Manchester, quando foi a última vez que se sentiu feliz? "Talvez no dia em que Ferguson se retirou e conquistámos o título"
Sam Kershaw é produtor de conteúdos multimédia sobre futebol, adepto do Manchester United e praticante amador da modalidade. Joga três vezes por semana em diferentes campos de futebol pela cidade. A diferentes horas e de forma religiosa
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Há três décadas que Sam Kershaw se dedica a registar a relação de pessoas com a bola de futebol. A cidade onde nasceu tem uma relação particular e duradoura com o futebol, ou com o “jogar à bola”, um futebol de raiz. Kershaw chama a esta relação “Manchester Factory”, um conceito que explica à reportagem da TSF.
“São as pessoas e o que o futebol significa para elas. Para mim essa é a 'Fábrica de Manchester'. Falo de diferentes comunidades que o futebol atrai, que une. Um jogo simples que toda a gente adora”.
Como no jogo, dois lados dissonantes e bola ao centro na cidade berço da revolução industrial, onde Marx e Engels se juntaram para discutir as bases do manifesto comunista.
“O futebol é parte da 'Fábrica de Manchester', une e divide as pessoas, dependendo do lado da cidade de onde somos. Mas é uma parte importante da nossa cultura, com expressão na moda, na forma de socialização, o convívio nos bares. Viver numa bancada é parte da experiência da “Fábrica de Manchester”.
O lado de Kershaw é o oeste, o lado do Manchester United, mas seria igual à relação com a bola se fosse do lado oposto, do Manchester City. Não nos detenhamos, no entanto, nesta dualidade.
Os tempos de pandemia acentuaram em Sam a sensação sentida pela modalidade e pelo trabalho que concretiza em torno do jogo, o jogo simples.
“Foram tempos difíceis de superar, eu sentia-me condicionado. Como se não pudesse libertar parte do que sentia ou expressar parte da minha personalidade. O futebol é parte da minha identidade, sempre foi, desde criança. Não cumprir essa parte da minha vida foi duro. Em parte, sentir condicionado e isso não é nada saudável”.
Uma relação orgulhosa
“Sinto que o futebol é tão prevalente que se tornou algo importante na vida de cada um na cidade. Sinto orgulho nisso, sinto que este é um lugar onde se joga futebol de raiz, mas também uma cidade onde se pode ver futebol”, explica.
Sam escolheu mostrar essas histórias pela lente da máquina de filmar, telemóvel ou pela lente fotográfica: “Contar histórias sobre futebol é como apontar um foco de luz para um determinado tema que permite às pessoas ver algo que para elas não é evidente.”
Histórias individuais de pessoas que recorreram ao futebol para as ajudar a passar momentos difíceis das suas vidas.
“Significa tanto para tantas pessoas. No meu caso, é fantástico jogar futebol para conseguir manter a minha saúde mental, algo que me deixa relaxado, mas também é algo que me ajuda a criar relações com pessoas que conheço há anos. Se não fosse o futebol, eu não teria conhecido as pessoas”, explica.
O racismo, recuperação de doenças graves, crimes com armas, isolamento, compreender dinâmicas familiares, todo o tipo de histórias podem ser contadas a partir do desporto.
“O tema comum é o futebol como veículo para a mudança, para um impacto na vida de cada um. É algo catártico, usar o futebol para ultrapassar algo traumático. Há pessoas que usam o futebol para ajudar na recuperação. Falamos de algo poderoso.”
Milhares de campos
Existe uma empresa chamada Footy Addicts que procura juntar comunidades em todo o Reino Unido. Se alguém se muda para Manchester não conhecendo ninguém, basta descarregar a aplicação, colocar lá o código postal e a aplicação vai dar-lhe centenas de jogos na região.
Sam joga três vezes por semana: “Há um jogo a cada hora do dia aqui. Podes jogar antes do trabalho, à hora de almoço, depois do trabalho até às dez da noite. Há vários níveis, desde jogos para quem nunca praticou até partidas de um nível elevado.”
“Muitos dos campos de futebol não têm as condições que deviam ter, mas penso que há um certo grau de conhecimento de quem decide sobre o que a comunidade precisa. É importante sublinhar também o crescimento do jogo das mulheres, a par do jogo dos homens. O jogo das mulheres e das raparigas está a ser colocado num novo nível.”
Um campo em particular, o de Ruben Amorim
Levamos a bola até ao meio-campo de Kershaw. Old Trafford, Manchester United e Rúben Amorim, o motivo central da nossa viagem à cidade “fábrica”.
“Entendo que é uma escolha acertada, acredito que ele tem as ferramentas necessárias para ser um bom treinador e ajudar o clube. Mas fico preocupado, não com ele, mas com a equipa que ele vai herdar e a estrutura do clube”, assinala.
“É uma equipa em sub-rendimento, acredito que há um clima de toxicidade no balneário. Amorim tem um trabalho difícil em mãos”, antevê.
Os adeptos do Manchester United são orgulhosos. Tem do clube uma imagem cristalizada.
“Espero que consiga forjar uma identidade para a forma como nós queremos jogar futebol, algo a que nós não assistimos nos últimos dez anos”.
O futebol do United tem de ser moldado para entreter a plateia.
“Nós tivemos Mourinho que sabia como estacionar o autocarro à frente da baliza. As pessoas dizem que ele, como acontece sempre, acabou por se esgotar na terceira temporada. Mas acredito que o que ele fez foi bastante bom, mas o futebol não era atrativo”.
“Eu não gosto de ouvir as pessoas falar sobre o “à maneira do Manchester United” (Manchester United way). É um clichê. Mas todos nós aspetos queremos que a equipa jogue um futebol atrativo, com grande intensidade, ofensivo. Com jogadores criativos e que se conseguem exprimir. Nós não temos isso hoje, só vamos tendo umas pequenas doses desse futebol de vez em quando”.
Afinal o que espera de Amorim?
“Um amigo meu enviou-me uma mensagem em que dizia: eu não me importo se perdermos por 3-2 mas estivermos a jogar bem, a expressar a nossa forma de jogar. Prefiro isso a uma vitória por um a zero. O um a zero é um resultado sem alma”.
“Não digo que desejo perder. Mas há uma expectativa, que fique claro, mas as pessoas pagam bastante dinheiro para ver o jogo. E por isso querem ser entretidos. Querem que joguem pelo emblema na camisola”
Sam Kershaw não conhece a palavra saudade. Mas atira depois de uma curta explicação.
“Há uma frase famosa em Manchester, “a nostalgia é uma doença”. É uma frase de Tony Wilson, o responsável da produtora Factory, que dizia que se passamos o tempo a olhar para trás, a pensar como eram bons aqueles tempos, então não vamos a lado nenhum. Começamos a viver na nossa própria sombra. Nós fomos fantásticos, ganhamos aqueles troféus todos, mas há dez anos ou doze que não conseguimos fazer nada”.
Em Looking for Eric, filme de Ken Loach, um adepto do Manchester United de nome Eric pergunta a Eric Cantona (feito ator nesse filme do realismo social britânico) qual foi a última vez que foi feliz.
When as the last time you’re happy?
“Tivemos uns momentos, uns saquinhos de felicidade ao longo do caminho. Talvez aquele livre de Juan Manuel Mata ao Paris Saint Germain na Liga dos Campeões. Mas já foi há uns anos. Talvez no dia em que Sir Alex Ferguson se retirou e nós conquistámos o título. Aquela equipa não parecia capaz de vencer, mas ele lá conseguiu porque sabia como tirar o melhor de cada pessoa. Mas realmente feliz? Penso que foi mesmo nesse dia”.