O xadrez joga-se com os olhos nas pontas dos dedos na freguesia lisboeta de Marvila
A TSF foi conhecer a Associação Promotora de Emprego de Deficientes Visuais que, a convite da Federação Portuguesa de Xadrez, deu corpo a um projeto de desporto adaptado que dura desde 2022
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A Associação Promotora de Emprego de Deficientes Visuais (APEDV) dá aulas de xadrez para cegos há três anos, na Junta de Freguesia de Marvila, em Lisboa. A ideia partiu da Federação Portuguesa de Xadrez (FPX), que foi bater à porta da associação e assim fez nascer um projeto que todas as semanas junta dois grupos, durante a manhã, para aprenderem a jogar com tabuleiros e peças adaptadas.
Encontrar a Associação não é tarefa fácil, mas, por sorte, encontramos um dos professores à porta do prédio. É Alexandre Roxo, um dos dois docentes da FPX que dá aulas na APEDV. Passa pouco das 09h00 quando subimos ao primeiro andar e entramos na sala, já com os tabuleiros a serem preparados. As mesas vão-se compondo e vai-se dando os “bons dias” à medida que as pessoas vão entrando.
A montar o estaminé, além de Alexandre, está Margarida Coimbra, a outra professora da Federação de Xadrez que abraçou este projeto. “Vimos todas as semanas”, às segundas-feiras, começa por esclarecer. As aulas são divididas em dois grupos, que jogam durante uma hora e meia cada, entre as 09h30 e as 11h00 e depois até às 12h30. Aqui jogam os alunos da associação, que oferece formação profissional em parceria com o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), mas também os membros cegos do Centro de Atividades e Capacitação para a Inclusão (CACI), que dá apoio a pessoas com doenças cognitivas e está localizado no andar de baixo.
“Normalmente temos perto de dez pessoas por grupo”, revela Margarida. Hoje, vão ser nove. Os alunos instalam-se e não perdem tempo. Começam de imediato a jogar e os professores vão saltando de mesa em mesa para ajudar quem precisar e dar alguns conselhos. À primeira vista, podia parecer um grupo normal, mas um olhar mais atento rapidamente revela que, aqui, o xadrez dispensa os olhos, graças a tabuleiros e peças especiais. “Há casas altas e baixas, para distinguir as cores do tabuleiro, e as peças têm um pino [que encaixa nas casas]: as pretas têm também um ‘pontinho’ em cima e as brancas são lisas, para podermos distingui-las”, explica Moab Filho, brasileiro e membro da associação que vem aqui jogar todas as semanas. De lado, estão escritos em braile os números e as letras que identificam as casas do tabuleiro.
Moab está a jogar com Thess Maia, a namorada. São ambos brasileiros e alunos do curso de inteligência artificial da associação e todas as semanas vêm aqui passar a manhã a jogar xadrez, mas nenhum é cego de nascença. “Eu fui dormir e no dia seguinte, quando acordei, já não via”, revela Thess, que a vida toda batalhou contra a diabetes, mas só perdeu a visão a meio da Universidade, enquanto estudava Enfermagem, na Escola de Saúde Egas Moniz, em Lisboa. “Foi um descolamento da retina”, esclarece.
Já Moab nasceu com cataratas congénitas, mas a cegueira acabou por surgir como consequência de uma operação que não correu como previsto. “Não vejo absolutamente nada do olho esquerdo e vejo pouco do olho direito”, tudo por causa de um glaucoma, uma doença que ainda não tem cura e que acabou por tirar-lhe a visão em pouco tempo. “Creio que, ao fim de cinco ou seis meses…, isto já estava mal”, confessa.
O amor pelo xadrez acompanhava Moab ainda antes de perder a visão. Já Thess confessa que, ao início, “detestava”, mas lá ganhou o gosto pelo jogo. E, assim, o que começou como uma diversão acabou por virar rotina, ao ponto de já apostarem cafés com outros amigos da associação, o que dá lugar, não raras vezes, a algumas brincadeiras. “Com o Moab não, porque ele ainda vê um pouco, mas quando jogo com alguém que também tem pouca visão… dá para fazer umas ‘batotas’”, confessa Thess, entre gargalhadas.
Apesar de divertido, a professora Margarida Coimbra explica que começar a jogar xadrez sem poder ver nem sempre é fácil. “Primeiro, têm de aprender as direções, perceber o que é ‘para a frente’ e ‘para o lado’, o que até acontece com relativa facilidade, mas as diagonais são mais complicadas ao início”, confessa. E ensinar também não é pera doce, sobretudo quando os jogadores ainda têm alguma visão, pois, muitas vezes, tentam ver o tabuleiro, em vez de tateá-lo. “É um processo”, admite a professora, mas, nisto, as aulas continuam há já três anos.
Enquanto jogam xadrez, a APEDV vai dando apoio na busca por trabalho. “Temos as burocracias necessárias, mas, no geral, todos os que nos batem à porta são atendidos e encaminhados”, assegura a coordenadora pedagógica Graça Hidalgo. Uma missão que, apesar de alguns entraves, garantem estar a ser cumprida. “Além de formar, tentamos mudar mentalidades e mostrar que estas pessoas podem ser excelentes profissionais. Só precisam de uma oportunidade para mostrarem que são capazes”, conclui.
