Um canadiano, um francês e um português entram num centro comercial... para jogar hóquei no gelo
Apesar de treinarem com patins em linha em rinques tradicionais ou em pistas de gelo provisórias, os portugueses Luso Lynx lideram a classificação de hóquei no gelo na Liga da Andaluzia, em Espanha. A TSF assistiu a um dos seus treinos.
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Os linces são animais extremamente difíceis de detetar e observar. Quase tanto como jogadores de hóquei no gelo em Portugal. Tarefa impossível é avistar um rinque de gelo no país: extinguiram-se desde que o último foi avistado, em Viseu, há mais de uma década. Então, onde é que, em Portugal, podemos ver ao vivo hóquei no gelo? Num centro comercial. E se tivermos sorte são os linces que jogam.
As lojas ainda não abriram, mas o treino dos Luso Lynx (Linces Lusos) - a única equipa portuguesa da modalidade - está quase a começar. Dentro de umas horas, a pequena e natalícia pista de gelo vai encher com as brincadeiras de fim de semana de pequenos e graúdos, mas por agora o assunto é mais sério.
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Laurent é médio dos Luso Lynx e aprendeu a caminhar e a patinar quase em simultâneo. "Aos três anos, em Paris, comecei a praticar patinagem artística, aos seis passei para o hóquei no gelo e joguei federado até aos 20", conta o francês à TSF.
Há dez anos mudou-se para Portugal, mas o que encontrou não foi exatamente o que procurava. "Fiquei surpreendido porque estava à espera de encontrar um pavilhão de gelo e não encontrei. Depois, descobri uma comunidade de jogadores que gostavam de hóquei no gelo, que para jogar se deslocavam fora de Portugal e juntei-me a eles," recorda.
No país não há pistas de gelo permanentes. Laurent explica que, por isso, há que aproveitar todas as oportunidades. "Treinamos hóquei em linha nas pistas de hóquei patins tradicionais - temos um campeonato para manter a forma - e vamos ao estrangeiro. O ano passado estivemos em Andorra, já fomos à Holanda. No fundo tentamos "agarrar" todos os torneios de gelo que conseguimos", remata o jogador.
"Contactos rijos"
Em Portugal há 50 atletas federados, de todas as idades, a praticarem este desporto rápido, que à primeira vista parece violento. Embora o francês garanta que é só mesmo aparência, sempre vai dizendo que, de vez em quando, é "rijo".
"Parece violento porque temos direito aos contactos físicos, mas o equipamento está muito bem adaptado ao jogo. Há poucas lesões, mas é verdade que parece violento porque é rápido e os contactos, por vezes, são um bocadinho rijos", explica o médio.
A pista em que nos encontramos é um quadrado com cerca de dez metros por lado, longe dos 30 metros de largura e 60 metros de comprimento dos rinques oficiais. Mas Miguel Paulo, avançado dos linces, assegura que "dá para matar o vicio".
A construção de um rinque de gelo permanente é uma reivindicação dos responsáveis e jogadores de hóquei no gelo que treinam regularmente com patins em linha, em pavilhões como o do Hockey Clube de Sintra, mas a solução pode estar para breve.
O jogador de 35 anos começou em criança a jogar hóquei em linha, há seis anos descobriu o gelo que rapidamente se tornou numa paixão, mas acrescenta que "se não fosse o Jim isto já tinha estagnado".
Rápido, divertido e protegido
"O Jim" é James Aldred um canadiano de 56 anos, ex-atleta profissional e selecionador português há três anos, cargo que acumula com o de treinador dos Luso Lynx. De resto, quando Portugal joga, para além dos equipamentos, as diferenças quase não se notam.
Os jogadores profissionais chegam a atingir velocidades superiores a 40 quilómetros por hora e, em 2011, o russo Denis Kulyas desferiu um remate que levou o disco aos 177.5 quilómetros horários.
Por isso não espantam as palavras do técnico: "Este é um jogo bastante rápido, entretém muito, mas também é um desporto seguro. Muita gente pensa que é perigoso, mas se olharmos para os jogadores eles estão bem protegidos, com capacete, máscara e todo o corpo está protegido. É um jogo divertido que arrasta multidões."
À conquista da Andaluzia
Em Portugal não há competição, o que levou os Luso Lynx a inscreverem-se na Liga da Andaluzia, em Espanha. Cinco vitórias e uma derrota, ao fim de seis jogos, garantem aos linces a liderança na tabela classificativa, mas o treinador diz que o mérito é todo dos jogadores.
"O trabalho que eles têm feito é incrível, temos que perceber que não há um pavilhão de gelo permanente no país. Estamos a treinar numa pista de brincar num centro comercial. É fantástico o que os Luso Lynx, a seleção nacional e todos os miúdos que estão a dar os primeiros passos têm feito", conta Jim Aldred sem esconder o orgulho pelo trabalho feito.
A Liga decorre até ao final de junho, por isso ainda é cedo para pensar em títulos, mas o presidente da Federação de Desportos de Inverno de Portugal (FDIP), Pedro Farromba, também não poupa elogios aos atletas. No entanto, a prioridade do dirigente é criar condições para o desenvolvimento desta e de outras modalidades.
"A Federação tem dois projetos: um é a criação de uma pista nas Penhas da Saúde, na Serra da Estrela. A candidatura já foi apresentada e aguarda aprovação pelo Turismo de Portugal. O outro, que está a ser negociado na região de Lisboa, é a instalação permanente de um pavilhão de gelo. Vai funcionar o ano inteiro e servirá para o hóquei, para a patinagem de velocidade, patinagem artística e queremos ver se conseguimos que sirva também para o curling", revela Pedro Farromba à TSF.
O projeto vai custar aproximadamente três milhões de euros e deve avançar em breve. Até lá, os Luso Lynx vão continuar a aproveitar a época natalícia para treinar em pistas de gelo instaladas em centros comerciais.
Esperanças olímpicas
Quando o treino dos mais velhos termina, entram em pista os pequenos Vikings - uma equipa de crianças que chega da Sertã. Também eles costumam jogar hóquei em linha, mas hoje vão treinar, no gelo, com os internacionais portugueses.
Nos últimos anos, a modalidade tem despertado a curiosidade dos mais jovens e Miguel Paulo salienta a importância destes treinos "para construir o futuro" deste desporto, enquanto vai ensinando os mais novos. Jim Aldred afiança que a reportagem da TSF está "a olhar par o futuro do hóquei em Portugal".
O hóquei no gelo é uma modalidade olímpica em que as equipas são constituídas por seis elementos: cinco jogadores de campo e um guarda-redes. Mas um formato de jogo alternativo deixa o presidente da FDIP otimista quanto às hipóteses olímpicas dos jovens portugueses.
Há poucos dias, em Lausana, na Suíça, terminaram os Jogos Olímpicos da Juventude. Pedro Farromba viu por lá uma nova forma de jogar hóquei no gelo, pela qual pode passar o futuro português da modalidade. "Foi feita uma experiência com equipas mistas de quatro jogadores. Se este modelo se mantiver para as próximas edições, acredito que podemos ter uma possibilidade de levar Portugal a estas competições", conta o presidente da FDIP.
O eterno retorno aos centros comerciais
O acesso a pistas de gelo é a maior dificuldade com que se depara quem quer praticar este deporto em Portugal, mas não é a única. A diretora desportiva dos Luso Lynx, Cristina Lopes, conta que todo o equipamento, (patins, luvas, sticks, capacetes, discos, etc) para os mais novos custa, pelo menos, 200 euros - o dos adultos fica acima deste valor - e tem que ser comprado no estrangeiro, habitualmente em Espanha.
Para limar a superfície dos patins que tem contacto com o gelo é necessário recorrer ao país vizinho. "Em Portugal não há máquina (para limar), nem maquinista" sintetiza Cristina Lopes.
Desde que no Canadá, em 1875, se jogou pela primeira vez se jogou hóquei no gelo dentro de num pavilhão, o desporto alastrou a países como Estados Unidos, Rússia, República Checa, Alemanha ou Suécia. No total são 81 as seleções, entre as quais Portugal, inscritas na Federação Internacional de Hóquei no Gelo.
Apesar de nunca se ter realizado nenhum jogo oficial em solo português, o hóquei no gelo chegou ao país quando, em meados dos anos 1990, foi construída, em Viseu, uma pista de gelo permanente. Na Beira Alta jogou-se com regularidade até que, em 2006, o desmantelamento do espaço ditou o fim da prática. Claro que o rinque beirão estava instalado... num centro comercial.
O último treino dos Luso Lynx no gelo já terminou. A pista já saiu do centro comercial e os linces esperam agora pelo próximo Natal para acorrerem aos centros comerciais, ou - melhor ainda - receberem um pavilhão de gelo no sapatinho.