FrameRunning: a nova modalidade dos paralímpicos que faz correr quem achava que não podia
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Há uma nova modalidade paralímpica que faz correr quem achava que não podia. Chama-se FrameRunning e dá às pessoas com paralisia cerebral "uma experiência de movimento que não tem, de todo, noutra situação". O atletismo adaptado existe em Portugal há mais de 20 anos, mas chegar à modalidade é por si só uma maratona. Ainda assim, a prova é já ultrapassada por muitos jovens atletas que graças à tricicleta percebem que "aquele lema de que tudo é impossível até acontecer, é mesmo verdade!" Por isto e por tanto, no país já se sonha com Los Angeles 2028.
Ana Couto nasceu com paralisia cerebral e desloca-se de cadeira de rodas. A ideia de andar sempre lhe pareceu impossível, mas tudo muda quando, na brincadeira, alguém lhe pergunta se gostava de andar e a colocam em cima de uma tricicleta — um veículo com três rodas, duas atrás e uma na frente, com um guiador e um apoio de tronco (uma espécie de triciclo sem pedais). “E agora o que é que eu faço?”, ainda questionou, longe de saber que, hoje em dia, seria uma atleta medalhada.
São 09h30. É terça-feira e estamos na Pista Municipal Moniz Pereira, em Lisboa, para o primeiro treino da semana. O técnico Pedro Martins, com a ajuda de outros dois atletas da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa (APCL), vai buscar a tricicleta de Ana e adaptam-na à passadeira. Colocam dois apoios de cada lado para garantir que fica estável. A atleta de 35 anos sobe para a passadeira e começa o aquecimento.
Apesar de algumas dificuldades na fala, Ana entende-se na perfeição com o treinador, que lhe vai dando orientações. Aos microfones da TSF, Pedro sublinha: “Ao nível motor é a atleta com mais capacidade, o que interessa é o que ela corre e não o que ela fala.”
O FrameRunning pode ser um desporto adaptado, mas a exigência é exatamente a mesma do que em qualquer outro. Há quem opte por fazer atletismo apenas por prazer, como Raquel, uma outra atleta da APCL que acaba de chegar ao ginásio, como há quem opte por voar mais alto e competir, como Ana.
“São eles que definem os objetivos. Nós [treinadores] somos uma via. O que lhes dizemos é ‘Vocês querem e nós vamos ajudar, vamos fazer o nosso melhor para vos ajudar, mas o trabalho tem de ser vosso’”, refere Pedro Martins.
Depois da passadeira, segue-se o exercício no espaldar. Ana anda de um lado para o outro, descansa e repete, sempre com o treinador por perto. Numa das pausas, é questionada pela TSF sobre o momento que mais a marcou nesta aventura pelo FrameRunning. Lança um grande sorriso e diz: “Dinamarca!” Em 2023, Ana é chamada à seleção nacional para participar num campeonato internacional e percebe que “tudo é possível”.
Houve uma prova que me emocionou bastante e me deu força para acreditar que os meus 200 metros iam correr bem. Nos 800 metros, houve um atleta da Suécia, com grandes limitações físicas... Quando digo grandes, são mesmo grandes, quase com paralisia total. Fez a prova ao ritmo dele, demorou cerca de 20 minutos, debaixo de chuva torrencial e não desistiu. A imagem dele sozinho na pistas, com as pessoas a gritar ‘Gaspar, Gaspar, go go go’, está até hoje na minha cabeça.
Além de presenciar momentos que a inspiram, Ana fez na Dinamarca o seu melhor tempo em 200 metros: 01:38:24. Na altura, descreveu a semana como “supercansativa, mas uma experiência única”, da qual voltou “rica” e com uma certeza: “Aquele lema que tudo é impossível até acontecer, é mesmo verdade!” São palavras sentidas e compreendidas com um simples olhar: “Como podem ver, a Ana nunca mais largou a tricicleta, tanto que é uma das tatuagens que tem. Mostra como é importante para ela.”
Os ponteiros do relógio marcam agora 10h30. Já passou uma hora desde que começou o treino, mas ainda não é desta que Ana vai para a pista. Falta-lhe uma última série na Leg Press, uma das máquinas que ajuda a fortalecer os músculos das pernas.
"As pessoas pensam que só vimos brincar um bocadinho (...), mas desporto é desporto. Não interessa se é regular ou adaptado. Portanto, se ela quer chegar aos melhores, tem de ser igual aos melhores", vinca Pedro Martins, que acrescenta que Ana é muito disciplinada.
Desporto é desporto. Não interessa se é regular ou adaptado. Portanto, se ela quer chegar aos melhores, tem de ser igual aos melhores.
Enquanto bebe água e descansa um pouco, Pedro Martins e o resto dos colegas levam a tricicleta para o exterior do ginásio.
O treino termina com uma pequena corrida em pista. Pequena porque esta terça-feira há um evento e, por isso, Ana não pode correr como habitual. Ainda assim, foi o tempo suficiente para provar como se sente livre.
Coloca o capacete. Agarra na tricicleta e lá vai ela. Corre, corre e corre. Ri-se e só para quando Pedro Martins diz para voltar.
Esta liberdade torna-se ainda mais evidente na quinta-feira. É o segundo treino da semana e, desta vez, o encontro acontece por volta das 10h00. Os termómetros estão elevados, perto dos 30ºC, o que dificulta a vida dos atletas. “Se fosse pela Ana, treinávamos sempre à chuva”, diz Pedro, enquanto Ana vai para mais uma volta à pista.
Cá fora o treino tanto serve para treinar a resistência dos atletas, como algumas situações específicas de prova. Por exemplo, Ana assusta-se com o barulho da pistola no arranque de uma corrida, algo que “o corpo sente”, e por isso o treinador rebenta balões, utiliza o apito, ou faz barulho “ao máximo para que Ana tente partir sem que o corpo contraia tanto”.
Há agora um momento que não passa despercebido. Nota-se que a colega Raquel está “mais preguiçosa” e opta por ir mais devagar. Ana apercebe-se da situação, abranda o ritmo e corre ao lado de Raquel. Não é audível o que diz à colega, mas o treinador garante: “Mesmo isto sendo um desporto individual, há espírito de equipa. A Ana gosta muito de apoiar e costuma apoiar a Raquel, que às vezes é muito perigosa. Puxa por ela.”
É mais uma característica típica de atleta. Do sacrifício à exigência, Ana é também ambiciosa. O FrammeRunning vai fazer parte dos Jogos Paralímpicos, pela primeira vez, em Los Angeles 2028. É uma notícia que apanha todos de surpresa e que, mesmo em fim de época, coloca o pensamento já no próximo ano: “A Ana mandou-me logo mensagem quando soube que a tricicleta ia fazer parte dos jogos. Ainda não sabemos muito bem o que vai acontecer, (...) mas ela já só pensa nisso.”
Quem também já pensa em Los Angeles 2028 é José Manuel Lourenço, presidente do Comité Paralímpico, que não esconde a “satisfação” com esta notícia. Para o responsável, esta “é mais uma oportunidade” na inclusão de pessoas com paralisia cerebral. Espera, por isso, que Portugal entre no processo de qualificação e que os atletas comecem “já a medir forças” no Campeonato do Mundo de Atletismo em Nova Deli.
O treino de Ana acaba aqui, mas à boleia da sua história e do sonho com os Jogos de Los Angeles, a TSF foi com a atleta ao Dia Aberto de FrameRunning.
"O FrameRunning dá-lhes uma experiência de movimento que não têm de todo noutra situação"
A integração da modalidade no programa dos Jogos abriu portas para um dia aberto no Estádio Universitário da Universidade de Lisboa. O dia está cinzento, a temperatura agradável e o ambiente não podia ser mais familiar. Vieram pais, irmãos, tios e avós, porque o momento é importante para todos. Os técnicos preparam o material necessário e Helena Gonçalves introduz: “Bom dia! Antes de mais, requisito número um: quem é que vem bem-disposto e pronto para participar?” A resposta é clara, já que só existem atletas de braços no ar.
Para a maioria das crianças presentes, este é o primeiro contacto com uma tricicleta e, por isso, Helena faz questão de explicar o que é, como funciona e pedir para que “não tenham medo”.
Depois de dadas as instruções, são formados dois grupos e começa a atividade. Primeiro correm uma curta distância, depois contornam obstáculos e no fim dão uma volta inteira à pista.
- “Não consigo, não consigo”, diz Tiago, de 14 anos, logo no início;
- “Claro que consegues, não tenhas medo”, responde a técnica;
- “Sim, acredita em ti! Está muito melhor”, remata a mãe, Joana.
Tiago tem algum “receio de cair para trás” e estranha a tricicleta. Ainda assim, não desiste e é uma questão de tempo até estar com um sorriso na cara e já ninguém o apanhar: “Está a ser brutal! Estou a gostar muito!”
"O FrameRunning dá-lhes uma experiência de movimento que eles não têm de todo noutra situação. (...) Estamos a falar de miúdos que têm um bom nível cognitivo e que, dentro do descontrolo que é a paralisia, já controlam um pouco e isto ajuda"
- Joana, mãe do Tiago
A inclusão parte por não olhar para as pessoas, neste caso com paralisia cerebral, de forma diferente. Na tricicleta a comunicação é tão crucial como em qualquer outra modalidade, simplesmente aqui “falar não é preponderante”. O treinador da Ana já tinha deixado esta mensagem e agora é Helena quem volta a reforçar: “O corpo fala sempre e os olhos também comunicam muito. (...) Olhando para a cara do atleta conseguimos perceber se o atleta está em esforço, ou se precisa de água.”
Na prática, as dificuldades deste desporto são comuns a tantos outros e estão relacionadas com os custos e questões logísticas. Muitos dos pais presentes comentam que, mesmo que quisessem comprar uma tricicleta, não tinham como a transportar, ou guardar. Além disso, o preço pode chegar aos 1700 euros em Portugal e aos cinco mil no estrangeiro, mas essa é uma questão para depois... Agora, há um negócio mais barato para resolver:
- “Que tatuagem linda, Ana! Posso tirar uma foto?”, ouve-se alguém perguntar;
- “São cinco euros”, responde Ana, entre risos.
A atleta da APCL está presente no dia aberto e acaba por ser uma inspiração para os mais novos. A própria reconhece que a modalidade “tem custos muito elevados” e considera-se uma sortuda por ter conseguido ajuda. Tal como uma cadeira de rodas, uma tricicleta pode ser comparticipada pelo Estado com prescrição médica, mas há também cedências pela Federação de Atletismo, que pode emprestar material durante um ano.
A atividade acontece num sábado de manhã cedo, tal como a maioria das provas desportivas em Portugal. A motivação é transversal em qualquer modalidade e, para Diogo, é tanta que nem precisa que o acordem. Se há crianças que saltam da cama para ir jogar futebol, é o atleta que salta para ir correr na pista. “É uma das atividades preferidas dele. No dia de tricicleta nem é preciso acordá-lo porque ele acorda por ele”, conta-nos Teresa, mãe do jovem de 24 anos.
A irmã e a avó do Diogo também estão presentes para o apoiar. Incentivam-no, vivem esta conquista como se fosse delas também e não escondem a alegria por ver o atleta “apaixonado” pelo que faz.
"É difícil para nós, pais, arranjar um desporto para fazerem. Enquanto com os outros posso ir a um clube e inscrevê-los no futebol, atletismo ou natação, para estes meninos é mais difícil. Foi essa queixa que eu falei na Paralisia Cerebral e alguém me disse que tinham um desporto adaptado (...) e realmente a tricicleta foi uma paixão à primeira vista"
- Teresa, mãe do Diogo
Em Portugal, os treinos de FrameRunning começaram em 2001, no Centro de Reabilitação de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian, com uma tricicleta e três atletas. A APCL foi o primeiro clube a registar os atletas desta modalidade. Em 2007, Portugal participou pela primeira vez num campeonato internacional na Dinamarca, um país que “está melhor preparado” para as tricicletas.
Helena Gonçalves fez formação no país nórdico e também teve oportunidade de acompanhar os atletas portugueses há sete anos na competição internacional. Na altura, assistiu a uma realidade completamente diferente, onde as pessoas com paralisia cerebral utilizam a tricicleta para ir à escola, ou para passear num parque. A treinadora sublinha que, em Portugal, isso ainda está "longe" de ser possível, porque "as cidades não estão prontas", mas "o caminho já está a ser feito".
O Dia Aberto da Universidade de Lisboa, em articulação entre a Faculdade de Motricidade Humana, termina com um balanço positivo. Os treinadores não têm dúvidas de que vão ter novos atletas no FrameRunning, nem o próprio reitor Luís Ferreira: "A alegria deles, o sorriso todo aberto por estarem a fazer qualquer coisa que nunca tinham feito. Chegaram aqui todos nervosos, passado um bocado começaram a descontrair. (...) Estão todos felizes. Eles e a famílias. É uma maravilha."
Além da tricicleta, há já uma outra modalidade pensada para pessoas com paralisia cerebral: FrameFootball, o desporto onde muito mais do que marcar golos, "são aceites".