Num artigo na primeira pessoa, o "arquiteto" de um autêntico conto de fadas na Premier League, revela como uma piza ajudou a mudar muita coisa, e como a história da equipa pode inspirar outros.
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É uma daquelas corridas desenfreadas de Kanté. O remate certeiro de Vardy. A finta que deixa o defesa por terra de Mahrez. O corte impetuoso de Wes Morgan. É o somatório de muitos anos de futebol, a junção de uma toda uma equipa que faz sonhar, mas que deixa os sonhos para os outros ("nós não sonhamos") e a única coisa que promete é "trabalhar muito". O texto que Claudio Ranieri escreveu para o site "The Players Tribune" é um tratado. De futebol, de humanidade, de simplicidade e humildade.
Ranieri tem 64 anos. Começou a ser treinador, depois de ter sido jogador (defesa), em 1987, no modesto Campania Puteolana. Depois da equipa de Pozzuoli foi para o Cagliari, e em três anos trepou da Série C até à liga principal, a Série A. Seguiram-se Nápoles, Fiorentina, Valência, Atlético Madrid, Chelsea, Parma, Juventus, Roma, Inter Milão e Mónaco. E a seleção da Grécia. Não é currículo pequeno. E são 29 anos de bancos. E isto só releva ainda mais as primeiras linhas do texto do italiano para o "The Players Tribute".
"Lembro-me da primeira reunião com o presidente, quando cheguei ao Leicester City, esta época. Ele sentou-se comigo e disse: Claudio, este ano é muito importante para o clube. É muito importante para nós ficarmos na Premier League. Temos de conseguir a manutenção.
A minha resposta foi: Ok, claro. Vamos trabalhar muito nos treinos e tentar conseguir atingir isso.
Quarenta pontos. Esse era o objetivo. Era o que precisávamos para nos mantermos na primeira divisão, para podermos dar aos nossos adeptos mais uma época de futebol de Premier League."
O homem que já se sentou no banco de equipas tão grandes, de nomes tão pesados, diz que nem a sonhar poderia imaginar o que lhe está a acontecer: o Leicester é primeiro, com 69 pontos.
"Inacreditável".
Ranieri prossegue:
"Tenho 64 anos, portanto não saio muito de casa. A minha mulher está comigo há 40 anos por isso nas minhas folgas tento estar com ela. Saímos e vamos até ao lago perto de casa, ou, quando nos sentimos muito aventureiros, vemos um filme. Mas ultimamente tenho ouvido o 'barulho' de todo o mundo. É impossível ignorá-lo. Ouvi dizer que até temos uns adeptos novos na América que nos seguem.
Eu digo-vos: bem-vindos ao clube. Estamos muito contentes por contar com vocês. Eu quero que adorem a forma como jogamos futebol e quero que adorem os meus jogadores, porque a aventura deles é inacreditável."
O treinador começa então a falar dos jogadores do Leicester. "Talvez já conheçam o nome deles agora. Jogadores considerados demasiado pequenos ou lentos para outros clubes grandes. N'Golo Kanté. Jamie Vardy. Wes Morgan. Danny Drinkwater. Riyad Mahrez. Quando cheguei ao primeiro dia de treinos e vi a qualidade deles percebi quão bons eles poderiam ser."
Sobre Kanté, médio de 25 anos, Ranieri conta que ele corre tanto, tanto, que o treinador pensou que só podia ter pilhas escondidas nos bolsos dos calções: "Hey, N'Golo, abranda. Abranda. Não corras atrás da bola a toda a hora, okay?", disse-lhe o homem que nasceu em Roma. A resposta? "Sim, patrão. Sim. Ok." Mas passados 10 minutos, conta Ranieri, "olhei e já estava outra vez a correr"... "Disse-lhe: 'um dia vou ver-te fazer um cruzamento e seres tu a ir lá cabecear'".
Mas o treinador sublinha que o médio francês não é a única chave do sucesso. Longe disso. "Jamie Vardy, por exemplo. Não é um jogador de futebol. É um cavalo fantástico. Tem uma necessidade de ser livre no campo. Eu digo-lhe, 'és livre de te movimentares para onde quiseres, mas tens de nos ajudar quando perdemos a bola. É só isso que te peço. Se tu começares a pressionar todos os teus companheiros vão seguir-te'".
Claudio Ranieri elogia o ambiente que existe no estádio e no clube desde o primeiro dia. A atitude do presidente, dos jogadores, dos funcionários e dos adeptos. Diz que os fãs da equipa entendem quando a equipa precisa de ajuda, quando não está bem, e é, sobretudo nessa altura que gritam mais, que aplaudem, que puxam.
Sobre o dia da estreia no campeonato, Ranieri revela o que disse aos jogadores, e que parece que eles têm levado à letra até hoje: "Quero que joguem pelos vossos companheiros. Somos uma equipa pequena, por isso temos de lutar com todo o nosso coração, com toda a nossa alma. Não me interessa o nome do adversário. Tudo o que quero é que lutem. Se eles forem melhores do que nós, 'ok, parabéns'. Mas eles têm de mostrar que são melhores que nós".
A palestra funcionou. O Leicester começou a ganhar jogos. Mas havia uma coisa que preocupava o treinador, ou não fosse ele italiano: a equipa sofria muitos golos, o que obrigava a terem de também marcar muitos para ganharem.
A receita? Piza!
Antes do jogo da décima jornada (4 vitórias, 4 empates e 1 derrota até aí) Ranieri decidiu desafiar os jogadores: vá lá, rapazes. Ofereço-vos uma piza se não sofrerem golos hoje."
"Claro, os meus jogadores não sofreram sofreram golos contra o Crystal Palace. 1-0."
Sim, a coisa funcionou, e Ranieri aproveitou para potenciar o feito. "quando chegámos à pizaria disse-lhes: 'vocês têm de trabalhar por tudo. Vão trabalhar pela vossa piza também. Vamos fazer a nossa piza."
Fizeram a piza, comeram-na, e levaram a lição, e o espírito de grupo, para o relvado. Ganharam, ganharam e ganharam. Nos 22 jogos seguintes conseguiram não sofrer golos em 12.
Agora faltam seis jogos, e o Leicester tem 7 pontos de vantagem sobre o segundo, o Tottenham. Mas nem por isso Ranieri se ilude ou deixa levar. "Os adeptos do leicester que conheço na rua dizem-me que estão a sonhar. Mas eu digo-lhes, "ok, vocês sonham por nós. Nós não sonhamos. Nós simplesmente trabalhos muito."
Mais do que futebol, mais do que ganhar, o italiano acredita que o percurso da equipa é uma lição, um incentivo: "Este é um pequeno clube que está a mostrar ao mundo o que pode ser alcançado com espírito e determinação. Vinte e seis jogadores. Vinte e seis cérebros diferentes. Mas um coração."
No fim, escreve Ranieri, independentemente do que acontecer, a história do Leicester será importante para todos os adeptos e para todos jovens jogadores a quem alguém um dia disse que não eram suficientemente bons.
"Basta manterem a mente aberta, o coração aberto, as baterias carregadas, e correrem livres."