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Mundial de 1966, Inglaterra. Jogo da fase de grupos entre a Itália de Sandro Mazzola, Gigi Meroni e daquele que, a partir de 1968, haveria de ser denominado "Golden Boy" Rivera, por vencer a Bola de Ouro, frente a um adversário desconhecido, enigmático... a Coreia do Norte. Uma hipotética formalidade, que, todavia, tornar-se-ia num dos mais horrendos pesadelos da história do calcio, que por essa altura já contava com três Taças dos Campeões Europeus no curriculum: uma do Milan e duas dos rivais do Inter.
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O golo do desconhecido Pak Doo-Ik gelaria uma nação e ditaria uma medida que simbolizaria anos de obscurantismo da Serie A. Para proteger os jogadores nascidos no país, favorecendo o seu desenvolvimento e uma consequente maior competitividade do futebol da seleção, não poderiam ser contratados mais jogadores estrangeiros.
Tratava-se de uma medida restritiva, mas, acima de tudo, antitética do que houvera sido o futebol transalpino até então. Bastará recordar que o primeiro grande grito de afirmação da Juventus na década de 30 se deu com homens provindos da América do Sul, que seriam os denominados "oriundi", por terem raízes italianas e que, inclusivamente, seriam basilares nas conquistas de dois títulos mundiais com Vittorio Pozzo, em 1934 e 1938. Ou então, o aparecimento do primeiro grande Milan da história com o trio de suecos Gren, Nordahl e Liedholm que ajudaria a quebrar um jejum de 49 anos sem vencer o scudetto.
Porém, assim seria até 1980, altura em que o futebol italiano, a nível de seleções obteria dois resultados marcantes: a final do Mundial de 1970 frente ao imbatível Brasil de Pelé e a vitória, em casa, no campeonato europeu de 1968. A nível de clubes, no que tange à máxima competição europeia, salvar-se-ia, em 1969, a vitória rossonera frente a um Ajax a dar os primeiros passos rumo à afirmação de uma filosofia de vida: o futebol total.
No início da temporada de 1980/81, tudo voltaria à primeira forma. Seriam admitidos estrangeiros nas equipas da Serie A, ainda que, apenas, um por squadra. O Inter contrataria o austríaco Prohaska, a Roma reforçar-se-ia com o mágico brasileiro Paulo César Falcão, o Inter com o galês Brady e o holandês Krol tornar-se-ia jogador do Nápoles.
A Serie A ganhava outro encanto!
Além disso, fruto do fortalecimento económico do país e do aparecimento de grandes empresários, como Berlusconi no Milan, Sensi na Roma, ou Moratti no Inter, entre outros, a aposta em grandes jogadores estrangeiros passou a ser recorrente. Tal também foi facilitado pelo facto de o limite ter passado de um atleta para três atletas provenientes do exterior.
Não tardaria a termos Platini na Juventus ou seus, então soviéticos, como Alenikov ou Zavarov, os holandeses do Milan, ou o maior de todos...um tal de Diego Armando Maradona, que desacreditado em Barcelona, ao lado dos brasileiros Careca e Alemão, colocaria Nápoles no topo do campeonato.
Foram tempos em que a Serie A se tornou no mais forte campeonato do mundo. Em que as televisões dos outros países se acotovelavam para adquirir os direitos televisivos das suas transmissões. Em que todos conheciam de cor os nomes dos estádios e as estrelas das equipas, mesmo que se tratasse da Atalanta, com Stromberg, ou o Foggia com Bryan Roy, ou uma emergente Lazio comandada por um louco inglês chamado Paul Gascoigne.
O futebol transalpino era o mais seguido do mundo!
Porém, aos poucos, esse cenário iria mudar. A Inglaterra abalada pelos dramas dos hooligans no Heysel, onde a Juventus levantou a sua primeira Taça dos Campeões Europeus em 1984 e a despertar para o infindável poderio financeiro das grandes estações televisivas avançava para a criação da Premier League. O campeonato da Velha Albion, até então praticamente reduzido a eruditos e aos adeptos locais, entrava violentamente pelos olhos dos adeptos dentro. Eram os tempos de Cantona, de Yeboah, de Ian Wright, de Shearer e de tantos outros que fizeram da liga inglesa a mais seguida a nível mundial.
Entretanto, em Itália, um escândalo eclodia: o Calciocaos que despojaria a Juventus de dois títulos e que arrastaria com ela colossos como o Milan, a Fiorentina e a Lazio.
A Liga italiana perdia credibilidade, a equipa mais titulada do país, a Vecchia Signora, descia de divisão e os outros só não a acompanharam graças a morosos processos judiciais que evitaram que a Serie B se tornasse mais mediática que a A. Porém, ironicamente, esse seria o ano que a Squadra Azzurra se tornaria pela última vez campeã mundial, na Alemanha, sendo que no ano seguinte o Milan venceria a orelhuda, feito que só seria repetido pelo Inter de Mourinho em 2010.
Eram os anos negros do calcio. A seleção jamais iria conseguir repetir o feito de Berlim e o campeonato perdia qualidade a cada temporada. A Juventus, depois de regressar da Serie B, tornava-se um "oásis" no deserto competitivo dos clubes do país na Europa e a Liga perdia interesse para as outras mais organizadas e mediáticas. Falamos da espanhola, com o habitual duelo entre o Real Madrid e o Barcelona, a inglesa, pelas razões já aduzidas, e a alemã, pela sua organização.
Contudo, um dia tudo mudou...
Cristiano Ronaldo, o português que é seguido, de modo ávido, por milhares de olhos, após vencer a Liga dos Campeões frente ao Liverpool, anunciava a sua despedida de Madrid. Iria partir! A partir daí alvitraram-se muitos destinos prováveis, muitos locais onde iria continuar a espalhar a sua magia. Regressaria a Inglaterra? Arriscaria levar o Paris Saint-Germain à obsessiva glória europeia? Tentaria uma paragem mais exótica como a China?
Escolheria, surpreendentemente, a Itália e a Juventus... depois de muitos anos, o país da bota tinha no seu campeonato um Bola d'Ouro... neste caso, um homem que venceu a máxima distinção individual por cinco vezes e que, atualmente, é a personalidade mais seguida do Instagram, com 200 milhões de seguidores.
As luzes da ribalta voltavam a estar na Serie A! Os golos de Ronaldo seriam a melhor muleta para o campeonato voltar a estar no menu dos aficionados do futebol!
Concomitantemente com isso, os adeptos do mundo despertaram para o remanescente da Serie A. Para a tentativa do Inter se aproximar da inexpugnável Juventus. Para o declínio do AC Milan, em bolandas financeiras e a viver longe das glórias do século passado. Para a belíssima Atalanta de Gasperini, capaz de jogar do futebol mais sedutor que existe na Europa. Para o ambiente apaixonado, mas tantas vezes caótico, dos estádios. Para os problemas dos ultra, muitos deles a serem impedidos de frequentar estádios.
A Serie A voltou a entrar no léxico dos amantes do futebol...e dos próprios jogadores! Fruto dessa atração, no início da temporada, outro nome lendário do futebol rumaria ao campeonato. À Florença, berço da arte renascentista. Falamos do francês Franck Ribéry, que, depois de não renovar o seu contrato com o Bayer, aceitaria o desafio de aproximar os Viola dos lugares europeus. Para completar a tríade de monstros sagrados, em janeiro, regressaria Zlatan Ibrahimovic ao Milan. Três estrelas do futebol, com o mediatismo necessário para fazer com que a imprensa e os adeptos acompanhassem os feitos de todas as equipas.
Mas, além disso, a Serie A não recebeu só estrelas rock do futebol, se assim podemos chamar. As contratações neste mercado de janeiro, por parte do Inter, de jogadores a atuar na Premier League - como o antigo capitão do Manchester United, Ashley Young, do nigeriano pertença do Chelsea, Victor Moses e, principalmente, do dinamarquês Christian Eriksen, que preferiu rumar a Milão em vez de ficar em Inglaterra com Mourinho - dá-nos uma certeza: a magia do calcio voltou e os fãs do género estarão prontos para reviver as novas histórias, de um campeonato que festeja, no presente ano, 90 anos...
Será mesmo "la più bella storia che non c'è!
Vasco André Rodrigues, A Economia do Golo