Em conversa com a TSF, Vicente Muglia (jornal Olé) explica que os dirigentes fizeram tudo mal. A seleção vive uma crise emocional e sofre de Messidependência. Qualificar para a Rússia será "milagre".
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Sem rumo fora do campo, com poucas ideias lá dentro. É assim que Vicente Muglia, do desportivo Olé, descreve o estado do futebol argentino. O jornalista e escritor ("Che Pep") revela a necessidade de uma refundação e espera que um eventual apuramento para o próximo Campeonato do Mundo não mascare as fragilidades de falências da AFA, a associação de futebol daquele país.
Critica a retórica do fracasso e a ditadura do êxito. "O futebol transformou-se num lugar de ganhadores e perdedores", lamenta. Muglia considera que, pelos dirigentes, a seleção não merece viajar para a Rússia no próximo verão, mas assegura que a equipa de Sampaoli não está assim tão mal. O argentino censura a Messidependência e fala num monstro que está a comer a cabeça dos atletas.
A Argentina está preparada para não ir a um Mundial? Não acontece desde 1970...
É difícil imaginar a Argentina fora do Mundial, pela tradição histórica, pelos últimos quase 40 anos em Mundiais, onde conseguiu dois títulos e duas finais [perdidas]. Seria um golpe muito duro para o povo argentino, que é muito futeboleiro, que vive o futebol com muita paixão. Mas se a Argentina ficar fora do Mundial não seria surpreendente, tendo em conta acontecimentos que têm vindo a suceder na Associação de Futebol Argentina (AFA). Nos últimos anos, a direção do futebol argentino tem estado numa grande crise desde a morte do presidente da AFA, Julio Grondona, com lutas eternas. Isso influenciou. Não é normal que uma seleção como a Argentina tenha tido três treinadores diferentes na classificação. Isso revela as más decisões que tomaram os dirigentes, que influenciaram o caminho da seleção. Sim, seria um golpe duro. Muita gente não está preparada para ver a Argentina fora de do mundial...
Há quem diga que seria melhor a Argentina não ir ao Mundial para se mudarem as coisas. Acredita no mesmo ou seria só uma tragédia?
Seria uma tragédia para todos os adeptos que vivem o futebol com tanta paixão, aqui na Argentina. O futebol é o desporto mais popular, de longe, até se confunde com uma causa nacionalista, em que está em jogo a pátria em cada jogo. Na realidade, é só um desporto dentro de um país.
Entende-se o que dizem alguns analistas deste momento da seleção. Eu, como jornalista, acredito que o futebol argentino deveria, desde a sua base, refundar-se. O perigo da seleção ir ao Mundial é a famosa frase de Julio Grondona: "tudo passa". Toda esta crise que hoje vemos seria tapada pelo êxito desportivo, por isso protagonistas e comentadores consideram que talvez fosse melhor a Argentina não ir ao Mundial. E isso levaria a uma crise profunda, que a a partir daí poderia ocorrer a refundação do futebol argentino. Mas eu, tendo em conta como está o futebol argentino, duvido que haja essa refundação... inclusivamente não indo ao Mundial.
Não há garantias de que tudo vai ser melhor se a Argentina não for ao Mundial. Se tudo mudasse, eu também preferiria que a Argentina ficasse eliminada, mas não há garantias. Mas posso dizer: estando ou não no Mundial, tem de haver uma mudança profunda no futebol argentino. Ou seja, respeitar projetos a largo prazo; não medir tudo em função de um resultado; um treinador não é bem-sucedido ou perdedor porque ganha ou perde um jogo. Chegámos a isso, o futebol transformou-se num lugar de ganhadores e perdedores, simplesmente pelo resultado e não pela avaliação de todo um processo de trabalho. Na Argentina domina o 'exitismo' [de êxito]. Custa encontrar trabalhos de largo prazo. O que importa é o jogo a seguir. Se um treinador perde dois jogos, o seu projeto que antes servia passa a não servir. Este mal de falar nos fracassos entrou nos adeptos. Nos últimos três anos a seleção chegou a três finais: final do Mundial e as duas finais da Copa América. Perdeu as três. Esta geração de jogadores foi catalogada por geração perdedora. Se eram fracassados por perderem três finais, que adjetivo lhes corresponde se ficam fora do Mundial. Imaginas?
Como é possível que uma equipa com Messi, Dybala, Di Maria e por aí fora tenha apenas 16 golos em 17 jogos? (ver aqui artigo sobre os golos argentinos)
É muito pouco e parece difícil de explicar, mas é muito simples. Porque a seleção argentina carece de um bom funcionamento, no coletivo. Ou seja, falaste de jogadores, de individualidades, mas, dentro de um coletivo, o funcionamento não ajuda a essas individualidades. É muito difícil conseguir que os argentinos que brilham e se destacam em Europa e nos seus clubes venham à seleção e rendam da mesma maneira quando não há uma equipa que tenha uma funcionamento que potencie esse jogador.
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Aí radica o principal problema: acreditamos que Messi é o salvador, parecia que a tática da seleção é dar-lhe a bola a Messi. Ele consegue potenciar as suas virtudes no Barcelona porque ha uma determinada quantidade de movimentos estratégicos e táticos dos seus companheiros para que Messi possa desenvolver a sua habilidade. Na Argentina não acontece isso: a seleção sofre de uma Messidependência. Na segunda parte contra o Peru (0-0) parecia que a estratégia era dar-lhe a bola. Não é solução porque, nas eliminatórias da América do Sul (as mais difíceis do mundo, para mim), o marcam com dois, três jogadores. Se Messi não tem companheiros que se desmarquem, que procurem os espaços, que cheguem a pisar a área, é muito difícil. Depende-se então da inspiração de Messi. Passamos a depender da inspiração e não do trabalho.
Sampaoli está a ser demasiado romântico ao impor, com pouco tempo, as suas ideias como no Sevilha e Chile ou depois de Edgardo Bauza teria que ser assim?
Não considero Sampaoli um treinador romântico. É um técnico muito trabalhador, que mostrou no Chile a sua grande capacidade para treinar. Sampaoli agarrou numa equipa que já estava em zona de repescagem. Ele tratou de instalar as suas ideias, mas é muito difícil para qualquer treinador que dirija a seleção argentina poder instalar uma ideia com tão pouco tempo de trabalho.
Dou-te um exemplo: este jogo com o Peru jogou-se quinta-feira, Sampaoli pôde trabalhar com todos os jogadores que convocou terça e quarta-feira. Dois dias para montar uma estratégia de jogo é insuficiente para qualquer treinador do mundo. E muito mais difícil é quando a Argentina tem um problema maior ainda: o fator emocional e mental. O grande problema nos últimos tempos passa pela cabeça dos jogadores. É uma equipa que joga com muita pressão e ficou comprovado que, ante a pressão, não se insurge, mas sim aprofunda essa queda anímica ante qualquer adversidade.
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Esse é o grande problema. Podemos dizer que contra o Peru (0-0) não jogou um grande jogo, mas, sem jogar bem, jogou melhor, foi melhor. Criou sete, oito oportunidades de golo e não as concretizou. Há muita impaciência e pressão do adepto e isso nota-se no campo. Se analisares as maiorias das jogadas de golo, os avançados no momento de definir chutaram ao corpo do guarda-redes. Apressados. E porquê? Pela ansiedade que come e devora a cabeça destes jogadores. Por exemplo, o Benedetto no Boca perde um segundo dentro da área para definir e colocar a bola longe do guarda-redes; na seleção não perde esse segundo e chuta sem pensar. O principal problema e o que Sampaoli tem de trabalhar para o jogo com o Equador é o fator mental. Nesse jogo têm de jogar aqueles que deem futebol, físico e mental. No campo têm de estar aqueles que gerem melhor a pressão. Um dos grandes problemas é a falta de confiança e a falta de rebeldia para reagir ante qualquer adversidade.
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E isso leva-nos à Bombonera (palco do Argentina-Peru). É que não costuma ser muito calma e paciente...
Não creio que as pessoas tenham pressionado os jogadores. Pelo contrário, foi muito de apoiar, de os animar. Não houve uma pressão negativa neste caso. Considero que seja completamente secundário o palco. Não considero que tenha relevância onde se joga, o importante é o que acontece no campo. Deu-se muita importância e relevância ao local, mais do que ao rival, às ferramentas para tentar ganhar-se o jogo. A Argentina ficou fora de um Mundial no campo do Boca. Há muita fantasia com o tema dos estádios. Não creio que Itália seja mais forte ou mais temível no campo da Juventus do que no Giuseppe Meazza. Não me parece que a este nível o fator do estádio jogue um papel tão decisivo como alguns quiseram fazer crer. Por aí também se vê outra falência desta federação: mudar o estádio a pensar que o problema era esse. Isso fala de uma direção que desconhece muitas coisas. Não está capacitada para ocupar o cargo que tem.
Parecia que a Bombonera ia marcar golos...
Eh, eh! Claro!
O que vai acontecer na última jornada?
Não sei (risos). Não sou adivinho. Não gosto de lançar prognósticos. O futebol tem essa magia de poder acontecer tudo, o impensado. Como todo o argentino, estou preocupado com o futuro da seleção. Mas mantenho uma dose de esperança pelo facto de a Argentina ter transformado em figuras os guarda-redes rivais nos últimos dois jogos.
Isso significa que bem ou mal, jogando melhor ou pior, não perdeu a sua capacidade de ter oportunidades de golo. A falta de eficácia é preocupante. Eu estaria mais preocupado se a seleção chegasse a este jogo sem as oportunidades de golo que tem tido. O Equador já está eliminado, isso não deixa de ser uma vantagem. Perdeu os últimos cinco jogos, não tem chance de chegar ao Mundial, é melhor que ter que defrontar outro rival que tenha possibilidades.
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Tendo em conta isso, tenho esperança que consigam concretizar as oportunidades e ganhem o jogo. Oxalá. Mas o meu desejo, como disse antes, é que não mandem para debaixo do tapete o processo de desinteligência, de desorganização do futebol argentino. Oxalá ocorram duas coisas: que se classifique e que também exista uma refundação, que se faça autocrítica, que não acreditem que fizeram as coisas bem por irem ao Mundial. A Argentina não merece ir. Se for, que não se enganem. Não há nada para festejar cá. Fez-se tudo mal. Se a Argentina for ao Mundial, será um milagre.