partiu. Ganhou dois segundos sobre o segundo classificado, o holandês que era a sua sobra desde Udine, numa etapa em que os atletas geriram o esforço, pensado nos Alpes que hão de chegar.
Paulo Sousa aplaude o final de etapa do João. O João foi seu atleta no futebol do A-dos-Francos, um lateral-direito muito jovem, que deixou o futebol aos 12 anos. Presidente da junta de freguesia local, Paulo Sousa, reconhece na televisão o "miúdo calmo, sereno, pacato", aquilo diz, que João Almeida sempre foi.
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O João, que passa por ali tantas vezes, mesmo em frente ao centro recreativo quando vai a pedalar pelas estradas da região ou quando vai simplesmente buscar a irmã mais nova à escola. "Ele vai continuar a ser o mesmo quando voltar, disso não tenho dúvidas", sustenta Paulo Sousa.