
Pedro Nunes/Reuters
Sporting perdeu com o Barcelona, em Alvalade, depois de um golo na própria baliza de Coates. Rui Patrício assinou duas manchas enormes, enquanto Bas Dost deverá dormir mal. Busquets foi genial.
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No domingo Lisboa fechou a Avenida da Liberdade para uma concentração de carros clássicos. Já perto do apito final, um casal aproximou-se de um Carocha contemporâneo de Franz Beckenbauer e Johan Cruijff, o tal que inspira Jorge Jesus. O homem era cego, caminhava devagar; a mulher, paciente, vestia um sorriso que ele só podia adivinhar. Deram uma volta ao carro: enquanto ela lhe dizia segredos, ele sentia com as mãos aquela carapaça vermelha, bonita. E lá foram à sua vida, rumo à geração de Pelé, Garrincha e por aí fora. É assim mais ou menos a vida de Busquets no Barcelona: o génio do silêncio que descomplica tudo, o "6" que é "5" como na Argentina, que vive obcecado pela melhor solução, que indica o caminho e ensina por onde ir. Se os outros fechassem os olhos, Busquets saberia guiá-los por todo o lado. Esta é a crónica do Sporting-Barcelona (0-1), que se escreve enquanto Digne e Mascherano dão umas voltas ao relvado e o hino da Champions preenche os lugares vazios.
O Sporting prometia coragem, cortesia de William Carvalho e Bruno Fernandes. Quanto mais juntos jogam, quanto mais tocam na bola, maior dimensão tem este Sporting muito interessante. Faltam talvez dois laterais de outro mundo para esta gente ter mais soluções na hora de fazer mossa a valer. Gelson é outro valente, a quem o desgaste vai roubando tino. Acuña até poderia ter sido melhor chave neste jogo, pois Piqué sofre mais com as dobras e transições defensivas do que Umtiti.
Muita gente veio ver Leo Messi. Isto às vezes é como ir a uma geladaria com o morango na cabeça, que acaba por estar escasso. Acabamos encantados com a manga e framboesa. Foi mais ou menos isso. Messi não esteve por aí além, e até perdeu a bola mais vezes do que é costume. Ele alheia-se do jogo, espera que o rival seja atraído para uma zona, para depois ele aparecer, qual mochileiro sem morada, para aproveitar um espaço. Falta referir que a manga e a framboesa são Busquets e Iniesta. O último, que faz aquele toque mágico de pé direito para o esquerdo, pam-pam, como fazia Michael Laudrup, saiu aos 80" debaixo dos aplausos justos de Alvalade. É puro futebol.
Na primeira metade do primeiro tempo, Messi e Suárez criaram perigo apenas uma vez cada um. Do outro lado, Piccini aventurou-se numa ocasião e Bruno Fernandes, que já deixa um estádio inteiro em suspense quando puxa a perna atrás, qual Sánchez requintado, chutou de longe, mas a bola parou em Umtiti. Na segunda parte voltaria a acontecer exatamente o mesmo. O português, dono de grandes golos este ano, mostrou frustração.
Muito perto do intervalo Jorge Jesus viu-se obrigado a trocar Doumbia por Bas Dost, por lesão do avançado africano. Mudava o chip: menos uma referência para o contra-ataque venenoso, ganhava-se uma referência (mais) posicional de qualidade. Mas o holandês, com Kluivert na tribuna de imprensa, sempre sorridente e com a mesma pinta com que jogava, tomaria uma decisão que valerá por 38 cafés. Será uma noite mal dormida, arriscamos dizer. Mas já lá vamos...
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O intervalo chegava e havia dignidade por todos os lados. Queriam todos jogar, quase não se viam chutões. Ninguém trouxe carta de pesados, não havia cá autocarros e camiões. Só uma bola para cuidar. Jesus respeitou a ideia do rival e o rival respeitou a filosofia que lhe mudou a vida. Ambos têm em Cruijff o génio inspirador. O Barça chegava aos 45" com 330/375 passes (88% acerto), enquanto os leões registavam 110/146 (75%). Para os que falam em jogo aborrecido, ao vivo tem outra dimensão. O passe, a receção perfeita, o terceiro homem a mexer, a piscar o olho. Ou então, Busquets, que tantas vezes é procurado como o farol que sossega, mas que aponta para um colega, para se passar a outro e ele a receber a seguir como terceiro homem. Génios.
Mathieu e Coates teriam uma noite (quase, quase) memorável, com exceção para o lance infeliz do uruguaio, que só queria evitar que o outro uruguaio (Suárez) marcasse. Foi logo aos 50 minutos. A bola pingou na área, raspou num e noutro, até que embateu em Coates, 1-0. O Barça, tímido, festejou.
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Coates, talvez ainda desconcertado, voltou a fazer asneira e o Barça isolou Messi. Quando o argentino, que todos os domingos (e quartas-feiras) leva um bocadinho da canhota de Maradona na dele, se preparava para fazer o golo, aparece o gigante Mathieu. Stop.
O jogo ia ficando partido, aqui e ali, mais durinho. Entrariam Jonathan e Bruno César para movimentar o lado esquerdo, enquanto Ernesto Valverde colocaria em campo Paulinho e André Gomes. Os quase 49 mil adeptos soltaram-se depois de um início em que estavam anestesiados pelo toque de bola catalão. A última meia hora seria de aperto para o Barcelona. O Sporting mostrou coragem. Jesus gesticulava. Aos 71 minutos, foram servidos 38 cafés a Bas Dost. É que o holandês apareceu na cara de Ter Stegen e... tocou para o lado, imaginando um colega mais perto. Teve medo? Foi demasiado altruísta? Bruno Fernandes mandou um pastel dos seus, mas Stegen já estava bem posicionado e resolveu bem. Conhecendo um pouco a mente dos avançados, aquilo vai moer o pensamento do holandês como um tubarão branco em miniatura.
Kluivert continua a falar para a TV espanhola, parecia elogiar os lisboetas. E bem. William demonstrou outra faceta esta noite, ao pressionar mais à frente por vezes, ao conduzir a bola, para queimar as linhas que às vezes ninguém queima. William é o Busquets português, o sheriff do sossego. Bruno Fernandes ajuda-o, mas Battaglia (voluntarioso e competente) não está para música clássica.
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Perto dos 90 minutos, o Barça parecia meter gelo. Tentava serenar as coisas. O Sporting ia quebrando fisicamente, daí alguns passes mal medidos de Bruno Fernandes e companhia. Messi estava há muito alheado, vai olhando para o chão, ameaça arranques, mas toca para o lado. Quanto mais recua, maior elogio faz ao rival (fê-lo muito até ao 1-0). Paulinho e os outros que pedalem agora. Rui Patrício esteve enorme em mais de uma vez, fez duas manchas tremendas durante esta partida, que evitaram tristezas desavindas.
Os adeptos puxavam pela equipa mais do que nunca. O ambiente estava arrepiante, foi um jogo repartido, disputado (apesar dos 69% de posse de bola e 652-252 em passes). Jesus mandava gente para a frente. Livre lateral para Bruno César. Último suspiro. Bola muito longa. Acabou em Alvalade: 0-1. Não há vitórias morais, é certo, mas há selos de qualidade. Há coragem e bom futebol. Há ideias. E este Sporting parece estar muito saudável de cabeça.