Heróis e vilões
Nos relvados, a FIFA evitou manifestações políticas com ameaças. Salva-se uma bandeira da Palestina utilizada nos festejos marroquinos, mas pouco mais. A atenção mediática está nos dribles e nos golos. Messi e Griezmann merecem atenção. Mas será que os direitos humanos e a democracia podem esperar por 2023, pelo mundial feminino, ou por 2024, quando as atenções do futebol se virarem para o europeu masculino na Alemanha?
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A FIFA quebrou com ameaças a iniciativa dos jogadores que ousaram questionar a organização. Nas últimas semanas, apenas o caso dos alegados subornos do Catar no Parlamento Europeu abalaram a imagem daquele estado que recebe o mundial de futebol masculino. Entretanto, esfregam as mãos os cataris ao ver uma final entre dois dos ativos do seu Paris Saint Germain, clube nação. Lionel Messi e Kyllian Mbappé tem os milionários contratos pagos por um estado soberano que utiliza o desporto para limpar a imagem internacional e evitar sobressaltos políticos e militares.
Relatava esta semana Natalia Junquera, repórter do El País no Catar. "As cataris são uma dupla minoria no seu país. Grande parte do país é composto por estrangeiros que aqui trabalham. Por isso, as mulheres cataris são apenas 30% da população (...) há poucas mulheres no estádios, porque também há poucas no país (...) para elas, a Sharia é com uma guarda-chuva que as protege. Mas elas têm noção que as gerações mais novas têm acesso a informação que elas não tinham (...) a Internet, livros, vídeos são uma ameaça da qual estavam protegidas", explicou num podcast do jornal espanhol.
Nas conversas que teve com duas mulheres, Natalia Junqueira relata que elas aceitaram falar sem que fosse divulgado o seu nome. "Elas acreditam que se está a fazer uma campanha contra o seu próprio país" neste mundial com as manifestações de quem chega do exterior contra a organização e as leis de um país distante da realidade ocidental. Um lugar onde "51% das mulheres cataris trabalham. Mas recebem menos do que os homens por funções iguais", explica a repórter.
Antoine Griezmann só viu um amarelo neste mundial. É um dos símbolos da geração francesa que domina o futebol internacional, mas, no passado, deu também um contributo, fora de campo. "Agora já chega. A homofobia não é uma opinião, é um crime. E, agora, se um jogador disser palavras homofóbicas no campo de jogo, acho que eu pararia a partida. Isto precisa mudar", declarou o atacante à revista "Têtu Magazine" em maio de 2019.
Dentro de campo, o médio ofensivo é um dos líderes da equipa francesa. Didier Deschamps desenhou uma seleção francesa que não vai ficar na história pelo estilo de jogo, mas por um modelo que se adapta às fornadas constantes de talento da formação francesa. Uma geração que tem jogadores nascidos depois de 1998, do mundial de França onde Jacques Chirac quis utilizar a seleção tricolor para afirmação de uma França multiracial. Didier Deschamps era um dos jogadores dessa equipa. Mas a França continua a representar o sonho de muitos futebolistas, ou a vontade de encontrar um novo local onde obter uma vida condigna para muitas famílias.
O treinador já tinha em 2018 Lloris, Varane (Martinica), Griezmann (o avô era português, de Paços de Ferreira), Mbappé (Camarões) ou Giroud. Construiu em torno destes jogadores uma equipa. Mudam as caras, mantêm-se os resultados. Uma seleção fruto dos movimentos demográficos. Seja com Pavard ou Koundé (família do Benin), seja com Umtiti ou Konaté (Mali), Upamecano (Guiné-Bissau), seja com Lucas ou Théo Hernandez (ambos nascidos em Espanha), com Kanté (Mali) ou Tchouameni (Camarões), Rabiot, Youssouf Fofana (Costa do Marfim) ou Pogba. Há ainda Dembelé (Mauritânia).
Regragui não compreende quem defende "os tiki-takas". O treinador marroquino, vestido com o fato de herói nacional, brincou em frente aos jornalistas com ideários táticos. Defendeu, com ironia, que a FIFA e a UEFA deviam atribuir pontos a quem supera os 70% de posse de bola. Como não tem em Marrocos "Bernardo Silva ou De Bruyne", o treinador não pode jogar como "o City".
O técnico de Marrocos devia ter ouvido Johan Cruyff. Quando assumiu o comando técnico do Barcelona, o holandes voador promoveu em Espanha um esquema de três defesas. Perante as dúvidas da imprensa espanhola da época, rompeu com os cânones ao defender que, assim, os homens da última linha seriam mais responsáveis. Eles iriam jogar mais concentrados na execução das suas responsabilidades no equilíbrio da equipa.
Marrocos adaptou o modelo à França para criar superioridade sobre Mbappé e Dembelé. Um dos três soldados do eixo da defesa, El-Yamiq - com linha de cinco neste jogo - seguiu um francês e abriu uma clareira que entregou o resultado. Terminou o sonho de Marrocos num excesso tático. Minutos depois do golo sofrido, o técnico Regragui regressou ao 4x1x4x1, devolveu o conforto aos jogadores, mas já era tarde.
Entretanto, já das bancadas milhares de argentinos cantavam:
En Argentina nací, tierra de Diego y Lionel,
de los pibes de Malvinas que jamás olvidaré.
No te puedo explicar, porque no vas a entender,
las finales que perdimos cuantos años las lloré.
Pero eso se terminó, porque en el Maracaná,
la final con los brazucas la volvió a ganar papá.
Muchachos, ahora nos volvimos a ilusionar,
quiero ganar la tercera,
quiero ser Campeón Mundial.
Y al Diego, en el cielo lo podemos ver,
con Don Diego y con la Tota,
alentándolo a Lionel
Messi roubou a final que esta geração croata queria oferecer a Luka Modric no seu último mundial. Os argentinos usam a expressão gambeta para descrever o golpe de perna - ou de qualquer outra parte do corpo, que o diga Pelé no seu drible de vaca -, que ilude, rasga sorrisos, rompe barreiras, derruba muros. Messi dançou, gambeteando Josko Gvardiol, numa jogada vista em tantos campos improvisados de ruas ou escolas. Nem o rosto do gladiador assustou o ziguezague do "10" argentino. Talvez Messi festeje com a camisola "10" de Diego Armando Maradona, a da Argentina ou a do Newell 's Old Boys que usava quando era apenas um pibe.
A carreira de Josko Gvardiol ou "Pep" Gvardiol, não vai ficar por aqui. Não será a última imagem de um jogador formatado para o futebol moderno. Central canhoto - digno de manchete no Transfermarkt só por isso -, rápido, competentíssimo com a bola, por vezes demasiado confiante, duro, potente, representa tudo aquilo com que sonha um treinador do futebol moderno. Mas fica na história por ter sido trucidado por Messi.
