Cortiça pede mais políticas públicas e aponta "repovoamentos mistos com sobreiro" como "boa solução" contra incêndios
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Contra ventos e marés, a cortiça mantém liderança mundial. Apesar da quebra na ordem dos 2% nas exportações, da falta de mão de obra, dos atrasos do plano estratégico provocados pelas mudanças de Governo, dos impactos indiretos esperados com as tarifas, os incêndios pouparam a maior mancha de montado do país e o sector aponta agora para a diversificação e sustentabilidade a longo prazo.
A cortiça é um sector económico português que se mantém na liderança mundial a nível de produção e transformação, apesar da quebra nas exportações registada nos últimos dois anos. Em entrevista à TSF, o presidente da Associação Portuguesa da Cortiça (APCOR) acredita que essa é uma tendência que se vai manter por estar muito ligada à produção de rolhas para o vinho, que também tem vindo a registar quedas ligeiras.
Paulo Américo Oliveira realça mesmo que “a boa notícia é que felizmente Portugal continua a ter um sector económico como a cortiça, no qual é líder mundial, coisa que nos deve deixar orgulhosos, particularmente para nós, que estamos na fileira, sentimos não só esse orgulho, mas uma responsabilidade acrescida de continuar a manter este estatuto de líder mundial".
Ainda assim, o líder da APCOR reconhece que, nos últimos dois anos, o sector tem vindo a sentir um decréscimo das exportações, contrariando aquilo que tinha acontecido nos últimos 13 anos, atribuindo essa diminuição a vários fatores, sendo o principal a evolução do sector do vinho. Justifica que “a perda em volume foi, em 2023, na ordem de 15% e, em 2024, foi uma perda de valor de cerca de cinco, seis ou sete pontos percentuais e é um facto que as exportações de cortiça estão ainda muito centradas naquilo que é rolha e não podem ser dissociadas da evolução do negócio do vinho”.
Três quartos das exportações do sector são rolha de cortiça e um quarto são as outras multiaplicações. Nos últimos quatro anos, a produção mundial de vinho caiu cerca de 15% e, por sua vez, o consumo também tem revelado a mesma tendência. Nos últimos oito anos caiu cerca de 14% e conclui que “não há forma do sector da cortiça não sofrer com esta evolução do mercado do vinho”.
Este dirigente da associação representativa do sector aponta causas várias para estar retração, desde a mudança de estilos de vida, à promoção de hábitos de saúde mais saudáveis, que influenciam cada vez mais qualquer cultura à escala global e levam a um menor consumo de álcool. A questão geracional é outro motivo apontado: os jovens consomem menos bebidas alcoólicas do que as gerações mais velhas e há ainda a entrada no mercado de bebidas alternativas ao vinho.
Estes são fatores que, colocados num único racional, levam Paulo Américo Oliveira a constatar que o sector sofre com a evolução do mercado, traduzindo, assim, a quebra de exportações verificada ao longo de 2024. Estruturalmente, argumenta que a tendência mantém-se a avaliar pela descida detetada já em 2025, embora considere menos grave por, desde o início do ano, ter sido registada uma quebra de apenas 2%.
Garante que “o sector tem ações para tentar contrariar essa quebra".
Para já, em termos de posicionamento internacional, Portugal ainda tem uma quota significativa de mercado. É responsável pela produção de cerca de 50% da cortiça, também responsável por 70% da sua transformação, com uma importação muito forte de matéria-prima oriunda de Espanha e do Norte de África, o que dá ainda mais liderança ao país neste negócio e de uma maneira global
A cortiça ficou de fora do pacote de produtos europeus abrangidos pela aplicação das tarifas norte-americanas. Para Paulo Américo Oliveira, foi uma boa notícia, uma vez que os Estados Unidos são o primeiro mercado de consumo mundial de vinho e, cumulativamente, são o quarto mercado produtor de vinho, logo, um mercado absolutamente relevante para a indústria da cortiça portuguesa.
Nesse sentido, Paulo Américo Oliveira faz questão de fazer um agradecimento público “ao governo português, pelo papel determinante nestas negociações, à Comissão Europeia e à própria Administração Trump, pelo facto de ter aceitado os argumentos" do sector.
Nós não ganhamos 15% de competitividade. Nós evitamos 15% de custo. Ficamos, naturalmente, muito melhor do que ficaríamos, mas falta apurar se vamos ficar muito melhor do que estamos hoje. É evidente que ganhamos competitividade face a materiais alternativos no mercado americano, porque, por exemplo, o alumínio tem taxas de cerca de 20% a 25%
Mas há impactos indiretos das tarifas norte-americanas a ter em consideração, num sector em que 60% da produção são rolhas para garrafas de vinho. O gestor alega que estão em causa cem milhões de euros exportados por produtores fora da comunidade europeia e cerca de cinco mil milhões de euros em vinho exportado pela própria União Europeia para os Estados Unidos.
"Com uma tarifa adicional de 15% vai ter, necessariamente, impactos indiretos no consumo de vinho no mercado americano e nós vamos sofrer por essa via, não há a menor dúvida. As contas ainda estão por apurar se, de facto, vamos ficar muito melhor no futuro do que aquilo que estamos hoje. Na certeza de que pior não ficamos seguramente", garante.
A aposta na diversificação de produtos tem sido um caminho crescente. A transformação da cortiça trouxe uma panóplia de produtos, desde sapatos a malas e guarda-chuvas, que já mereceram até uma exposição no museu MoMA de Nova Iorque. Nesse lado da equação, ainda é cedo para perceber se há abrandamento nas vendas para o mercado americano. Fala de imensos problemas burocráticos para operacionalizar, do ponto de vista administrativo, este dossier, não do lado da União Europeia, mas do lado do Governo norte-americano. Na realidade, as tarifas só entraram em vigor no final do mês de setembro e, confrontado com a volatilidade das decisões do Presidente Trump, que podem trazer novas taxas no futuro, afirma: “Não temo, mas nunca fiando.”
Para já, suporta o otimismo na argumentação utilizada para ficar de fora do pacote de produtos europeus taxados.
Temos uma boa história onde a cortiça é protagonista, pois só existe numa determinada zona geográfica do globo, que é a Bacia Mediterrânea e. numa lógica de reindustrialização da economia americana, torna-se, de facto, difícil fazer esse processo quando a matéria-prima subjacente está no outro lado do atlântico e não há qualquer possibilidade, num curto espaço de tempo, de a replicar em termos de produção em território norte-americano
Por enquanto, a APCOR não antevê grandes alterações estruturais nos mercados finais, apesar do contexto internacional complexo, com duas guerras (Ucrânia e Médio Oriente) que “afetam as cadeias de valor, todas as cadeias logísticas e as tomadas de decisão dos operadores económicos". Paulo Américo Oliveira não antecipa nada que altere substantivamente, nos próximos quatro ou cinco meses, aquilo que foi a realidade vivida nos primeiros seis meses do ano.
Quanto ao que os compradores de cortiça podem esperar para 2026, o líder da associação afirma que o mais expectável será uma manutenção de preços, por várias razões: “Desde logo, do ponto de vista dos mercados finais, não existe um mercado crescente que permita à indústria promover aumentos de preços junto dos seus clientes finais e a estratégia deve ser de estabilidade e de crescimento de negócio, mais por via de volume e não tanto por via de valor.”
Dá conta de que, “nos últimos quatro anos, assistiu-se a uma roda-viva de preços".
De 2022 para 2023, o custo da cortiça aumentou cerca de 45%. A seguir, de 2024 para 2025, desceu cerca de 40% e hoje estamos perante uma campanha de 2026, com um nível de preço muito próximo de 2021. Fomos acima, viemos abaixo e agora continuaremos com uma senda de crescimento constante. O que espero fundamentalmente é que estas subidas enormes e estas descidas enormes, que não são boas para ninguém, para nenhum contexto de negócio, não se verifiquem. Que haja uma estabilidade de crescimento de preços, mas sustentável, que a indústria consiga absorver.
Confrontado com uma potencial guerra de preços, volta a reforçar a ideia de que o que cria instabilidade dentro do universo dos próprios produtores é o “sobe e desce de preços na ordem dos 45 a 40%".
"Ninguém gosta de estar num contexto de negócio onde uma das suas principais variáveis tem estas evoluções. Reação da produção florestal, haverá sempre. Não é uma guerra de preços, mas todos os anos, temos este confronto saudável de ter de negociar o preço da cortiça. Naturalmente uns esperam receber mais e outros esperam pagar menos. Atingimos um patamar em que eu defendo que a produção tem de ter uma remuneração constante, tem de ter uma estabilidade de evolução de preços. Não penso que estejamos no nível de guerra de preços ainda e espero que não venhamos a estar", diz.
Já no diagnóstico de um verão marcado pelos piores incêndios da década, com cerca de 250 mil hectares ardidos, a cortiça assegura que não foi dos sectores mais afetados. Paulo Américo Oliveira adianta que, nos últimos 15 anos, tendo em conta dados oficiais do ICNF, foram registados "um milhão e meio de hectares ardidos, quase o dobro daquilo que é área de montado em Portugal".
Ainda não temos dados totais fiáveis sobre a percentagem de sobreiro incluída nessa área ardida, fala-se de 2% ou 3%. Os únicos anos em que existem dados verdadeiramente com alguma fiabilidade sobre os hectares de montado que arderam são de 2022 e 2023 e rondou 1%. Mesmo que, tomemos por base de raciocínio, os dois ou três por cento este ano, na verdade, isto teria um impacto na produção de cortiça na ordem os quatro ou cinco pontos percentuais. São variações perfeitamente aceitáveis, mesmo sem incêndios, naquilo que é oferta da quantidade de cortiça.
O gestor sublinha a importância da geografia. "A concentração dos incêndios não aconteceu no Alentejo, onde está implantada a maioria da área de montado, mas, sim, no interior do norte e centro do país. A própria gestão florestal, feita pelos produtores, traduz-se no cuidado no sentido preventivo dos incêndios e, naturalmente, da própria espécie, uma vez que o sobreiro tem uma característica muito própria: resiste ao fogo. A cortiça tem uma camada térmica que isola a madeira daquilo que são os efeitos do fogo", explica.
O presidente da APCOR pede, por isso, mais das políticas públicas e garante que já transmitiu a mensagem ao anterior e ao atual Governo. Argumenta que “seria bom que as políticas públicas promovessem os repovoamentos mistos com o sobreiro como mecanismo de prevenção contra os incêndios".
Faz sentido, porque o sobreiro tem este papel e é necessário utilizá-lo como uma árvore autóctone, que, ainda por cima, nos configura uma lógica preventiva perante este flagelo dos incêndios. Parece-me ser uma boa solução para as políticas públicas florestais. Já fiz essa proposta aos governos. A recetividade foi boa, como sempre, mas depois, falta executar
Ao nível do investimento, considera que este continua a ser um setor apetecível e não faltam planos à APCOR, com várias iniciativas em execução e nos vários segmentos da cadeia de valor. Desde os mercados, à inovação tecnológica dos seus associados e até na produção de matéria-prima, depois de criada há três anos a FILCORK, associação interprofissional onde estão reunidos os interesses da indústria e da produção florestal, através de meia dúzia de associações de produtores florestais.
Garante que têm uma visão comum para aquilo que deveria ser uma política florestal nacional para os próximos dez a 15 anos, que tem vindo a discutir com o atual Executivo, uma discussão que já vinha de trás com o Governo socialista.
Para Paulo Américo Oliveira, só planificando é possível ver um futuro interessante que transforme o setor em algo ainda mais apetecível daqui para a frente.
Apesar de ao nível dos fundos comunitários, o acesso não ser fácil para os produtores, reconhece que “exatamente por não ser fácil é que a FILCORK, há três anos, desenvolveu um plano estratégico para a floresta, feito simultaneamente com as outras duas fileiras, do Pinho e do Eucalipto, no sentido de promover mais apoios de políticas públicas, assente numa visão ligada à recuperação daquilo que é o montado existente".
"Também com uma segunda dimensão, dedicada ao aumento de sobreiros e novas plantações, para ir ao encontro de uma necessidade de matéria-prima, a médio e longo prazo e ainda um terceiro vetor que cada vez ganha mais importância no meio, que é a remuneração dos serviços do ecossistema. Tínhamos estes três eixos de intervenção, nesta visão estratégica, e mereceria maior atenção de todos os agentes, porque o montado presta este novo serviço social, que não é remunerado. Hoje fala-se que começa a ser, pela via dos créditos de carbono, mas essa é só uma das camadas dos serviços do ecossistema. Esta é uma luta que temos que travar, enquanto fileira, junto dos poderes públicos e privados", refere, realçando ainda que a fileira da cortiça tem uma pegada de carbono negativa.
O stock de carbono do montado supera 20 vezes as emissões anuais da indústria. Paulo Américo Oliveira afirma que “esta é uma história que não é preciso ser romanceada".
O montado presta serviços inquestionáveis à sociedade, desde logo, serviços de provisão de matérias-primas, cortiça, madeira, ou qualquer outro tipo de produto, serviços de regulação, de prevenção contra incêndios, de combate à desertificação, de regulação do ciclo hídrico da água, de regulação dos ecossistemas, pois o montado é um dos maiores hotspots de biodiversidade do mundo. Detém carbono, quer em stock, quer em novas plantações. Nada disto é remunerado ao produtor florestal. Há, do nosso ponto de vista, um caminho a percorrer para alterar aquilo que é a equação de valor do montado. O montado não tem de ter valor apenas pela cortiça que produz. A monitorização destes serviços é um trabalho longo. Implica ação, mas é um caminho que vale a pena, no sentido de adicionar receita para a produção florestal. É uma luta, temos muito gosto em travá-la. Estamos nela e não vamos desistir.
Quanto a novas apostas internacionais, já com a França, os Estados Unidos, a Espanha no topo de destinos que mais compram a cortiça portuguesa, e do crescente interesse da Alemanha e do Reino Unido, a APCOR vai agora iniciar uma nova campanha de promoção internacional da cortiça. Nas quatro edições anteriores, investiu quase 36 milhões de euros e agora tem uma dotação orçamental de 3,5 milhões de euros. O líder da associação confirma que o maior investimento vai ser feito nos Estados Unidos, mas também em alguns mercados emergentes em que vê potencial de crescimento, como os países nórdicos e o Brasil.
O sector está ainda a apostar em tecnologia e sustentabilidade através do Centro Tecnológico da Cortiça, que definiu um roteiro próprio para a descarbonização da área industrial e que envolve todos os agentes e empresas ligadas à fileira, cada vez mais transversal no tipo de aplicações. No entanto, ainda há escassez de mão de obra, numa altura em que emprega cerca de oito mil pessoas com remunerações médias acima do salário mínimo nacional.
Para o presidente da APCOR, a captação de talento é um dos desafios, reconhecendo que não tem sido um sector tão atrativo como o desejado, em especial em matéria de pessoal qualificado, mas mantém a fasquia alta: "O principal desafio é crescer.”
Paulo Américo Oliveira mantém linha aberta para diálogo com a tutela, repartida entre os ministérios da Agricultura e da Economia e Coesão, e atento ao prazo de execução do novo projeto do Governo, o Plano de Intervenção para a Floresta 2025-2050, que prevê um investimento anual de 250 milhões de euros. Inclui a criação de unidades de gestão profissional, a simplificação da gestão da propriedade rústica e define 61 ações de curto prazo e 88 de médio prazo, para procurar integrar a propriedade rústica em Unidades de Gestão da Paisagem e garantir a gestão colaborativa do território, transformando a propriedade num ativo financeiro.
