À espera de medidas do Governo que acelerem licenciamentos e dinamizem o setor das renováveis, que podem ajudar no combate à pobreza energética, Pedro Amaral Jorge, presidente da APREN, recusa especulações sobre as causas do apagão, um fenómeno que revelou a urgência de acelerar o reforço do sistema elétrico europeu
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As causas do apagão ibérico, em abril, apontam para um aumento de tensão em cascata observado no sul de Espanha, seguido de desligamentos súbitos de produção (em especial em instalações renováveis), que conduziram à separação elétrica de Portugal e Espanha do sistema continental, com perda de sincronismo e colapso de frequência e tensão. Esta foi a conclusão do grupo de peritos da Rede Europeia de Operadores de Transporte de Eletricidade, que investiga o colapso, divulgada numa reunião há 10 dias (ainda que o relatório final só venha a ser conhecido a 28 de outubro).
De acordo com a ERSE (Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos) que integra o painel, juntamente com operadores e reguladores de vários países europeus, este tipo de perturbação nunca tinha sido identificado como causa de apagão em nenhum ponto da rede europeia.
Há um mês, a imprensa espanhola indicava que o ponto de origem podia ter sido uma central de renováveis na zona de Badajoz, mas Pedro Amaral Jorge, presidente da APREN, afasta tal hipótese e defende medidas para reforçar a segurança do sistema elétrico europeu e a autonomia energética da União Europeia.
"Estive a ler o relatório e o que posso dizer é que, onde estava essa central, estão outros 2200 megawatts. Ou seja, é impossível fazer essa determinação, neste momento, com a informação que existe", afirma, em entrevista à TSF.
Para o lider da APREN, o relatório é conclusivo quanto aos eventos que ocorreram, mas não é conclusivo quanto à causa. Adianta que é possível "perceber que houve, na operação da rede elétrica — neste caso, no operador da rede de transporte espanhol —, alguma coisa que não correu bem, porque são eles que têm de fazer a gestão global do sistema em termos de produção e de consumo e de equilíbrio da rede, tal como a REN faz em Portugal".
Pedro Amaral Jorge realça ainda que o relatório indica quando começaram as oscilações de tensão e de potência, as implicações que isso teve na queda de frequência, concluindo que o sistema estava equilibrado e “só depois se regista uma sobretensão".
"Isso é um facto. Está lá explicado. Há uma queda de frequência. O sistema ibérico desliga-se do sistema síncronizado europeu e isso também está lá explicado. Agora, o que é que provocou esse desligamento terá de ser apurado, até do ponto de vista de apuramento de responsabilidades, não só operacionais, mas também judiciais", aponta.
Pode haver reclamações de clientes de eletricidade, ou de concessões de eletricidade sobre quem causou o apagão, isso não está ainda identificado. Refere que não se consegue atribuir a responsabilidade a um facto, a um evento ou a uma entidade específica, pois um fenómeno natural pode ser sempre acontecer. Mas a questão é saber que fenómeno foi esse. "Apenas sabemos que, por proteção, se desligaram, em primeiro lugar, um conjunto de centros eletroprodutores renováveis e não renováveis, na zona do sudoeste espanhol, na zona da Andaluzia e por ali abaixo. Agora, o que é que efetivamente causou isso, ainda não está apurado e há que aguardar as conclusões do painel de peritos, previstas no relatório final a apresentar até 28 de outubro", insiste.
Para já, nenhuma entidade avança se essa explicação vai apontar os responsáveis, ou se vai conseguir indicar a causa efetiva do apagão.
De qualquer forma, depois deste episódio, Espanha quer rever o quadro regulatório das obrigações de controle de tensão da rede elétrica, ou seja, que a partir de agora sejam os produtores de energia renovável a controlar a tensão da rede elétrica, hipótese mal recebida até agora pelos operadores no país vizinho.
Para Pedro Amaral Jorge, os produtores não podem controlar toda a tensão da rede elétrica, até porque essa é uma função do sistema global de energia. E explica que os promotores de eletricidade renovável podem aumentar ou reduzir a potência entregue e contribuir dessa forma para ter mais ou menos tensão e mais ou menos potência. Ainda assim, a gestão vai depender sempre do sistema global.
O apagão terá impactado também as zonas transfronteiriças de Andorra e sudeste de França, mas o presidente da APREN esclarece que o relatório dos peritos, até agora, nada refere sobre esses eventos em território francês. Considera, por isso, que o tema não passa de especulação e diz que “quando se percebeu que havia um problema com a queda de frequência na Península Ibérica, os sistemas de proteção desligaram a Península Ibérica do sistema europeu para não arrastar o sistema europeu". "Agora, o que é que se passou, não se sabe. Se houve algum evento em Andorra e em França que gerou este problema, isso também não está apurado, nem se isso foi causa de alguma perturbação no equilíbrio com a rede ibérica", sustenta.
A ministra do Ambiente, Maria da Graça Carvalho, há dois meses pediu à Comissão Europeia para pressionar França pelos atrasos nas ligações elétricas transfronteiriças, o que, para Pedro Amaral Jorge, é fundamental. O líder da APREN afirma mesmo que “é uma guerra antiga que a Península Ibérica tem há vários anos com França".
"Faz todo o sentido que as interligações aumentem a capacidade das mesmas. Porquê? Porque o desenho elétrico europeu tem três pilares fundamentais: ter mais incorporação de renováveis, ter otimização da rede elétrica existente e investimento em nova rede elétrica, quer de transporte, quer de distribuição, para que o sistema funcione da forma mais eficiente possível, beneficiando de trocas de potência em termos de países, e com isso conseguirmos equilibrar o sistema, sendo com fontes renováveis, ou não", explica.
E dá um exemplo concreto: “No inverno, podemos ter um dia de sol fantástico em Portugal, em que ainda estamos a produzir fotovoltaico e já é de noite na maior parte da Europa do Norte. Ora, poderíamos estar a exportar eletricidade, mas não estamos, porque não temos a capacidade de interligação. Se aumentarmos as interligações, equilibramos muito mais o sistema elétrico e o desenho feito pela União Europeia.”
A Comissão Europeia definiu como prioridade ter mais produção de renováveis, otimizar as redes e ter mais interligação, daí ser necessário Portugal pressionar França, "porque interessa à Península Ibérica, até para aumento da potência renovável, que possa contar com interligações que permitam escoar potência renovável para o resto da Europa".
Pedro Amaral Jorge adianta ainda que isso não interessa a França, por causa da base nuclear que o país tem e ficaria altamente não competitiva com os preços”. Acrescenta que esse pedido já foi feito várias vezes, mas nunca foi pedido na base de um apagão total da Península Ibérica. "Este motivo não é só mais um, por ser o que reúne o maior número de argumentos dos vários elos da cadeia de valor do sistema elétrico para tentar pressionar a França a, efetivamente, aceitar aumentar as interligações entre a Península Ibérica e o seu próprio território”, diz.
Com o apagão, a APREN veio a público defender a necessidade urgente de reforçar a resiliência do sistema elétrico europeu, importando saber o que falta ao sistema quando Bruxelas tem incentivado os Estados-membros neste domínio de apoio às renováveis.
Para o lider desta Associação Portuguesa de Renováveis, o tema centra-se num sistema verticalizado de cima para baixo, quando é preciso haver dezenas, centenas, ou milhares de pontos de produção de eletricidade a injetar no sistema elétrico. Afirma mesmo que “o sistema agora é muito mais complexo do que o tradicional sistema verticalizado" e garante que tal não tem que ver apenas com o facto de a produção ser mais ou menos, renovável. "se fosse de outra origem que não fosse renovável, a distribuição no território geraria o mesmo tipo de desafios", elucida.
"As renováveis têm um desafio acrescido, porque temos a variabilidade na produção do recurso, mas isso é tudo resolúvel, com medidas já implementadas desde 2019, como o armazenamento, que Portugal, felizmente, tem, com praticamente 4 Gigas de bombagem.”
Pedro Amaral Jorge adianta ainda que o país precisa de baterias e flexibilidade no consumo. “Mas isto não é magia negra. São problemas de engenharia concretos que têm de ser resolvidos, para os quais existe tecnologia e não vai ser isto que vai impedir a incorporação de renováveis, até porque já tivemos outros dias ibéricos com muito mais incorporação de renováveis e não tivemos nenhum apagão", vinca.
Para este gestor, existe um problema de gestão da rede num evento que nós não sabemos qual foi e que o problema é a gestão da rede. Não tem dúvida nenhuma, que a responsabilidade dessa gestão de rede, corresponde à rede elétrica espanhola, mas que os motivos que causaram efetivamente o apagão só serão conhecidos a 28 de outubro.
Mas sublinha que não é apenas para responder a situações de crise que avançam as medidas propostas pela APREN e sim para ter um mercado elétrico muito mais interligado. Esclarece que “uma das coisas que a União Europeia e a Comissão Europeia são más a fazer é comunicar as vantagens do sistema elétrico europeu, quando o sistema elétrico europeu com a incorporação de renováveis é um motor de aumento da competitividade de toda a indústria europeia e é uma forma de reduzir as emissões de CO2 no espaço europeu".
Para Pedro Amaral Jorge, tudo o que é preciso fazer é reforçar esse sistema elétrico. Quanto mais interligado estiver, quanto mais coletivamente se trabalhar, significará que poderá haver produção eólica na Alemanha, na Dinamarca, assim como produção solar em Portugal e Espanha. Tudo isso tem, contudo, de ser equilibrado e balanceado ao nível da União Europeia, pois traz uma vantagem competitiva ao reduzir a dependência de combustíveis fósseis.
"Como estamos a ver no atual contexto geopolítico, não é bom ter [essa dependência dos combustíveis fósseis], uma vez que, se existir um problema com o Irão novamente, e se fechar o estreito do Hormuz à distribuição, o preço do gás natural duplica. Ou seja, não faz sentido nenhum a Europa estar a pensar, até do ponto de vista do pacote para a defesa europeia, não ter independência energética, quando a energia é o fator determinante da soberania estratégica. E a única forma da Europa chegar à soberania estratégica, é ter soberania energética. É controlar as suas produções de energia. É controlar os seus custos de produção. É ter políticas que incentivem que essa energia é produzida em espaço europeu. É isso que vai aumentar a resiliência do sistema", garante.
Mas apesar desse caminho para a eletrificação, alguns países europeus ponderam investir no nuclear, já para não falar na Russia e no Reino Unido, que apesar de estarem fora da União Europeia, são vizinhas do continente. O Reino Unido anunciou, inclusivamente, um investimento de 46 mil milhões de euros na construção de uma nova central nuclear no leste de Inglaterra.
Pedro Amaral Jorge acredita que a Europa terá energia nuclear a partir de 2040 ou 2045, quando essa tecnologia estiver estabilizada, o que ainda não é o caso, uma vez que só existem testes-piloto e nada está implementado, tirando as centrais antigas que estão em funcionamento. Não é avesso à ideia, dizendo que “até devem continuar". "É preferível estarmos a utilizar eletricidade dessa fonte do que estarmos a consumir combustíveis fósseis e não há nenhuma mudança na política energética europeia. Até vamos começar neste momento a desenhar as metas para 2040", justifica.
O líder da APREN acredita que a Comissão Europeia, em conjunto com o Parlamento Europeu e com o Conselho Europeu, vai aumentar ainda mais a incorporação de renováveis, por ser a única forma de haver independência energética e soberania.
Quanto à questão da autossuficiência, quando os dados da REN indicam que Portugal tem vindo a bater sempre recordes consecutivos na produção de energias renováveis, reconhece que tên sido feitos investimentos a nível a energia solar, eólica, hídrica, entre outras fontes, mas recusa quem defende que, tendo o país já essa capacidade, não deve utilizar o que produz apenas para consumo próprio e optar pela exportação.
Esclarece que o país até pode produzir 80% de eletricidade de fontes renováveis e o consumo ser apenas de 71%, mas tem de importar de Espanha o restante, e tal é possível porque existem interligações. "Se conseguir suprir com o armazenamento e com as renováveis, a totalidade do consumo em Portugal, eu não me vou isolar do resto da Europa, nem de Espanha, porque isso não faz sentido, de acordo com as diretivas europeias. Grande parte das horas que estamos a importar é quando os preços estão a zero e esses preços estão a ser utilizados para beneficiar os consumidores de eletricidade. Para permitir bombagens, para voltar a ter os nossos sistemas de armazenamento em potência máxima. Isto tudo, numa lógica económica de benefício para os consumidores de eletricidade. Não faz sentido nenhum eu fechar o sistema e, depois, quando não tenho renovável, tenho de ligar ciclos combinados e estar a poluir, a comprar licenças de emissão e a consumir gás natural. A lógica do sistema elétrico interligado europeu é exatamente essa: é máxima incorporação de renováveis, equilíbrio no sistema", sublinha.
Dá outro exemplo: “Se eu tenho uma central fotovoltaica a produzir aqui e tenho uma eólica na Dinamarca, se tiver uma descida de potência em solo dinamarquês, posso aumentar a potência disponível aqui. É esse sistema hoje, que é dos mais complexos do mundo, que continua a ser trabalhado diariamente para termos essa ferramenta de competitividade da nossa economia e de soberania energética dos diferentes Estados-membros da Europa."
Pedro Amaral Jorge rejeita ainda a ideia de que o impacto desta aposta não é visível para o consumidor comum na fatura mensal da eletricidade, mas explica que "a tarifa da eletricidade tem quatro parcelas".
"Tem a componente de energia, a componente dos impostos e depois os custos de comercialização e de interesse económico geral e esses vão reduzindo. Isso vai-se refletir no preço. Quando olhamos só os preços que se pagam em Portugal comparativamente com a Europa e esses dados estão no Eurostat, não são nossos, então observamos que estamos abaixo da média da Europa, em termos de custos de eletricidade. Portanto, eu não percebo quando as pessoas dizem que não se reflete nos bolsos dos consumidores. Como é que não se reflete? A alternativa é que nunca foi posta. Se cortarmos renováveis e abastecermos toda a gente em Portugal com gás natural veremos que a fatura quadriplica", sentencia.
Os desafios que se colocam ao Governo nesta nova legislatura, para o presidente da APREN, passam por continuar a trabalhar no aumento da incorporação de renováveis e levar o país para um nível de competitividade elevado, apesar de Portugal ter já muita disponibilidade de renováveis e um baixo preço de eletricidade e de outros bens energéticos. Pedro Amaral Jorge também sugere ao Executivo que continue a atrair investimento, quer do lado da geração, quer do lado do consumo de energia renovável, dando o exemplo dos Data Centers e de novas tecnologias, como os fertilizantes verdes, ou produção de outro tipo de combustíveis. "É isso que temos de alavancar para a próxima década, pois gera aqui uma oportunidade de criar um ciclo económico virtuoso, com investimento, quer do lado do consumo, quer do lado da geração", assinala.
Acredita que já hoje o país tem condições para avançar neste domínio, “com a diplomacia económica concreta". "E aí é algo que o Governo tem de trabalhar, na atração de investimento, que está a olhar para Portugal, mas precisa de ter condições e garantias de que vai ter potência elétrica e que tal vai ser determinado e se possível tem que estar estruturado."
Para o presidente da APREN, é preciso acelerar e simplificar o processo de licenciamento de centros eletroprodutores de sistemas de armazenamento e “não andar aqui anos a arrastar o processo, só porque não temos o entendimento comum das entidades afetas ao licenciamento sobre a interpretação da lei. Tudo isso tem de ser melhorado". "Agora, nós temos já 80% de incorporação de renováveis na produção de eletricidade, ou seja, estamos num bom caminho. Portugal está sempre no top três ou quatro europeu, mas se me perguntar se podemos fazer melhor? Claro, que podemos fazer muito melhor. Se podemos fazer mais? Obviamente que podemos fazer muito mais", admite.
Defende ainda que é preciso criar um empoderamento regulatório, uma simplificação do processo de licenciamento e uma lógica do desenho de mercado que efetivamente traga para este espaço aquilo que permite produzir eletricidade e combustíveis renováveis, ou de origem não biológica, da forma mais barata possível, para aumentar a competitividade das empresas e contribuir para o rendimento disponível das pessoas.
Como prioridades, apesar das intenções manifestadas para novos investimentos, mais do que leilões a curto prazo, considera prioritário definir exatamente quais vão ser as condições do repowering para o eólico. "Porque precisamos de efetivamente ter as taxas EFDs, tal como aconteceu para os leilões do solar e precisamos fazer isso com a maior brevidade possível, pois conseguimos instalar praticamente 6 GigaWatts de fotovoltaico, mas nos últimos seis anos não chegámos a instalar mais de 300 MegaWatts de eólico e o eólico vai ser fundamental para aumentar a densidade energética no sistema de hibridização", diz.
Como necessidade de curto prazo, indica que as fontes que o país tem de incentivar rapidamente são todas as permitem armazenamento com bombagem, também para o aumento da potência eólica e ainda a continuação do aumento da potência fotovoltaica, a par de outras duas medidas que considera fundamentais — que é ter uma estratégia para armazenamento clara, com base em baterias hídricas de bombagem, e, a seu prazo, o hidrogénio verde, como vetor energético. Bem como ter implementadas as regras da participação do consumo no equilíbrio do sistema elétrico, ou, a chamada flexibilidade do sistema elétrico.
Preocupações estas que tem transmitido ao Governo, já nesta legislatura, assegurando que em todas as audiências que requereu foi recebido "com muita cordialidade e aceitação".
"Temos passado estas mensagens, não só de preocupação setorial, mas também numa lógica de percebermos que este setor pode contribuir para o desenvolvimento socio-económico deste país e contribuir também para o combate às alterações climáticas", atira. Conclui igualmente que as energias renováveis deixaram de ser apenas uma forma de combater as alterações climáticas para passarem a ser uma forma de lutar contra a pobreza energética, com preços mais baixos da eletricidade. "No fundo, são sinónimo de soberania e independência energética", remata.
