O futuro pode passar pela banca especializada e aumento da competição entre instituições. E o Estado não pode ficar à margem do digital.
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A banca portuguesa não está preparada para apoiar as ideias e os projetos inovadores que estão a surgir na economia digital, concordaram os intervenientes do debate sobre O poder da economia digital, uma iniciativa dos Prémios Inovação NOS/Dinheiro Vivo/ /TSF, que juntou três entendidos na matéria: Miguel Santo Amaro (CEO da Uniplaces), Sebastião Lancastre (CEO da Easypay) e João Vasconcelos (conselheiro da Clearwater International).
A razão pela qual não tem sido a banca a apoiar projetos e startups que têm surgido em Portugal é explicada pelo CEO da Uniplaces, um desses projetos de sucesso que está já em 39 cidades europeias: "Não existe um histórico de empresas tecnológicas portuguesas, com raríssimas exceções, os casos que existem são pouco divulgados. A banca tradicional acredita em modelos já provados, onde existe um histórico, onde se pode analisar para extrapolar casos futuros."
Para Sebastião Lancastre, o problema só se resolve se em vez de bancos grandes houver bancos especializados, que trariam "competição e isso é a melhor coisa que existe. Os pequenos bancos que ainda temos foram os que deram lucro a sério. Porque se analisa muito bem antes de gastar cada euro".
A perspetiva de futuro não é muito animadora para os bancos tradicionais, foi a opinião unânime dos oradores do debate emitido esta semana na TSF. "Há claramente uma ameaça ao negócio bancário como nós o conhecemos. Mesmo a banca de investimento é brutalmente conservadora", defende o CEO da Easypay, instituição que permite várias opções de pagamento através de uma única plataforma.
Cerca de 90% do nosso dia-a-dia é feito a fazer pequenos pagamentos e transferências, para aqui e para acolá, e "é esse negócio que está ameaçado nos bancos. Brutalmente ameaçado", defende ainda Sebastião Lancastre. "E no dia em que os bancos perderem o transacionável, vão ficar com o quê? Com o crédito à habitação e automóvel?", questiona.
João Vasconcelos, ex-secretário de Estado da Indústria e ex-líder da Startup Lisboa, defende, por seu lado, que no futuro o que vai acontecer é que haverá "diversos serviços financeiros, mas não vai ser a banca a fazê-los. Se calhar vai ser uma empresa como a Amazon, por exemplo, que me vai fazer um crédito".
"No dia que aparecer uma fintech que nos ofereça um serviço muito mais ágil e que nos permita, em poucos dias, resolver os assuntos, porque os documentos já estão todos digitalizados, aí a banca vai sentir", conclui o CEO da Easypay.
Ainda esta semana, a secretária de Estado da Indústria, Ana Lehmann, afirmou querer que Portugal esteja na "linha da frente" na colaboração entre a banca e as fintech. O governo anunciou até a criação de um grupo de trabalho para as fintech, que começará a trabalhar na próxima semana. Ana Lehmann avisou, contudo, que "é preciso que a regulação acompanhe a dinâmica empreendedora".
Sebastião Lancastre está convencido de que os bancos "não têm aceleração para conseguir dar o que os clientes querem". Por exemplo, o tempo que demora uma transferência bancária. "Se tudo hoje é instantâneo, como é que um organismo, neste caso a SIBS, que trata das contas bancárias, precisa de uma diretiva comunitária que venha impor que passe a haver transferências instantâneas? Os bancos podiam já ter feito isso."
E os clientes estão mais do que preparados para essas mudanças. Aí não há dúvidas. "Enquanto consumidores, desde que nos resolvam os nossos problemas, aderimos e experimentamos", sublinha Sebastião Lancastre.
Sobre as moedas virtuais, as chamadas criptomoedas, João Vasconcelos não tem dúvidas: "Devíamos, neste momento, estar a aceitar criptomoedas para pagar impostos. Nem que seja por marketing do país, para dizer venham que este país é friendly da tecnologia, das empresas."
"Aquelas que serão as melhores empresas do mundo daqui a dez anos estão neste momento a ser criadas. Gostava que fossem criadas aqui. São empresas que estão a crescer a 200% e a 300% ao ano. Não vêm negociar esta ou aquela isenção fiscal, não estão para isso", defende o antigo secretário de Estado da Indústria.
Dando provas do seu perfil inovador, a Uniplaces prepara-se para entrar no mundo das moedas virtuais já no próximo ano. "Eu gostava de emitir [criptomoedas da Uniplaces] em 2018", admitiu Miguel Santo Amaro.
"A Uniplaces está atenta, acima de tudo, à tecnologia que está por detrás dessas moedas, o blockchain, que permite criar um contrato financeiro, legal ou digital, sem quaisquer intermediários", frisa o CEO da empresa tecnológica.
"Posso usar moeda Uniplaces para estudantes e senhorios. E vamos criá-la. Isso já se faz e nós queremos fazê-lo também: usar moedas da empresa para comprar aplicações nessa empresa", sublinha Miguel Santo Amaro.
Haveria necessidade de legislação 4.0 em Portugal para facilitar a vida às startups que querem vingar no mercado nacional? "Vai haver", responde, confiante, João Vasconcelos, explicando: "Esta é a primeira revolução de todas que podemos acompanhar. Não podemos ir atrás dos outros. No digital a nossa ambição devia ser sermos líderes."
Indústria financeira tem um forte entrave chamado regulação
A regulação das instituições financeiras é um dos principais entraves a que a aproximação entre os bancos e os negócios inovadores se faça, defenderam os intervenientes no debate O poder da economia digital.
"A indústria financeira está protegida por regulação, o que não acontece no comércio, no turismo, na indústria. Quando prestamos um mau serviço nesses setores, vem um concorrente e leva-nos o cliente. Na banca não", defende João Vasconcelos, conselheiro da equipa portuguesa da Clearwater International.
"A grande diferença da empresa do Miguel [Santo Amaro, Uniplaces] para a minha é que eu tenho um regulador e ele não", acrescenta Sebastião Lancastre.
O principal entrave, na opinião de João Vasconcelos, nem é tanto a a legislação portuguesa mas a europeia. "Este é talvez o único setor onde a Europa está em terceiro lugar no mundo. A China e os Estados Unidos já nos deram um baile. No comércio eletrónico, por exemplo. A Europa não consegue manter a sua inteligência, os seus empreendedores, os seus centros de saber e plataformas tecnológicas."
No entanto, o ex-secretário de Estado da Indústria faz questão de salientar que "o regulador não tem um papel fácil. O nosso [o português], muito menos, porque até há um ano estávamos a falar de sobrevivência e a ver se ainda tínhamos bancos". Como a banca tradicional não está preparada para ajudar este tipo de negócios, nos últimos dois, três anos, a Uniplaces - como outras empresas da área tecnológica - conseguiu "captar investimento internacional, o que lhes permitiu catapultar o negócio para fora de Portugal", explica Miguel Santo Amaro, adiantando que a captação de fundos europeus e de outros países tem crescido muito nos últimos anos.
Neste momento, a Uniplaces abdica do lucro para continuar a crescer. "Percebemos que existe uma oportunidade global", diz o responsável da Uniplaces. A ideia é ter elevados volumes de investimento sem uma fase lucrativa. "É preciso fazer crescer a estrutura para conseguir, daqui a dois ou três anos, alavancá-la. Como a Jerónimo Martins que investiu, durante anos, na Polónia e hoje é um player dominante nesse mercado. A tecnologia não é exceção", explica. A ambição da Uniplaces é alargar o negócio a outros países da Europa e mesmo para fora da União Europeia.
"Todos os anos há uma rapidez tal, que nos obriga a repensar o modelo de negócio de seis em seis meses, também a nível do recrutamento de talento estamos a competir numa plataforma internacional, ou seja, tenho de atrair talento de Londres, Berlim e EUA", conclui Miguel Santo Amaro.
Para o CEO da Uniplaces, não estamos a assistir, de forma nenhuma, ao fim da bolha de empreendedorismo em Portugal. "Pelo contrário, acho que é o início de uma oportunidade que Portugal deverá abraçar ainda com mais força", defende. Até porque "temos excelente tecnologia a nível do online em Portugal". E é preciso aproveitá-la.