No início dos anos 90 o Benfica e o FC Porto tiveram no ataque um senhor chamado Sergey Yuran, que se transformou no único a marcar por ambos os clubes em clássicos no Estádio da Luz.
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Sergey Yuran.
E abriu-se uma gaveta, certo? As campainhas da lembrança começam a tilintar, num furacão de sentimentos à bulha. Podemos meter as conversetas que quisermos no forno, colocá-las ao lado da garrafa de vinho e sentar à mesa com os génios da tática, da bola coberta e descoberta, do passe vertical e da defesa subida, mas nada abana um grupo de amigos como o "futebol de antigamente".
Yuran aterrou na Luz em 1991, depois de pedalar no ataque do Dinamo Kiev durante cinco épocas -- pouco depois chegaria uma dupla que ficaria na história: Shevchenko e Rebrov. Yuran jogou com Oleg Salenko, o tal avançado que faria história no Campeonato do Mundo de 1994, com cinco golos aos Camarões de Roger Milla (6-1).
No verão de 91 o Benfica de Eriksson recuperou um tal de Rui Costa ao Fafe, um miúdo de 19 anos com algum jeitinho para tocar a bola, e foi buscar dois soviéticos: Kulkov e Yuran. A equipa estava recheada de talento, com Magnusson, Rui Águas, Paulo Sousa e Vítor Paneira.
Depois de três jogos sem molhar a sopa, Yuran marcou quatro golos ao Hamrun Spartans na primeira eliminatória da Taça dos Campeões Europeus. Na competição mais especial do Velho Continente, o avançado soviético marcaria novamente ao Hamrun Spartans e só voltaria a fazê-lo contra o seu Dinamo Kiev, que seria goleado por 5-0 na Luz.
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No campeonato Yuran só marcaria seis golos, um deles ao FC Porto. Foi perante 90 mil adeptos, numa tarde de março. O FC Porto de Carlos Alberto Silva liderava o campeonato e visitava a capital para tirar a teima, caso houvesse alguma. O marcador só desenrolou aos 64': penálti, expulsão de Rui Bento. João Pinto, o lateral e capitão, assumiu: bola para a direita, Neno para a esquerda. O central William, de cabeça, empatou dez minutos depois. Yuran meteu água com um passe e a bola sobrou para Domingos, que lançou Kostadinov para o 2-1. Com assuntos mal resolvidos, e depois de um passe à "10" de Rui Costa, Yuran fuzilou a baliza de Vítor Baía, aos 85'. Os eternos rivais iriam dividir os pontos... Golo de Timofte, a um minuto dos 90. E com o pé direito, senhores.
Na época seguinte Mostovoi, um russo com muita pinta, chegaria ao balneário da Luz. Sobre a tripla que se acabava de formar, Toni, numa entrevista ao Expresso em 2014, deixou alguns desabafos. "O Kulkov, o Yuran, o Mostovoi! Olhe, dos três, o meu querido Eusébio dizia que o melhor era o Mostovoi. Eu achava que era o Kulkov, que era muito cerebral." Toni ainda estava encantado com os dois golos de Kulkov ao Leverkusen.
E continuou: "O problema, fora de campo, eram as noitadas. Aliás, nem eram as noitadas, mas o que eles faziam nessas noitadas. Lembro-me de o médico ter de ir a Santo António de Cavaleiros, onde eles moravam, buscar o Yuran. 'Tenho febre', dizia ele. Está bem, está bem. 'Se tens febre o doutor vai aí ver-te!' Sabia muito aquele. Há pouco tempo, ele reconheceu que, como treinador, nunca aturaria um jogador como ele. Pudera! (...) Não foi à toa que no FC Porto só os aguentaram um ano. Era muito difícil".
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E é aí mesmo que chegamos, a Yuran no Porto, após 18 golos na liga em três épocas de vermelho e branco. Estamos em 1994. O FCP de Bobby Robson, com Inácio e Mourinho como adjuntos, voltaria a ser campeão. Domingos seria o melhor marcador, com 19 golos. O primeiro golo de Yuran com o dragão cravado na camisola foi ao Benfica... no Estádio da Luz. E teve direito a expulsão e tudo. O ataque dos encarnados estava entregue a Caniggia e João Pinto, enquanto o dos visitantes estava reservado apenas a Yuran. O homem que trocou Lisboa pela Invicta marcou aos 66' e apenas um golo de Isaías em cima do apito final lhe roubou a promessa de uma estátua, nem que seja na memória dos portistas.
Yuran, que só marcaria mais golos a Vitória de Guimarães, Salgueiros, Sp. Braga e Sampdoria (de Eriksson), transformou-se no único homem a marcar pelos dois clubes no Estádio da Luz. Se alargarmos as contas a todos os jogos entre Benfica e FC Porto, Serafim (anos 60), Yuran e Maxi Pereira foram os primeiros "traidores" de serviço.