"Tão disciplinados como atletas olímpicos." São cegos, jogam goalball e são iguais aos outros
Este foi o ano do goalball para Portugal: sagrou-se campeão da Europa "B". Venha conhecer uma modalidade do quase-silêncio, no Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. Ouça e leia aqui a Reportagem TSF
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“Quiet, please!” A partir daqui, não se ouve nada além do barulho da bola e indicações do árbitro. Espalhados ao longo da baliza, que ocupa a linha de fundo, todos são defesas e avançados, sendo que o objetivo é só um: fazer com que a bola entre na baliza adversária. Ninguém passa o meio-campo e para lançar só podem usar as mãos. No Pavilhão João Rocha, em Lisboa, treina uma equipa que em comum partilha a deficiência visual. Mesmo assim, todos jogam vendados e são “tão disciplinados como atletas olímpicos”.
Às vezes uma pessoa pode vir até nós, consegue ver o movimento e simplesmente imita. Neste caso não.
Do ginásio para a sala de treinos, encontramos agora um campo com 18 metros de comprimento e nove de largura, uma baliza que ocupa toda a linha de fundo e bolas azuis (diferentes pelo som que emitem). Os jogadores colocam a venda e, a partir de agora, concentram-se no meio do silêncio.
“Costuma dizer-se que as pessoas cegas ou com baixa visão ouvem melhor”, mas Rúben Portinha explica que “não é assim” tão linear: “Ouvimos igual ao comum dos indivíduos. Aquilo que acontece é que, na falta de um sentido, os outros acabam por trabalhar mais, não é?”
Rubén começou por praticar atletismo federado, mas sempre teve curiosidade em experimentar uma modalidade coletiva. Em 2008, através de um projeto destinado a jovens com deficiência visual, descobriu que era possível pertencer a uma equipa, jogar à bola e ainda representar Portugal. Se para muitos pode ser um “coitadinho” ou “um super-herói” que se supera todos os dias, “enfim, não é assim”.
À TSF, o atleta lembrou que “cada modalidade tem a sua exigência” e sublinhou que o mais importante é olhar para o desporto como uma das “mais poderosas ferramentas de ganho de autoestima, autoconfiança e inclusão, embora muitas vezes seja um dos parentes pobres quando falamos de políticas públicas”.
Ao lado de Rúben estão outros quatro jogadores — é dia de jogo para a equipa B, por isso, o treino de sábado conta com a equipa mais reduzida. À primeira vista, há quem estranhe num grupo de pessoas com deficiência visual utilizarem todos uma venda, ou uns não aparentarem ter, na verdade, tal limitação. Mas se falarem, por exemplo, com Hadiley Sacramento — mais conhecido por Hardi — tudo fica mais claro.
A jogar pelo Sporting há oito anos, Hardi encara, “desde o início do projeto, que cada treino é um desafio”. Aos 16 anos começou a ver mal, procurou fazer reabilitação, mas (e apesar de não parecer) só tem 20% de visão. O que é que isto significa? Entre risos, o atleta conta que talvez signifique que pode estar numa paragem de autocarro, precisar de perguntar qual o número da carreira e ouvir como resposta: “Mas és cego?”
A sociedade está habituada a que alguém que vê mal use óculos, ou se não vê que use uma bengala. As pessoas não estão habituadas a ambliopes ou baixa visão. Mas 20% ainda me dá autonomia para fazer o meu dia a dia, não usar bengala. Vejo sombras, vultos e círculos na rua. Não consigo é identificar pessoas
É para estarem todos em pé de igualdade que as vendas são usadas por todos os jogadores.
Outra particularidade do goalball são as marcações de campo e a bola. Impedidos de as ver, os atletas sentem as linhas — todas têm um cordão colocado por baixo da fita adesiva — e guiam-se pelo barulho (uma espécie de guizos) para uma melhor orientação espacial.
Agora, pausa para beber água. “Vamos preparar o campo e fazer um momento de jogo”, informa o treinador Duarte Correia, enquanto os jogadores vão formando as equipas.
Tudo pronto, “quiet, please” (silêncio, por favor), porque a regra é em inglês. Eles nada veem, mas quem está de fora tudo vê. Em campo estão duas equipas, cada uma composta por três elementos. Não se ouve nada além do barulho da bola ou indicações do árbitro. Espalhados ao longo da baliza, todos são defesas e avançados, sendo que o objetivo é só um: fazer com que a bola entre na baliza adversária. Ninguém passa o meio-campo e para lançar só podem usar as mãos. Ouvem-se dois apitos e todos ficam a saber que é golo!
“Somos tão disciplinados como atletas olímpicos. (...) Atletas paralímpicos também têm sucesso. (...) A nossa missão é mostrar que somos capazes e iguais aos outros”
Os ponteiros do relógio marcam agora 12h55, o que significa que faltam cinco minutos para o treino acabar. Os jogadores juntam-se para ouvir o treinador e antes de irem embora mostram através de um único grito o melhor que o goalball oferece: inclusão e união.
- Um, dois, três...
- ... Sporting!
Quem está aqui, mesmo o treinador, nunca olha para estes atletas com limitações. Pelo contrário, são atletas que procuram superar-se apesar de não terem acesso a todas as capacidades sensoriais.
Além das equipas masculinas (principal e B), o clube de Alvalade tem outra de formação que aposta nos mais novos. No total, a modalidade conta com perto de uma centena de participantes a nível nacional e, como explica o treinador Duarte Correia, é “importante” fazer com que o goalball não termine, já que quanto mais cedo as crianças “começarem a usufruir da prática desportiva mais rapidamente vão perceber os benefícios que traz para o seu dia a dia”.
Goalball cresce nas escolas, mas ainda é “muito difícil perceber se é feito um bom trabalho”
Quem concorda com Duarte Correia é o professor Rui Damas, da Faculdade de Motricidade Humana, não fosse esta também “uma modalidade muito bem recebida pelos mais novos”.
Ideia de um alemão e de um austríaco, o goalball foi criado em 1946 para reabilitar os veteranos da Segunda Guerra Mundial que tinham perdido a visão. É um desporto com História e que integra o paralímpico coletivo desde 1976, a partir dos Jogos de Toronto.
Nas faculdades há cada vez mais presença da modalidade. Pelo menos na perspetiva de Rui Damas, que considera que, a partir do momento que o aluno percebe como adaptar a prática ao goalball, “acaba por viver uma experiência prazerosa”.
Como é que, então, se aprende a lidar com quem não nos vê? Além da boa comunicação verbal, Rui Damas explica que “o treinador por ter de se socorrer a outras formas de transmissão”: feedback cinestésico e modelação tátil.
Pode-se descrever e dar pequenos toques. Tocar e, ‘olha, este cotovelo quando fazes este movimento tem de terminar esticado’ e o atleta, com o toque e com o feedback, percebe a correção que necessita de fazer. Outra forma, é eu ser o modelo. Imaginemos que estou a rematar e o atleta está a tatear partes do meu corpo ao mesmo tempo que é explicado o movimento.
Também nas escolas há uma crescente “normalização de pessoas com deficiência”, o que permite incluir as pessoas na sociedade, mas há um problema: “Não existe um agrupamento das pessoas com estas características. (...) O Ministério da Educação não tem conhecimento, nem partilha o número de pessoas com deficiência visual, nem onde estão.” Ainda para Rui Damas, “torna-se muito difícil perceber se é feito um bom trabalho” e, apesar da modalidade estar presente no Desporto Escolar, acaba por haver uma informação escassa sobre o goalball.
A TSF contactou o Ministério da Educação Ciência e Inovação sobre a questão, mas até ao momento não obeteve qualquer resposta. Também a tutela da Juventude e Modernização não respondeu até à data da publicação.
Este ano a seleção portuguesa de goalball sagrou-se campeã da Europa, garantindo um lugar no grupo A. A preparação rumo à Missão Finlândia 2025 começa de 3 a 5 de abril, em Berlim.