"O Bielsa adora o jogo ofensivo e espetacular. É um treinador muito especial"
Em entrevista à TSF, Luís Campos, conselheiro desportivo do Lille, fala do campeonato francês, da sua colaboração com a seleção argentina na Copa 2014 e de Eder, Edgar Ié e Xeca. E de Bielsa, claro.
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Andava pelo Mónaco quando o telefone tocou. Fazia "um calor de morrer". Luís Campos, funcionário da Victory Soccer, proprietário do Lille e em negociações com outros dois clubes, é o conselheiro desportivo do Lille. Em entrevista à TSF, o homem que deu conselhos a José Mourinho no Real Madrid e a Leonardo Jardim no Monaco falou sobre o que faz e o que fez, como a viagem à Argentina para bater umas bolas com Marcelo Bielsa. O ponto de situação de Eder, Xeca e Edgar Ié também foi abordado. Luís Campos revelou ainda como é que colaborou com Alejandro Sabella no Campeonato do Mundo de 2014, o tal em que a Argentina chegou à final...
Que tal a cidade?
Lille é uma cidade muito bonita do norte de França, muito industrial. Com um estádio magnífico, com um centro de treinos que, provavelmente, é o melhor do país e dos melhores da Europa. Falta criar a equipa para esta cidade. É isso que estamos a fazer agora, [a juntar] equipa e treinador. E vamos partir para esta nova aventura com ambição para tornar o Lille um clube diferente.
O que faz um conselheiro desportivo?
(Risos) Dá conselhos... sobre a melhor política a seguir a todos os níveis, sobretudo nesta fase inicial no que concerne à escolha do treinador, dos jogadores para o campeonato francês, para construirmos uma equipa com as ambições do presidente. Algo que gosto muito de fazer é o desenvolvimento tecnológico, modernizar o clube, trazer novas tecnologias que ajudam a que o jogador recupere melhor. Felizmente, hoje, já todos perceberam que as cargas são importantes, mas que a recuperação é tão importante como a carga. Tivemos de investir fortemente no clube, de forma a criar as soluções mais modernas, a atualizá-lo, para que o Bielsa possa desenvolver da melhor forma o seu trabalho.
Foi o Luís que aconselhou a contratação de Bielsa?
Sim. Conversei imenso com o Gérard López [proprietário do clube]. O Bielsa era uma grande paixão do Gérard Lopez. Eu desloquei-me à Argentina, passei uns dias excelentes com o Bielsa. Discutimos imenso, vimos que podíamos trabalhar juntos e que juntos podíamos desenvolver este projeto. Falou-me do perfil de jogadores que aprecia, sobre estilo de jogo. A partir dai começámos a construir esta nova casa.
Como descreveria Bielsa?
É um treinador muito especial. Na minha opinião, muitíssimo bom. Penso que foi o Guardiola que disse que ele era o melhor treinador do mundo. Agora que o vejo desenvolver os seus treinos, começo a compreender o porquê da afirmação do Guardiola. É uma pessoa que adora o jogo, adora o jogo ofensivo e espetacular. Ao mesmo tempo, é um estudioso enorme sobre as formas de jogar, sobre as novas formas de jogar. Tem sido um enorme prazer trabalhar com ele.
Foi ele que pediu os brasileiros [Luiz Araújo, Thiago Mendes e Thiago Maia] e a renovação do centro de estágio?
O Bielsa traçou perfis. Eu apresentei-lhe os jogadores e depois ele percebeu claramente que eram jogadores com o perfil que ele desejava e partimos para a contratação.
E o centro de estágio também, certo?
Sim. Logo na primeira conversa na Argentina falou-me que se aceitasse o projeto (e porque conhecia Luchin, já tinha visitado, estudou muito porque na Internet há imagens espetaculares de Luchin), havia a decisão de explorar aquilo que temos de enorme qualidade. Faltava-nos uma área onde os jogadores pudessem recuperar entre treino. Eu sugeri-lhe a criação deste espaço, estudámos muito. Ele fez os seus ajustamentos e, no final, conseguimos criar algo belo e eficaz. Foi bom sentir que o presidente ficou contente e sobretudo que os jogadores que hoje usufruem do novo projeto estão também deliciados com as condições.
E na Argentina, houve muito mate e futebol?
(Risos) Os hábitos de ver e falar muito de futebol tenho há mais de 30 anos que estou no futebol profissional. O hábito do mate... aprecio, mas não me convenceu ainda (risos). É diferente, é diferente. É a sua cultura, já estava habituado. Já conhecia das minhas viagens à Argentina, Uruguai e Paraguai, onde o mate é muito utilizado todos os dias, por toda a gente.
O Lille tem três campeonatos. A cidade está a sonhar alto ou quer ir com calma?
Quando viu os nomes que chegaram, a cidade ficou expectante. Como aconteceu quando cheguei aqui ao Monaco há quatro anos. Vieram alguns nomes conhecidos, mas vieram outros completamente desconhecidos do grande público.
O mesmo se passou agora em Lille. Fizemos um mix de jogadores com experiência na Liga Francesa, mas também muitos jovens a quem vemos enorme potencial, grande qualidade. De início estavam expectantes, agora que passaram os primeiros jogos de preparação a confiança foi crescendo. Na apresentação, em que praticamente uma grande parte da cidade se encontra de férias, tivemos 25 mil pessoas no estádio.
Bielsa pensa no titulo ou tem discurso mais jogo a jogo?
Não... Quando entrámos aqui, pelo menos eu, com Marc Ingla e Gérard López, esta equipa estava em 19º no campeonato francês. Arriscámos muito e felizmente conseguimos acabar em 11º, numa altura em que passámos por momentos delicados no início do projeto. Felizmente terminou bem a época. Agora que começámos a época e mudámos radicalmente a equipa, não somos loucos, pretendemos ser realistas. Penso que construímos uma equipa para nesta primeira temporada ficar entre os cinco primeiros. É esse o nosso desejo e ir à Liga Europa na próxima temporada.
Já receberam treinadores para estagiar ou aprender com Bielsa?
Foram sobretudo jovens, estrangeiros e alguns portugueses, que gostam de comparar metodologias de trabalho. A escola portuguesa é muito forte e aprecio imenso, com a periodização tática, com o treino ecológico, que o [Leonardo] Jardim preconiza. Veio aqui muita gente, de Espanha, Argentina e Brasil, para assistir ao trabalho do Bielsa. Aproveitam para criar o seu próprio estilo. O nome de Bielsa e a sua personalidade foram e são um forte impacto que ajudam o Lille a tornar-se logo à partida um clube bastante mais forte, pela qualidade do seu trabalho, mas também mais respeitado e visto com outros olhos.
Agora os portugueses. Como está a situação de Eder, Edgar Ié e Xeca?
O Edgar Ié entrou muito bem. Foi uma surpresa para os franceses, que não o conheciam. Lembro-me perfeitamente de ter apresentado o perfil do Edgar Ié ao Marcelo Bielsa e ele rapidamente se apercebeu da capacidade que ele dá à equipa de jogar em bloco alto. Ou seja, se queremos jogar um futebol espetacular, como está no ADN do Marcelo Bielsa, teremos de jogar muito tempo no meio campo adversário e precisamos de defesas capazes de dar enorme profundidade defensiva, que consiga recuperar bolas no espaço nas costas. O Bielsa está muito contente com o que o Edgar Ié tem feito no clube.
Em relação ao Eder... Logo desde início sabíamos que não fazia parte dos planos do Marcelo, porque nos disse, ainda em janeiro, que o perfil de atacante dele é completamente diferente do Eder. Ele prefere jogar com avançados móveis, que não sejam referência. Neste momento temos algumas propostas pelo Eder, estamos a estudar. Ele tem trabalho bem, muito brevemente teremos boas novidades sobre o Eder.
O Xeca foi talvez uma das maiores revelações da segunda volta do campeonato no ano passado. Veio do Braga, adaptou-se bem. Posso informar que temos propostas para que o Xeca possa ir para um patamar ainda mais alto. Não ficaria espantado que pudesse surgir algo diferente na vida do Xeca...
E o Rony Lopes, há intenção de tentar novo empréstimo?
Eu perguntei junto do Monaco, perguntei mal terminou a temporada. Fui rapidamente informado que o Rony [titular na sexta-feira na 1ª jornada do Monaco] ia ficar no efetivo monegasco.
Como é que se ataca este mercado quando se vê uma transferência como a de Neymar?
É o meu quarto ano no campeonato francês e tenho assistido ao desenvolvimento extraordinário deste campeonato. Eu penso que o aparecimento de uma equipa como o Monaco e dos grandes nomes que têm surgindo e a politica de forte investimento no PSG levaram a que o futebol francês fosse visto de uma outa forma pelos clubes e treinadores. Hoje temos em França belíssimos treinadores, temos em França jogadores já de renome mundial. O campeonato teve e está a ter uma evolução verdadeiramente fabulosa. É muito, muito diferente do campeonato que eu conheci há quatro anos.
É por essa razão que a transferência de Neymar é importante para o campeonato?
Eu penso que é uma consequência daquilo que tem vindo a ser feito nos últimos anos. Todas as equipas em França passaram a investir mais. PSG, Monaco, Lyon, segue-se agora Nice e Lille com Bielsa. O Nantes, com Ranieri. O Bordéus é sempre uma equipa forte. Hoje criaram-se condições em França para um campeonato que vai ser verdadeiramente espetacular, com estádios de muita qualidade, os estádios do Europeu, e que estão normalmente completos. Está em franca evolução. Não me espantaria que nas próximas épocas outros nomes fortes do mercado mundial venham também provar este campeonato.
Qual é o orçamento de um clube como o Lille? Até para comparar com os 222 milhões de euros da transferência de Neymar...
É óbvio que não chegamos a esses números (risos). Os números de Neymar são absolutamente incríveis. O Lille é um clube que anda longe, muito longe do PSG. Penso que ninguém em França gasta sequer metade do que gasta o PSG. Depois temos outras equipas como Lyon, Monaco, Lille que gastam na casa dos 100 milhões de euros.
O Luís colocou um ponto final na carreira de treinador em 2005. O banco não era para si? Pensa voltar?
Não penso voltar. Na vida todos temos a nossa fase, os nossos ciclos. A vida é feita de ciclos. Nessa altura tomei a decisão que a minha carreira de treinador tinha terminado. Optei por outra área do futebol. Tornei-me conselheiro de [José] Mourinho para aquisição de novos jogadores e para estudo das equipas da Champions League. O trabalho que fiz para a Argentina no Mundial do Brasil deu-me um gozo extraordinário (do estudo de adversários), ao mesmo tempo fui-me dedicando cada vez mais à busca de novos perfis de jogadores. Agora estou neste projeto da Victory Soccer, que é proprietária do Lille e que brevemente será proprietária de mais dois clubes.
Pode dizer quais são?
Nãão (risos)... Neste momento estão a decorrer negociações, é um projeto mais alargado. Cativou-me imenso, porque vou trabalhar no mínimo para três clubes. Vou ajudar a desenvolver os clubes, dar novos treinadores, novas metodologias de trabalho, novos jogadores, novas tecnologias, desenvolvimento de clubes...
Como surgiu essa colaboração com a Argentina no Mundial?
Foi o [Alejandro] Sabella que me convidou. Conhecia-me do meu trabalho no Real Madrid. Deu-me imenso prazer. São duas áreas a que me dediquei na altura: estudo de adversários e scouting de jogadores.
Por pouco não chegavam ao título mundial...
A intensidade com que se vive um Mundial é brutal, sobretudo quando consegues chegar à final, em que o espaço entre jogos é algo reduzido e as equipas mudam muito de estilo e de conceitos e formas de jogar. Foi muito intenso, muito extraordinário. Dar aos jogadores e ao Sabella as indicações de como jogava adversário, como os poderíamos contrariar, discutir todas essas coisas são momentos fascinantes.
A primeira jornada é com o Nantes. Vai ser curioso ver Claudio Ranieri e...*
Duas velhas raposas! (risos) São duas velhas raposas. No primeiro jogo as equipas estão sempre mais nervosas. É a estreia do campeonato. As equipas não têm nada a perder, toda a gente arranca com zero pontos. Normalmente são jogos de caráter especial. Este será mais um. Espero que no final o Lille possa começar a crescer como equipa. Já começou, mas queremos crescer aos poucos e poucos para nos afirmarmos no panorama francês.
*entrevista aconteceu na véspera do arranque da Ligue 1. O Lille venceu o Nantes por 3-0.