Terminada a mais estranha liga portuguesa de sempre - em mais de 85 anos de história -, devido à pandemia da Covid-19, é momento do Números Redondos efetuar o habitual balanço final, como sempre com base na análise e interpretação de alguns dos mais relevantes dados estatísticos da prova
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Ninguém negará que este foi o campeonato nacional mais atípico na história: uma paragem longuíssima de quase 3 meses, ausência de espetadores nos estádios nas últimas 10 jornadas, disputadas em junho e julho, habitualmente período de defeso ou de competições de seleções.
A liga 2019/20 foi igualmente estranha porque trouxe a maior débacle de um candidato ao título de que há memória, pelo menos numa segunda volta: a protagonizada pelo Benfica, que dominara quase por completo a primeira volta da prova.
No entanto, não será adequado ligar diretamente os dois eventos, uma vez que quando aconteceu a paragem no campeonato já o campeão Benfica desperdiçara os 7 pontos de avanço que tinha sobre o segundo, o Porto, passando a estar 1 ponto atrás da equipa de Sérgio Conceição.
Diferente, diferente, mas igual
Convém dizer, desde já, que se esta foi uma liga muito atípica, pelas razões apontadas, também é um facto que não deixou de repetir muitos dos cenários do costume nos últimos anos, reproduzindo uma já antiga monotonia competitiva, mormente nos lugares de topo da prova:
- o Porto venceu mais um título, somando o seu 22º nos últimos 40 anos (ou seja, no consulado de Pinto da Costa), e o 11º no século XXI.
- os 2 clubes que realmente lutaram pelo título, Porto e Benfica, e que ficaram nos 2 primeiros lugares, monopolizam essas posições desde 2015/16.
- Porto e Benfica disputaram entre si 7 dos últimos 10 campeonatos (2011/12, 2012/13, 2014/15, 2016/17, 2017/18, 2018/19, 2019/20), sendo que o Sporting apenas esteve envolvido numa luta acérrima (2015/16, com o Benfica). Já os campeonatos de 2010/11 (Porto) e 2013/14 (Benfica), foram decididos relativamente cedo.
- alargando um pouco mais o espaço temporal de análise, percebemos que a bipolarização da luta pelo título na liga portuguesa já não é um fenómeno recente: nos últimos 18 anos só Porto (11) e Benfica (7) levaram o troféu mais desejado para os seus museus. E nos últimos 40 anos, os dois clubes conquistaram 37 campeonatos entre si (o Porto 22, o Benfica 15) apenas deixando 2 para o Sporting e 1 para o Boavista.
- já o 3º e o 4º classificados desta liga, Braga e Sporting, ocuparam uma destas 2 posições em 8 dos últimos 10 campeonatos (Sporting) e em 7 dos últimos 10 campeonatos (Braga).
Uma história quase inverosímil
Para lá da pandemia, é impossível não perceber que a liga 19/20 ficará para sempre marcada pela incrível recuperação do Porto face ao Benfica na luta pelo título. E mais do que a recuperação portista, ficará na história a forma como os encarnados a consentiram.
Relembremos o cenário à entrada da jornada 20: o Benfica deslocava-se ao Dragão com 7 pontos de avanço sobre o Porto, segundo classificado.
A águia chegava a este encontro com 18 vitórias em 19 jogos do campeonato (apenas perdera 3 pontos, com o Porto, no estádio da Luz). Poucos arriscariam dizer que tudo iria mudar a partir desse dia 8 de fevereiro de 2020. Mas mudou, e de que maneira.
Incluindo essa partida no Dragão, em 12 jogos realizados (5 antes da paragem devido à pandemia e 7 depois da retoma), o Benfica perdeu 22 pontos, somando somente 14 pontos em 36 possíveis (depois dos tais 54 pontos acumulados em 57 possíveis, nos primeiros 19 jogos do campeonato). De um aproveitamento pontual de 95% passou para 39%.
Já o Porto, nesses 12 jogos, conseguiu 29 pontos, mais 15 do que o Benfica. Como perdeu 7 pontos (2 empates e 1 derrota), sobraram 8 pontos de vantagem sobre os encarnados até ao fim da jornada 31. E assim se decidiu um campeonato...
Para tornar tudo mais dramático, na época anterior o Porto chegara a ter também 7 pontos de avanço sobre o Benfica, mas a realidade é que no início da segunda volta essa vantagem era de 5 pontos, sendo que os portistas perderam muito menos pontos (9 em 17 jogos) do que o Benfica cedeu na segunda volta da presente liga (22).
Porto, um campeão mais competente do que brilhante
Nem o mais empenhado dos adeptos do Porto defenderá que a equipa campeã de Sérgio Conceição praticou um futebol atrativo. É quase consensual que este Porto foi acima de tudo o conjunto mais intenso e competitivo. Pouco brilhante, mas muito competente e organizado.
Os portistas somaram um total de 82 pontos em 34 jogos, o que corresponde a uma média de cerca de 2,4 pontos por jogo. Aliás, o Porto campeão 2019/20 não conseguiu chegar ao desempenho pontual da época passada (85 pontos), quando foi segundo classificado.
Apesar disso, a média de 2,4 pontos por jogo está longe de ser baixa. Por exemplo, no quadro geral do século XXI, nos 20 campeonatos já disputados, o campeão terminou com uma média inferior à atual média do Porto em 8 ocasiões (todos na década de 2000), sendo que na liga 2016/17 o campeão Benfica terminou igualmente com 82 pontos.
É caso para dizer que os adeptos dos últimos campeões estão "mal habituados". Desde 2015, os vencedores da liga têm conseguido médias pontuais muito altas: por exemplo na época passada o Benfica terminou com 2.55 e na anterior o Porto acabou com 2.58.
Também não é significativo o registo de golos marcados pelo campeão: uma média de 2.2 golos por jogo, bem longe por exemplo do recorde do século XXI batido na época passada pelo Benfica (com uma média de 3 golos por jogo, ultrapassando o total de 100 golos).
No entanto, mais uma vez o desempenho goleador portista da atual liga fica à frente de 8 campeões do século XXI, de novo quase sempre relativos a provas da década de 2000.
Sérgio Conceição, o homem do campeonato
Não só por razões ligadas às dificuldades financeiras do Porto, e à alegada inferioridade do seu plantel comparativamente ao do rival direto Benfica, o treinador portista é reconhecido como o grande responsável da conquista azul e branca, por quase todos os observadores.
O grande mérito de Conceição deve-se à qualidade coletiva apresentada pelo campeão, feita de competência e organização, ultrapassando as limitações óbvias do plantel.
Assim sendo, não surpreende que quase todos defendam que a superior competitividade do Porto resultou acima de tudo do trabalho realizado pelo seu treinador e respetiva equipa técnica.
Um bom exemplo: o Porto não marcou muitos golos, mas mostrou uma competência quase inigualável nos lances de bola parada ofensiva. É realmente impressionante apontar quase tantos golos de bola parada como de bola corrida: dos 74 golos obtidos, 33 surgiram na sequência de lances de bola parada, com destaque para os 13 surgidos na sequência de pontapés de canto.
Simultaneamente, e também como resultado desta capacidade anormal de transformar bolas paradas em golo, os defesas portistas tiveram papel ofensivo fundamental, marcando por 20 vezes: 11 golos para Alex Telles (8 penáltis), 5 para Marcano, 2 para Mbemba, 1 para Manafá e 1 para Pepe.
Confirmando a ideia de que os campeões costumam ser quem melhor defende e menos golos sofre, este Porto de Sérgio Conceição apresentou uma ótima média de 0.67 golos sofridos por jogo.
Uma marca que deixa para trás 10 campeões deste século e por exemplo bate claramente a do Benfica campeão da época passada (0.91 golos concedidos por jogo).
É igualmente fundamental salientar aquela que tem sido apontada como uma das armas mais importantes do Porto de Sérgio Conceição: a capacidade de reagir rapidamente à perda de bola, recuperando muitas bolas perdidas.
A intensidade e agressividade características deste Porto ficam, também, patentes no facto de ser o conjunto de topo com o maior número de faltas cometidas, e de estar entre as mais fortes nos duelos aéreos.
Estes dados apontam para o Porto como a equipa mais competitiva e mais intensa da prova, dimensão em que fica claramente à frente do Benfica. Não será por acaso que os portistas venceram os dois confrontos diretos com as águias, acabando também por fazer o pleno de triunfos nos 4 jogos da liga contra os grandes de Lisboa, algo que até hoje em toda a história dos dragões só Mourinho conseguira, em 2002/03.
Destaque ainda para a importância do fator-casa na conquista portista: apenas 5 pontos perdidos no Dragão em 17 jogos, enquanto o Benfica perdeu 13 pontos na Luz no mesmo número de partidas.
Benfica e Bruno Lage - uma queda imprevisível
Como referimos atrás, nunca uma equipa perdeu tantos pontos numa segunda volta do campeonato, estando envolvida na luta pelo título, como o Benfica desta temporada.
Até à jornada 19, o Benfica de Bruno Lage vencera 18 dos 19 jogos realizados na liga. A que juntava, ainda para mais, 18 triunfos nos últimos 19 encontros da liga anterior, sempre sob o comando de Bruno Lage. Ou seja, 109 pontos conquistados em 114 disputados.
E de repente, o descalabro: 22 pontos cedidos em 36 possíveis.
É muito difícil explicar tal catástrofe desportiva. Em termos estatísticos, dois fatores se destacam: a perda de eficácia no aproveitamento das oportunidades, com a equipa a baixar de uma média notável de 42% nas primeiras 24 jornadas (até à paragem provocada pela pandemia) para cerca de 22% nas últimas 10 rondas do campeonato.
Igualmente decisivo no tal momento da verdade neste campeonato - a retoma da prova - foram os comportamentos opostos de Porto e Benfica em termos defensivos.
Após sofrerem 2 golos em Famalicão no encontro da retoma, os dragões não concederam qualquer tento nos 5 jogos seguintes e apenas 1 nos 2 jogos posteriores a estes (face a Tondela e Sporting), o que muito contribuiu para a melhor série do Porto na prova.
Pelo contrário, o processo defensivo do Benfica colapsou na retoma: após sofrer 14 golos nas primeiras 25 jornadas do campeonato, as águias concederam 10 golos em 5 jogos (2 do Portimonense, 1 do Rio Ave, 4 do Santa Clara, 2 do Marítimo e 1 do Boavista).
Os encarnados perderam assim o estatuto de melhor defesa do campeonato e enquanto o Porto se manteve nos 18 golos sofridos desde a jornada 26 até à 30ª, o Benfica passou de 14 golos concedidos para 24 neste período.
Lutas pela Europa e pela manutenção: até ao último minuto...
Não é propriamente uma novidade que as grandes decisões relativas ao apuramento para as provas europeias e à manutenção/descida de divisão durem mesmo até ao fim do campeonato.
Desta vez, no que diz respeito à qualificação para a Liga Europa a disputa foi dividida em duas: por um lado, a luta pelo 3º lugar (que dá acesso direto à fase de grupos da prova), entre Braga e Sporting; e a luta pelo 5º lugar ("europeu" uma vez que os finalistas da Taça de Portugal são os dois primeiros classificados: Porto e Benfica), envolvendo Rio Ave, Famalicão e Vitória de Guimarães.
No caso do 3º lugar, o Sporting (que terminou a época com Rúben Amorim como treinador), teve o "pássaro na mão" mas deixou-o fugir, quando perdeu os primeiros pontos em casa em toda a segunda volta no empate a zero com o aflitíssimo Vitória de Setúbal, na penúltima jornada.
O objetivo voou definitivamente para longe (para Braga, que fora treinado por Rúben Amorim antes de partir para Alvalade), devido à 6ª derrota leonina fora de casa (na Luz), e à vitória caseira do Braga sobre o Porto.
Note-se que os bracarenses venceram o campeão nos 2 jogos do campeonato entre as duas equipas (foram a única equipa a ganhar no Dragão), e ainda conquistaram a Taça da Liga na final contra o Porto.
Na busca do 5º lugar final, foi o Rio Ave a ser mais forte, ultrapassando o Famalicão nos descontos de tempo da última jornada (devido ao golo sofrido pelos minhotos em casa do Marítimo). As duas equipas tiveram um bom regresso à competição depois da paragem, conquistando 17 pontos cada uma, ficando apenas atrás de Porto (22), Benfica e Sporting (18). Mas para o Famalicão não foi suficiente.
O que não retira ao "Fama" o estatuto de equipa-revelação da liga 19/20, uma vez que ocupou a liderança da prova até à 8ª jornada, apresentando sempre um futebol de qualidade e muito competitivo. Convém lembrar que os famalicenses estavam há 25 anos afastados da I Divisão.
Deve aliás, referir-se que as equipas que estiveram envolvidas nesta luta pelo 5º lugar, Rio Ave (treinado por Carlos Carvalhal), Famalicão (João Pedro Sousa) e V. Guimarães (Ivo Vieira), foram as mais elogiadas pelos comentadores ao longo do campeonato em termos de qualidade de jogo e atratividade do futebol praticado.
Também a luta pela manutenção, que envolveu nas últimas jornadas Portimonense, V. Setúbal, Tondela, Belenenses e Paços de Ferreira (uma vez que o Desportivo das Aves, minado por problemas estruturais profundos que chegaram a por em dúvida a sua presença nos derradeiros encontros da liga, cedo soçobrou), foi plena de emoção até ao fim.
O grande animador desta disputa foi o Portimonense, que à 24ª jornada (a última antes da paragem) tinha menos 6 pontos do que o Paços de Ferreira, a primeira equipa acima da linha de água. O conjunto algarvio, que pouco antes passara a ser treinado por Paulo Sérgio, realizou uma recuperação fantástica e esteve mesmo à beira da salvação.
O momento decisivo terá acontecido em Alvalade na penúltima jornada, quando o V. Setúbal arrancou um empate milagroso (acabou por valer a pena contratar Lito Vidigal para a reta final do campeonato...). Esse ponto dos vitorianos recolocou o Portimonense em zona de descida, aí entrando na derradeira ronda, sem depender de si próprio. E a condenação confirmou-se.
Numa abordagem mais geral à luta pela manutenção, será importante registar os 17 pontos conquistados por Portimonense e Paços de Ferreira (os mesmos de Rio Ave e Famalicão) nas últimas 10 jornadas (as da retoma), assim como 15 os somados pelo Marítimo, contra somente 6 do V. Setúbal, que só ficou à frente do Aves (4) na classificação virtual da segunda "vida" do campeonato.
Os jogadores mais valiosos
No que toca aos destaques individuais da liga 19/20, e sempre com base nos números, é impossível fugir a um nome: Pizzi.
O benfiquista foi mesmo o jogador mais influente da prova, com 18 golos e 14 assistências, a que junta ainda outras 6 participação em jogadas de golo. Ou seja, Pizzi teve envolvimento direto em 39 golos na prova, qualquer coisa como 55% dos tentos da sua equipa. Claramente, não foi por culpa de Pizzi que o Benfica não foi campeão...
Mas igualmente impressionante é a regularidade de médio encarnado nas últimas 2 temporadas, já que na liga passada também fora o mais influente do campeonato, com 13 golos e 19 assistências...
Assim, temos que Pizzi somou 31 golos e 33 assistências em 2 ligas consecutivas. Notável.
Em termos de influência em golo, o segundo mais valioso do campeonato foi o portista Alex Telles (11 golos, 8 assistências e outras 10 participações em jogadas de golo), com envolvimento direto em 29 dos 74 golos do Porto, o que corresponde a cerca de 40%...
De entre os campeões, justificam ainda uma palavra os desempenhos de Corona (envolvimento decisivo em 23 golos), Marega e Otávio (ambos com participação direta em 22 tentos).
Merece ainda destaque, pelas razões óbvias, o avançado brasileiro do Benfica, Carlos Vinicius que, segundo o jornal A Bola, que atribui a "Bola de Prata" (o prémio para o melhor marcador do campeonato), marcou 18 golos, mais um do que o seu companheiro Pizzi e do que Taremi, do Rio Ave.
Quadros: os "dois" campeonatos 2019/2020
Até à 24ª jornada (paragem devido à pandemia)
As últimas 10 jornadas (sem público nas bancadas)