No regresso, escutaram os ecos de uma revolução em Portugal.
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Carlos Pereira relata na TSF a viagem dos jogadores do Sporting à República Democrática Alemã (RDA). No regresso, escutaram os ecos de uma revolução em Portugal. O regresso demorou muito mais do que estava previsto.
A viagem não começou bem porque nós deveríamos ter eliminado o Magdeburgo logo com o resultado em casa. Tivemos oportunidades para levar uma vantagem bastante dilatada. Falhámos uma grande penalidade e perdemos dois jogadores fundamentais para o segundo jogo. Yazalde, que viria a ser o melhor marcador da Europa naquela temporada, e também Dinis.
Terça-feira, 23 de abril de 1974, viagem para a Alemanha de Leste
Até mesmo a viagem para lá foi muito complicada. Naquela altura havia que atravessar várias fronteiras até chegar à RDA. Quando chegámos ao hotel não havia comida suficiente para uma equipa como a nossa, uma equipa de jogadores profissionais. Foram momentos difíceis, mas lá nos arranjaram uma comida algo imprópria no que diz respeito à qualidade.
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Nessa noite dormimos mal. As camas do hotel não eram as ideias para nós, atletas. Em suma, um processo elaborado para minimizar as condições para uma equipa como a do Sporting, condições anormais para uma equipa profissional. Foi algo bem diferente do que aconteceu com o Magdeburgo em Lisboa, onde tiveram todas as condições necessárias.
O primeiro jogo em Alvalade:
Quarta-feira, 24 de abril de 1974, dia de jogo
Um campo muito pesado, muita lama, a chover, depois de dormir mal. Mesmo já a acabar poderíamos fazer o 2-2 e conseguir chegar à final com o AC Milan. Foi uma machadada em todos os jogadores. Ficamos muito frustrados porque estávamos a jogar uma meia-final. Do ponto de vista desportivo tínhamos clara vantagem.
Com o decorrer do jogo superamos as ausências de Yazalde e Dinis. Tivemos uma jogada de Tomé, no final da partida, em que a bola saiu junto ao poste, bateu-lhe na canela.
Ficha de jogo: Magdeburg 2-1 Sporting CP (1-1 na primeira mão em Alvalade)
Damas (cap); Manaca, Vitorino Bastos, Carlos Alhinho, Carlos Pereira (sub, 64' por Joaquim Rocha); Vagner, Paulo Rocha (sub, 81' por Tomé), Baltasar; Martinho Mateus, Nelson Fernandes e Chicotreinador: Mário Lino
Quinta-feira, 25 de abril de 1974, a longa viagem
Dormimos mal naquela noite após o jogo com o Magdesburgo. Quando já estávamos na fronteira da Alemanha Oriental para a Alemanha Ocidental, mesmo no muro de Berlim, o guia que ia connosco ouviu umas notícias na rádio. Lembro de ele dizer: "houve um golpe de Estado em Portugal". Mas nós não ligamos nada àquilo. Estávamos frustrados com a derrota, dormimos mal, estávamos mal alimentados, não demos a devida importância à situação.
"Fomos para Frankfurt onde tínhamos voo direto para Lisboa. Mas acabámos por aterrar em Madrid, o que achámos estranho, a viagem não era aquela".
Em Madrid, alguns funcionários da TAP nos descreveram o que se passava em Portugal. Aliamos a tal notícia do golpe de Estado ao que nos disseram. Falava-se de um país em guerra, de canhões, misseis, mortes. Só sabiamos que as fronteiras estavam fechadas, e não havia telemóveis, claro, nada sabiamos das nossas famílias. As notícias que surgiam descreviam o pior possível, mortos e uma situação de guerra.
Seguimos viagem para Badajoz de autocarro, numa viagem horrível até à fronteira com Portugal. Na fronteira, em Elvas, não nos deixaram entrar. Ficámos num hostel, porque era difícil encontrar quartos. Havia um batalhão de jornalistas que queria cobrir o que estava a acontecer. Os hotéis próximos estavam todos ocupados.
Sexta-feira, 26 de abril de 1974, o alívio
Naquela noite, dormiram apenas nas camas os jogadores que tinham jogado o jogo todo com o Magdesburgo. Os outros ficaram sentados cá embaixo, nas mesas, no chão, nas escadas do hostel. Não conseguimos pregar olho. Estávamos muito assustados com a situação, entramos em pânico com aquelas notícias.
Foi junto à fronteira que João Rocha, o presidente do Sporting, deu conta que, depois de um contato com o Governo em Portugal, nós tinhamos finalmente a autorização para regressar a Portugal. Havia jogo no fim de semana com o Belenenses, no domingo seguinte [28 de abril de 1974, estádio de Alvalade].
Por fim, lá passámos a fronteira. Estávamos esfomeados quando chegamos a um restaurante em Elvas. Aí lá nos deram notícias mais suaves sobre o que se passava, que não era algo assim tão dramático. Ficamos mais tranquilos.
O autocarro do Sporting foi nos buscar a Elvas. Regressamos a Lisboa onde estavam as nossas famílias à espera. O que mais queríamos era perceber como estavam as famílias. Estava ali um mar de gente na porta 10A. Nós já tínhamos esquecido o Magdeburgo porque o mais importante eram as nossas famílias, saber que estava tudo bem.
Nas semanas seguintes sentimos grande apoio do público. Aconteceu logo no jogo com o Belenenses. Os adeptos percebiam que tínhamos passado por uma viagem longa, frustrante, com o peso da derrota com o Magdesburgo, mas, sobretudo, com a incerteza sobre o que estava a acontecer em Portugal, sobre as nossas famílias.
Essa temporada ainda hoje é recordada pelos adeptos do Sporting. Fomos campeões nacionais, ganhamos a Taça de Portugal. Yazalde foi Bota de Ouro.
Mas hoje posso assumir que nós, jogadores profissionais, não ligamos muito à situação no país. Estávamos numa fase em que poderíamos ser campeões nacionais, estávamos muito concentrados nos jogos, cada partida era uma final. Talvez por isso não tenhamos dado ao assunto a importância devida.
Final da Taça de Portugal, Sporting 2-1 Benfica: