Ir ao médico sem intérprete é tão "irrealista" como competir sem marmelada: quem é Margarida Silva, a porta-estandarte nos Surdolímpicos
Portugal vai estar representado por 13 atletas nos Jogos Surdolímpicos, que decorrem em Tóquio, no Japão, entre 15 e 26 de novembro. A TSF acompanhou toda a preparação e, durante esta próxima semana, dá-lhe a conhecer aqueles que também são rostos de coragem, superação, ambição e crescimento no desporto. Margarida Silva é a atleta desta segunda-feira.
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*Maria Ramos Santos
Margarida Silva tentou esconder a surdez de todas as formas possíveis. O cabelo comprido servia de cortina para os aparelhos auditivos e a vontade de "ser igual aos outros" empurrava-a para dentro de um silêncio que não era só físico. Agora, aos 25 anos e já com um pé nos Jogos Surdolímpicos de Tóquio, a atleta assume plenamente quem é e garante que vai comer "religiosamente" o típico cubo de marmelada para dar sorte.
Margarida recebeu a TSF na Pista Municipal de Setúbal, onde treina com outros colegas ouvintes e sob orientação de Fernando Ferreira. Com próteses auditivas (o que em muitos casos não é suficiente para uma audição quase perfeita) e através de leitura labial, a comunicação aconteceu sem qualquer dificuldade.
"Comecei no desporto escolar. Na altura, tinha alguns problemas em termos respiratórios. Dava uma volta à pista e era sempre muito complicado. Por causa disso o meu pai tomou a decisão de me colocar na natação, mas eu odiava, para ser sincera, e quis sair. O meu pai acabou por me pôr mais nas corridas, comecei a ganhar corta-matos e fui parar ao atletismo assim desta forma", começou por nos contar.
Ainda assim, sublinhou, só recentemente é que começou a correr de forma adaptada às suas limitações.
"Eu sempre tentei ao máximo esconder a minha condição, até porque ser surdo é fácil esconder. Ainda por cima tenho o cabelo comprido. Tentei sempre enquadrar-me dentro daquilo que era o normal. Mas a verdade é que em algumas competições, nomeadamente as mais rápidas de 400 e até mesmo 800 metros, nós partimos em pistas e recentemente comecei a sentir muito essa necessidade de começar a ter algum tipo de desporto adaptado", explicou.
Reconhecer que as suas potencialidades podiam ser ainda mais aproveitadas já foi um grande passo para a meio-fundista. Ainda assim, houve um tempo em que a mente era mais inquieta, em que o corpo respondia, mas as dúvidas pesavam mais.
Como "um atleta não se faz da noite para o dia", questionava-se: "Como é que eu vou apresentar-me perante o mundo com esta condição?"
Foi neste momento que olhámos em redor. Vimos Margarida a correr no meio de dezenas de pessoas e ninguém queria saber se é ou não surda. A questão que fez acaba mesmo por ser da própria cabeça, algo que reconheceu: "A minha principal barreira foi em termos psicológicos, em assumir e aceitar que sou diferente, e está tudo bem com isso."
"Acho que as pessoas gostam muito de ser todas iguais e ter aquela caixinha, não é? Vê-se muito isso naquilo que são os estudos, portanto, estudamos muito, vai-se à faculdade, eventualmente casar e ter filhos. O caminho acaba por ser sempre o mesmo para todos. E, para mim, era muito fora do normal eventualmente assumir que era surda. Até mesmo as expectativas que as pessoas têm por uma "pessoa que é normal", entre aspas, versus uma pessoa que é surda acabam por ser um bocadinho diferentes. Até a forma de falar com a pessoa acaba por ser um bocadinho diferente. Eu não queria sentir essa diferença. Não gostava de ser diferente e escondia muito essa questão."
A família foi a grande força para Margarida conseguir ultrapassar esta barreira psicológica. De cinco irmãos quatro são surdos e todos tentam esconder esta condição. Os pais sempre fizeram um grande esforço para que a integração na sociedade não fosse um problema.
"Ver os meus irmãos crescer, a desenvolverem-se e perceber que eles próprios também têm esta coisa de esconder (...), porque não eu assumir que sou surda e mostrar que está tudo bem com isso? Se outras pessoas lidam bem com isso, os meus irmãos também o podem fazer e mostrar que são surdos. Simplesmente têm algumas adaptações. As minhas irmãs estão a entrar numa fase de ensino secundário, depois vão para o ensino superior e começa a ser cada vez mais exigente em termos de aprendizagem. Portanto, assumir que sou surda e que preciso de ajuda talvez seja uma forma de elas também conseguirem depois fazê-lo. E quem diz as minhas irmãs e os meus irmãos diz também as outras pessoas lá fora, não é? Porque eu tenho a certeza que há pessoas que são surdas e não assumem", partilhou a atleta.
"A questão de na escola estar sempre mais à frente era importante, até porque vejo um bocadinho mal. Estar à frente e conseguir ver a boca dos professores era importante, porque faço leitura labial. Também fiz muita terapia da fala. Foi um investimento muito grande por parte dos meus pais para que eu tivesse todo o ensino normal e tudo aquilo que eu precisasse para que me conseguisse integrar dentro da "comunidade normal", entre aspas. Agradeço-lhes muito por isso, porque não é, de facto, um problema interagir na sociedade e passa completamente despercebido", acrescentou.
Aquilo que Margarida nos explica traduz-se num longo processo e que não contou só com a ajuda familiar, mas também do treinador. Margarida passou de ser a jovem que dizia "Espero nunca assumir que sou surda a competir numa modalidade adaptada" para alguém que, atualmente, até "esquece" um pouco a condição.
"O meu treinador sempre me tratou de forma igual aos outros atletas. Não é porque sou surda que sou diferente. Sempre me disse que tenho duas pernas, dois braços, um pulmão e, portanto, consigo correr o mesmo do que os outros. Tudo bem que sou surda, mas também consigo sonhar com medalhas ao nível nacional. Desde muito nova que me lembro de isso ser sempre um objetivo. Portanto, vamos assumir que essa condição não existe."
É com este mote que voltámos a olhar em redor. É difícil afirmar que a surdez limitou em qualquer aspeto o treino de Margarida. A única diferença visível foi na comunicação. O treinador levantava o braço para a atleta se posicionar. Baixava-o quando queria dar ordem de partida, algo que "já não é uma novidade".
"O meu treinador sempre teve muito cuidado. Tive muita sorte. Sempre esteve à altura de assumir que eu tinha esta condição e adaptar os sinais, etc. Fala comigo e repete as vezes que forem precisas", afirmou.
"Agora, o caminho para um atleta surdo aqui chegar é um bocadinho penoso", atirou.
"É preciso perceber que algumas adaptações muitas vezes não existem. Por exemplo, haver treinadores que tenham capacidade para falar a língua gestual, é uma coisa que fica um bocadinho aquém das expectativas. Tal como em várias áreas da medicina. Hoje em dia ir a um médico e não levar um intérprete é um bocadinho irrealista. Eu sou nutricionista e reconheço que isso é uma realidade. Mas, por exemplo, se eu quisesse ir a um ginecologista e tivesse de levar um intérprete se calhar não era assim tão agradável. Aqui é a mesma coisa, ou seja, se eu não tenho um treinador que tenha capacidade para se adaptar às minhas necessidades, à partida, poderá haver algumas limitações em termos de comunicação e depois desempenho, quer no treino quer na competição."
Margarida Silva é uma das 13 atletas que integra a comitiva portuguesa nos Jogos Surdolímpicos deste ano, que decorrem de 15 a 26 de novembro, em Tóquio, no Japão. A atleta vai competir nos 800 e nos 1500 metros. É ainda a porta-estandarte desta edição, ao lado de André Soares.
Questionada sobre os objetivos para esta estreia na maior competição internacional de surdos, respondeu: "Estar lá é, sem dúvida, uma grande vitória. No entanto, acredito e tenho muito esse bichinho de ir às medalhas."
A terminar a conversa com a TSF, Margarida revelou-nos ainda o que não pode faltar para que antes das provas: "Como sempre um cubo de marmelada de forma religiosa e uso sempre os mesmos alfinetes. Normalmente também faço contas com o meu dorsal. Se der um é porque a prova vai correr bem."
Os Jogos Surdolímpicos Tóquio2025 marcam o centenário desta competição multidesportiva, cuja primeira edição decorreu em 1924. Tóquio acolherá aproximadamente 3.000 atletas de cerca de 80 países, que competirão em 21 modalidades distribuídas por 17 arenas.
Portugal somará a sua nona participação em Jogos Surdolímpicos, competição na qual já conquistou 17 medalhas.
