Esta é a história de Allison Wagner, a nadadora que perdeu o ouro em Atlanta 96 para Michelle Smith, que estava dopada. Competir contra batoteiras "não era nada de novo", lembra. Mas desta vez foi...
Corpo do artigo
Tinha 16 anos quando começou a nadar entre as nuvens. Estava no topo da natação, era um dos grandes trunfos dos Estados Unidos. Dois anos depois, em 1996, chegaram os Jogos Olímpicos, em casa, e a pressão era muita. Allison Wagner só não trincou o ouro em 400m estilos porque a irlandesa que acabou à frente estava dopada. Tratava-se de Michelle Smith, que adulterou a urina com whiskey e que também terá recorrido a esteroides. Wagner, com a derrota espalhada por todos os ossos, perdeu-se durante dez anos, desistiu de viver. Estava habituada a nadar entre batoteiras, mas aquele ouro perdido arruinou-lhe a mente... e a conta bancária.
Allison Wagner, de 40 anos, esteve na Web Summit para falar sobre a queda da imagem imaculada dos Jogos Olímpicos. Em entrevista à TSF, a ex-atleta olímpica meteu o dedo na ferida e contou a sua história.
Quando é que começou a nadar?
Quando tinha sete anos, na Virgina. Aprendi lá e juntei-me à equipa de natação da cidade.
Havia algum sonho?
Não, era só uma miúda atlética e competitiva. Encontrei um desporto em que era muito boa e eventualmente o meu sonho começou a partir daí. Antes tentei o futebol e softball.
Aos 16 anos foi nomeada a melhor nadadora para a revista Swimming World. Foi demasiada pressão ou estava tudo bem?
Uma nomeação de uma revista não me dizia tanto como um recorde mundial ou ganhar um campeonato nacional. Eu não estava a competir por essas nomeações, eu competia para ganhar. Aos 16 anos já estava no topo.
https://www.facebook.com/WebSummitHQ/videos/1596697737062931/
Dois anos depois, os Jogos Olímpicos. É o grande sonho, certo?
Sim, definitivamente. Num desporto como natação, claro, é o pináculo da performance.
Como era o treino?
Os nadadores treinam muito. Diria uma média de seis horas por dia.
A pressão permitia desfrutar?
Naquela altura eu já tinha competido contra atletas que se tinham dopado, por isso eu estava preocupada porque poderia acontecer uma coisa do género naqueles Jogos Olímpicos. E, infelizmente, aconteceu. Há muita pressão, especialmente quando entregas a tua vida a algo que queres que corra bem. Eu estava nervosa, mas eu estava sempre nervosa... Foi ótimo que os Jogos Olímpicos tenham sido em casa.
Ia perguntar se era ingénua, mas dizia-me que já competira contra atletas dopadas...
Eu era ingénua relativamente a quão corrupto o processo era, mas sabia que havia atletas dopadas entre aquelas com quem competia. Eu estava frustrada por elas poderem competir.
Falou com alguém na altura?
Eu nunca falei com os jornais, porque não queria ser perseguida como alguém que se queixava. Mas falei com a federação norte-americana de natação e basicamente disseram-me que não podiam fazer nada.
E no balneário, era possível ver sinais no corpo daquelas que se dopavam?
Bem... Pelos na cara, a composição da face também, a forma do maxilar. Viam-se marcas de injeções no rabo e até, às vezes, com uso de esteroides, era possível terem um clitóris maior. Eu vi todas essas coisas e fazia-me confusão. Quando vi isso nas atletas chinesas, elas não sabiam que estavam a ser dopadas. Bom, até certa medida, talvez. Mas viviam em negação. Elas não sabiam que lhes davam drogas e eram dopadas desde os 11, 12 anos.
É muito triste. Havia tantos efeitos secundários para a saúde. Elas nem sabiam que estavam a ser dopadas e têm de viver a vida toda sabendo que fizeram batota e que podem ter problemas de saúde. É uma situação diferente da mulher da Irlanda com quem competi: ela dopou-se. Isso é... menos triste. Mas mete mais raiva (risos).
0L1_Zaeo12w
Nesse dia, em 96, identificou alguma coisa no balneário?
Claro, vi os sinais. O corpo das pessoas muda e, quando muda drasticamente, tu notas. Reparei nos traços masculinos e na voz grossa. E nas grandes quebras nos tempos.
Isso mexeu com a sua concentração?
Não, eu estava habituada a isso. Não era nada de novo (risos). A minha prestação não foi ótima nessa corrida e nesses Jogos Olímpicos, mas não teve nada a ver com o estar distraída com as rivais dopadas. Teve a ver com outras coisas. Eu estava a lidar com um treinador exigente, num ambiente que me apoiava pouco. Eu estava cansada de competir nessa altura.
Ainda ganhei a medalha de prata, é bom, e teria sido ouro se tivesse sido uma corrida limpa. E ganhei por pouca vantagem à que ganhou o bronze, que teria sido prata. Ela era uma atleta incrível e foi uma grande honra correr contra ela e ganhar-lhe. Ela sentiu o mesmo. Não nos conhecíamos. Ela veio ter comigo e disse 'tu és a grande vencedora, parabéns'. Na minha opinião, os Jogos Olímpicos deviam ter a ver com honra. E isso foi uma troca de palavras com honra. É assim que deve ser.
Quando acabou em segundo, sentiu-se orgulhosa ou...?
Eu estava em choque, porque sabia que as atletas chinesas não estavam lá e por isso pensava que ia ser uma corrida limpa. Fiquei chocada porque, outra vez, acabei em segundo para quem estava dopado.
Soube disso naquela altura?
Sim! Quando estás entre o doping nas mulheres, consegues ver nos corpos. Não é assim tão escondido, especialmente se vires fotografias delas no ano passado. Pensas "bom, aquilo são drogas".
928583612349415424
Consegue compreender um batoteiro?
Claro. Nem sempre. Consigo compreender que querem ganhar e consigo relacionar-me com isso. Mas o que não entendo é como justificam quebrar as regras. Em todos os desportos há regras. O doping devia ser tratado assim, deviam ser desclassificados. Há substâncias banidas, por isso, se usam, não consigo compreender como acham que competem justamente. Como o Lance Armstrong. Ele pensou que todos se dopavam... Bom, isso deve ser verdade, o ciclismo tem grandes problemas. Mas não quer dizer que esteja bem.
Desculparia um batoteiro?
Claro. O perdão faz parte de um adulto maduro. Conseguiria perdoar, mas não íamos ser amigos (risos)
Conheceu ou falou com Michelle Smith?
Não. Depois daquilo, não... Por acaso tentei uma vez, já um tempo depois dos Jogos, mas não aconteceu porque ela não admitia. Não ia resultar nada daquela conversa.
Em 98 Michelle Smith foi suspensa por quatro anos. A Allison era muito nova, como é que aceitava o facto de ela não perder a medalha de ouro?
Eu fiquei muito afetada com isso, para ser honesta. Perdi esperança na justiça, no geral. Perdi-me no processo. Desisti da vida durante sólidos dez anos. Senti-me muito derrotada, por ter dado tudo a este desporto. Pensava que estava destinada a ter aquela experiência. Eu corri contra quem fez batota, eu não fiz batota. (...) Quanto a Michelle Smith, o tribunal disse que foram encontrados vestígios de esteroides na sua amostra de urina. Porque é que não a baniram por doping? Baniram-na por adulteração da amostra de urina [com whiskey]. É outro nível de injustiça. Competi também contra atletas chinesas dopadas e, num caso, uma foi apanhada uma ou duas semanas depois do Campeonato do Mundo e não lhe tiraram a medalha...
Vivi outras consequências negativas daquilo. Quando voltei dos Jogos Olímpicos, a minha bolsa foi-me retirada porque ganhei a prata e não o ouro. Isso não é normal. A minha vida foi completamente mudada por isso. Tive de pagar a universidade e devolvi todo o dinheiro daqueles anos. Perdi isso tudo por nada. As pessoas não sabem as consequências, não é só perder uma medalha. Há coisas que acontecem na vida. É por isso que quero que os atletas que ponderam recorrer ao doping que pensem em como a vida de outros vai ser afetada. Não estás ali só para ganhar, estás ali para competir com outros, num esforço conjunto. Esse atleta estará a ter impacto em todos, não apenas nele.
928276398430617600
O que pôs fim a esses dez anos de angustia?
Eu queria fazer algo com a minha vida outra vez. Decidi tentar com mais afinco...
Conversa com nadadores jovens?
Sim, às vezes. Gostava de o fazer mais, porque sinto que era uma boa perspetiva para partilhar.
Eles têm medo do que a Allison viveu?
Não sei. Penso que os jovens não acreditam que vai acontecer com eles, como tudo o que é mau. Mas, com o recente escândalo da Rússia, há mais provas do que nunca de que poderá suceder.
Tentou um regresso à natação. Porquê?
Sim, em 2005. Porque senti que não fiz o que queria no desporto. Tive a oportunidade de o fazer outra vez e pensei que já não ia para nova -- 'Se calhar posso rescrever a minha história'. Foi um pensamento ingénuo. Pensei mesmo que podia rescrever aqueles episódios negativos e transformá-los em positivos ao vivê-los outra vez. Não resultou, mas passei três anos a tentar (gargalhada). Mas fiz como quis. Quando era nova, fazia o que o treinador dizia para fazer e não o que eu queria. Pensei que seria uma boa forma de promover o meu interesse no desporto. Aprendi muito sobre lesões, sobre como corrigir o movimento. Foi fascinante.
Que faz agora?
Trabalho no marketing de uma empresa de produtos para bebés.
O que estudou?
Psicologia. Faz sentido... (risos)