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É a competição mais querida do panorama futebolístico nacional, a mais singular, a que mais aproxima as várias e diferentes latitudes, em forma de assimetrias, do futebol lusitano. A Taça de Portugal é, irremediavelmente, especial. Faz suspirar os adeptos dos mais diversos locais, de norte a sul, do literal ao interior, por um sorteio que dite a receção de um clube primodivisionário, por forma a, mais do que ter um dia diferente e especial, acalentar que o clube das suas origens se torne um «tomba gigantes» e salte, por um dia que seja, para a ribalta do noticiário nacional, para as capas dos jornais e para a abertura dos noticiários da rádio.
A final, no mítico Estádio Nacional, no Jamor, é uma espécie de cereja no topo do bolo, o perfeito abrilhantar de um espetáculo que encerra o calendário futebolístico nacional. O dia das grandes decisões inicia bem cedo, de madrugada, na Mata do Jamor. Assentam-se arraiais, dividem-se comes e bebes, adeptos com e sem bilhete fazem questão de estar presentes no dia mais desejado do ano futebolístico. É, por isso, mais do que um jogo. É convívio, é festa, é companheirismo, é o que de melhor tem o futebol.
A história, essa, já é longa. Esta popular competição iniciou em 1938/39, em Lisboa, mas no Campo das Salésias. Mais quatro vezes se realizou nesse local, intercalado com o Estádio do Lumiar, por duas vezes, ainda nos primórdios do futebol português, até a final ser disputada, quase ininterruptamente, no Estádio Nacional, a partir da temporada 1945/46. Quase, porque chegou a realizar-se por um vez no antigo Estádio José Alvalade e por quatro ocasiões no não menos saudoso Estádio das Antas, nas únicas vezes em que a final se realizou fora da capital portuguesa.
Foi nesse ano, então, de 1939, mais concretamente no dia 25 de junho, que tudo começou. Associação Académica de Coimbra e Sport Lisboa e Benfica proporcionaram espetáculo para a história nas Salésias, com sete golos, tendo o triunfo sorrido aos academistas por quatro bolas a três. A primeira Taça foi, então, para o centro do país, numa final entre dois clubes cheios de história no futebol português e que, trinta anos depois, proporcionaram a final mais extra-futebol de todas as 79 edições jogadas até ao momento.
No dia 22 do sexto mês de 1969, em pleno Estado Novo, os estudantes de Coimbra ameaçaram o regime vigente. A crise académica, que exigia um país melhor e «ensino para todos», levou a um protesto em forma de luto académico, que se prolongou à grande final do Jamor e fez do acontecimento desportivo mais popular do país extravasar para questões sociopolíticas. Foi uma espécie de manif à socapa, um pretexto para declarar a alto e bom som um Portugal livre e quase que uma declaração hostil ao regime na altura presidido por Marcello Caetano, já com António de Oliveira Salazar fora da cena política. A Primavera Marcelista, como era alcunhado o regime de Marcello Caetano, nesse dia foi de inverno e nunca as fundações do Estado estiveram tão ameaçadas. O resultado de 2-1, favorável ao Benfica, nessa tarde, foi o que menos importou. Porque outros valores mais altos, na altura, se edificavam...
A Taça é e sempre foi mais do que futebol e, como em tudo, há momentos bons e maus. O dia mais triste deste fenómeno acabou por acontecer nos anos 90. O pior do futebol veio ao de cima quando, desafortunadamente, a Taça de Portugal conheceu, in loco, a morte. Em 1996, na final entre os dois eternos rivais da capital Sporting CP e SL Benfica, um very light saiu, aquando dos festejos do primeiro golo benfiquista marcado pelo argentino Mauro Airez, direto para a bancada dos adeptos afetos ao clube leonino. Atingiu mortalmente um apoiante sportinguista e o resultado de 3-1 favorável aos encarnados não mereceu, compreensivelmente, os habituais festejos, porque de festa, esse dia, nada teve...
Os momentos bonitos e felizes, porém, foram numerosos, mesmo que muitos não tivessem chegado à mais desejada conquista do troféu. Foram cinco os clubes das divisões secundárias que atingiram a final. O última dos quais o Desportivo de Chaves, em 2009/10, mas também o Leixões em 2001/02, sob o comando de Carlos Carvalhal, na altura a militar o terceiro escalão do futebol nacional (II B - Zona Norte), algo inédito, o Vitória Futebol Clube, por duas vezes na Segunda Liga, em 1942/43 e 1961/62, o Estoril, em 1943/44, e o Farense, em 1989/90. Os Leões de Faro, nesse início de década de 90, defrontaram o Estrela da Amadora, numa das seis finais sem qualquer um dos denominados três grandes do futebol português - SL Benfica, FC Porto e Sporting CP. Finais que, inevitavelmente, tiveram coloridos especiais.
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De resto, nestas 79 edições foram 25 as equipas a atingir o palco dos palcos. Destas, apenas 12 venceram. Desportivo das Aves, Estrela da Amadora, Beira-Mar, Leixões e Vitória Sport Clube por uma vez, Académica e Braga por duas, Belenenses e Vitória Futebol Clube por três, Boavista por cinco, FC Porto por dezasseis, Sporting por dezassete e Benfica por vinte e seis.
A biografia da Taça é feita de vencedores, vencidos, sangue, suor e muitas lágrimas, mas há algo que transcende tudo isso. É um furacão de cheiros, sonhos e emoções, misturados com a natureza que escapa à ditadura do betão. É a aura especial do Jamor, é popular: é a Taça de Portugal.
André Rodrigues (A Economia do Golo)
Esta rubrica é uma parceria TSF e A Economia do Golo