O dia em que o Jamor cruzou futebol e política: o golo que "se calhar não valia a pena ter feito" na "Taça da liberdade ganha por todos nós"
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Por estes dias, o futebol e a política têm-se cruzado no tempo. No fim de semana passado, o Sporting foi campeão nacional um dia antes de os portugueses irem às urnas para as eleições legislativas e, no próximo domingo, os leões enfrentam o Benfica na final da Taça de Portugal, num palco em que o futebol e a política já se cruzaram na ação há 56 anos. A TSF falou com dois dos protagonistas desse capítulo da história.
Corria o ano de 1969. Às 17h00 do dia 26 de junho, Benfica e Académica entravam no relvado do Estádio Nacional, no Jamor, para jogar a final da Taça de Portugal. Mas algo era diferente do normal.
"Nós, que estávamos do lado do Benfica, fomos surpreendidos com o esse dia da final. Mas reparámos que o ambiente era, de certa forma, diferente. E eu tive a oportunidade de perguntar ao Vítor Campos, que éramos ambos os capitães de equipa, porque cheirou-me a qualquer coisa e ele respondeu-me: ‘Bom, olha, não te vou dizer nada, tu vais ver’", recorda António Simões, antigo jogador do Benfica, em entrevista à TSF.
Meses antes, Alberto Martins, então presidente da Associação Académica de Coimbra, pediu a palavra num evento em que participavam altas figuras do Estado Novo, incluindo o Presidente da República, Américo Tomás, e nasceu aí a crise académica. Entre manifestações e greves às aulas, no mês de junho os estudantes de Coimbra faziam greve aos exames.
"A final da Taça vem num momento muito particular, quer dizer, num momento quente da greve a exames e, portanto, a direção da Associação Académica, dos estudantes, a própria equipa da Associação Académica entendeu aproveitar com a força do futebol, a força social do futebol, e imagética simbólica do futebol e real do futebol para dizer que a Academia de Coimbra estava em luta", explica Alberto Martins também em entrevista à TSF.
Os jogadores da Académica eram, na sua maioria, estudantes da Universidade de Coimbra, por isso estavam alinhados com a greve, e nas meias-finais já se tinham manifestado.
"A Associação Académica, em momentos anteriores, eliminou o Sporting e trajou de branco, na altura, com o equipamento da Académica com uma lista no emblema, uma pequena faixa, um adesivo preto, a dizer que estávamos luto. A Federação Portuguesa de Futebol na altura proibiu depois que no estádio na final houvesse a alteração do equipamento e a Académica entrou no estádio com as capas compridas sobre os ombros, em sinal de luto, em passo lento, no que foi acompanhada pelo Benfica e foi um momento muito forte", relata o antigo presidente da Associação Académica de Coimbra.
António Simões lembra-se de os adeptos da Académica protestarem contra o regime nas bancadas, desfraldando tarjas. E tiveram a ajuda dos benfiquistas.
"Aquelas tarjas grandes que diziam ‘menos guerra e mais educação’, isso aparecia e desaparecia com a cumplicidade da massa associativa do Benfica, dos adeptos do Benfica", descreve.
Um ato que, conta Alberto Martins, já estava planeado: "Coimbra estava em peso, a cidade, os estudantes, a Oposição Democrática, os estudantes de Lisboa estavam em peso e no intervalo, num momento determinado, nós fizemos sair e percorrer no estádio faixas, perante o desespero da PIDE à procura. A PIDE só conseguiu, vejam o significado, prender quatro estudantes de Coimbra e três de Lisboa."
Por causa dessa mobilização dos estudantes, o regime anteviu que poderiam existir manifestações fortes no Estádio Nacional e precaveu-se.
"Bem, a ditadura que se premuniu, porque, pela primeira vez na história, não esteve presente nem o Chefe de Estado, nem a televisão. A televisão, também pela primeira vez, não deu a final da Taça, com medo dos acontecimentos. O estádio estava cercado com a Guarda Republicana a cavalo. Dizem-me, eu não vi, que havia alguns jipes com metralhadoras em determinados locais. Eu não vi isso, mas vi os cães polícias, polícias por todos os lados", conta Alberto Martins.
E quanto ao jogo jogado, como é que a bola rolava? "A oito minutos do fim do jogo, a Académica estava a ganhar 1-0. O Manuel António, nosso colega que é médico posteriormente, marcou o 1-0 e era uma alegria brutal, mas passado três ou quatro minutos, o Benfica marcou um golo. Foi um centro do Eusébio e o Simões, de cabeça, marcou um golo que era pouco vulgar. O Simões já foi um jogador excecional, de grande qualidade. De qualidade técnica, futebolística e humana. E marcou um golo de cabeça que era uma coisa rara no Simões", diz, entre risos, o antigo dirigente da Associação Académica de Coimbra.
Um golo que provocou uma mistura de sentimentos em António Simões: "Foi um golo que me marcou porque levei a equipa para o prolongamento e depois o Eusébio fez o segundo golo e ganhámos. Mas parece que em Coimbra nunca ninguém me perdoou. E às vezes eu começo a pensar e digo assim: golo abençoado, golo maldito. Há este conflito dentro de mim, por causa daquilo que era o grande objetivo de Coimbra, dos estudantes. Nós nunca devemos deixar de estar prontos de haver algum arrependimento. Eu não me arrependi de fazer o golo. O que eu acho é que, se calhar, não valia a pena ter feito. Contente por um lado e não tão contente por outro."
O jogo acabaria por ir a prolongamento e aí foi Eusébio a decidir o vencedor. O Benfica acabaria por conquistar essa Taça da Portugal, mas houve uma união entre ambas as equipas no final da partida.
"Mas houve uma coisa muito bonita que aconteceu nesse dia que é, após o jogo, nós damos uma volta de honra com as camisolas trocadas e entregámos também a Taça, durante um período e um percurso do relvado, como que estivéssemos a partilhar com a Académica o valor daquela taça e o valor daquilo que aconteceu", traz à memória António Simões.
Para o antigo jogador das águias, essa final foi um passo importante para a liberdade: "Foi um dia em que eu acho que o 25 de Abril nasceu nesse dia. E ainda hoje eu penso, caso a Académica tivesse ganho essa Taça de Portugal, francamente não sei o que é que teria acontecido."
Alberto Martins também não consegue imaginar o que teria acontecido se os estudantes tivessem conquistado a prova rainha do futebol português.
"Eu creio que os protestos não iriam ser mais fortes, mas o que se iria passar no estádio podia ser violento. Quer dizer, o estádio estava cercado, portanto, nós iríamos fazer uma festa brutal com toda a gente. Não sei como é que uma ditadura repressiva iria atuar, isso é uma incógnita. Quando eu digo a brincar que não sei o que é que iria acontecer, podia acontecer", teoriza.
E para o antigo presidente da Associação Académica estava guardado um papel importante nessa festa: "Na altura não sabia que havia essa indicação. Acho que o Artur Jorge combinou com o Vítor Campos - eles eram amigos, nós éramos todos amigos, dávamos todos bem - que se a Académica ganhasse iam à superior sul buscar o presidente da Associação Académica para dar uma volta ao campo com a vitória. Bem, seria um momento muito difícil para todos nós, para a para a Académica, para mim próprio e para todos."
A unidade de todos foi o que marcou a memória de António Simões.
"O que mais me impressionou foi a cumplicidade entre os estudantes e a massa adepta do Benfica. E claro que todos nós naquele momento fomos um só. Há uma final, há um confronto, mas há uma comunidade", recorda.
No fundo, em poucas palavras, Alberto Martins resume da melhor forma aquilo que se viveu naquele dia 26 de junho de 1969: "Foi uma Taça ganha pelo Benfica, mas essa foi uma Taça da liberdade, ganha por todos nós."