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Para Luís Silveira Rodrigues, presidente da Deco a mensagem é clara, vivemos um tempo em que a sustentabilidade deixou de ser uma opção, passou a ser uma urgência. Aliada à transição digital e ecológica, vão ser debatidas na Conferência Internacional, organizada em parceria com a BEUC, a organização europeia de consumidores, marcada para segunda-feira, dia 27 de maio, no CCB, em Lisboa.
Numa altura em que aguarda reunião com o novo governo, expetativa não falta ao presidente da Deco para a Conferência Internacional dedicada aos “Consumidores: Presente e Futuro” como tema principal lançado a debate e agregando uma série de questões consideradas decisivas, como as tecnologias, os impactos das alterações climáticas e o papel dos consumidores no projeto europeu, sem esquecer a diversidade e a inclusão.
Entre os convidados, está António Guterres, o secretário-geral das Nações Unidas, que Luis Silveira Rodrigues diz ser “da casa”, pois é o sócio número um e um dos fundadores da DECO, de quem espera uma mensagem forte neste domínio.
Mas também entre os convidados estará Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, da qual, o presidente da Deco espera mensagem de grande suporte ao movimento de defesa dos consumidores na Europa, porque pode mostrar a importância da UE ao cidadão que vota.
Um domínio em que existe muito trabalho a fazer e leva Luis Silveira Rodrigues a deixar vários desafios à tutela, desde logo em matéria de energia, pois reconhece que é difícil o governo mexer na fórmula de determinação dos preços, mas o executivo pode tornar possível a descida do IVA da eletricidade (tem sido uma das bandeiras reivindicadas pela Deco) e dar mais apoios às famílias com menos recursos e sem capacidade de comprar aparelhos de produção e otimização de energia de fonte limpa.
No domínio dos recursos hídricos, tem dúvidas que o problema da falta de água se resolva com taxas ao consumo que penalizam o cidadão comum, mais em zonas de escassez como o Algarve, considerando prioritário, melhorar a gestão pública da água, com novos sistemas de poupança e evitar desperdícios que em alguns municípios é superior a 40%, além de campanhas sobre formas de poupança de água, as quais a DECO tem estimulado.
Numa altura em que a DECO apoiou mais de 8 milhões de consumidores e conseguiu recuperar perto de 30 milhões de euros aos portugueses que se queixaram nos últimos 5 anos, nas mais diversas áreas de atividade, o presidente da DECO sublinha que a associação de defesa do consumidor existe para todos que se sintam injustiçados em matéria de consumo, mas que o caminho para a sustentabilidade não se faz sem inclusão e tal desígnio não pode ser esquecido, nem por um país como Portugal, nem pelos restantes estados-membros, seja qual for o resultado das eleições europeias.
A DECO está a celebrar 50 anos, é meio século. Quantos consumidores é que já apoiou e quantas reclamações receberam desde que há registo?
Desde que temos registo, a DECO apoiou cerca de oito milhões de consumidores. E temos uma média, diria, há volta das 300 mil reclamações anuais, embora seja uma média. Portanto, nos primeiros anos não era tanto e depois subiu muito e tem vindo a estabilizar.
E de ano para ano têm registado uma subida de queixas? Como é que foi o ano passado face aos anos anteriores?
Do ano passado para este ano subiu o número de reclamações, mas se recuarmos um bocadinho mais, há anos em que subiu muito, fruto muitas vezes de um problema muito particular que envolve um número muito grande de consumidores, e depois há anos, como por exemplo o ano a seguir à pandemia, em que as reclamações obrigatoriamente desceram. Porque nos nossos centros de atendimento não estavam a receber presencialmente e as pessoas estavam também com menos conflitos de consumo.
Os setores com mais reclamações, e corrija-me se estiver errado, são a banca e seguros, a energia, a água e telecomunicações. Acha que estes setores estão verdadeiramente empenhados em resolver os problemas dos consumidores?
Acho que depende de setor para setor e dentro do setor depende de empresa para empresa. Estamos a falar de setores, quase todos eles, que têm um número de consumidores muito elevado. De certa forma, é natural que sejam os mais reclamados. Aqui o mais importante é vermos qual é a capacidade de cada uma das empresas, e aí não é tanto por setor, de cada uma das empresas, para, em face das reclamações que têm, não só resolvê-las, como criar procedimentos para que elas não voltem a acontecer, ou não voltem a acontecer com a mesma tipologia. E isso verifica-se de uma forma geral. Embora haja empresas que são mais proativas nisso do que outras, mas de uma forma geral, temos muito boa receção às reclamações que vêm através da DECO. O que não significa por si que seja muito positivo, porque à DECO chegam aqueles que reclamam para a DECO, mas pode haver uma série deles que não reclamaram para a DECO e que não temos a certeza como é que a reclamação é tratada. Habitualmente, aquilo que procuramos, porque a DECO ao longo destes anos desenvolveu também contactos privilegiados com as empresas, porque é muito mais fácil ter um interlocutor, porque muitos destas reclamações são tipo de reclamações, não é? Ou seja, quando aparece uma, aparecem logo não sei quantas. Portanto, é muito mais fácil com um interlocutor, quando se resolve uma, aplicar aquilo a todas as que tenham a mesma tipologia do que estar a resolver uma por uma. Portanto, a noção que temos é que, de uma forma geral, quando há um grupo de reclamações e há um diálogo com a DECO, que as empresas tentam resolver esse conjunto de reclamações.
E eles têm iniciativa para se juntar à DECO para tentar responder melhor às questões dos consumidores?
Sim. Quando são questões novas, por exemplo, questões que as empresas não anteciparam de todo, têm e muitas vezes até procuram a DECO para isso. Quando são questões mais corriqueiras, nas telecomunicações a questão das fidelizações, ou a questão da qualidade da internet, aí já é um bocadinho mais complicado, não há tanta proatividade, e muitas vezes não há também tanta abertura para a resolução do problema. Mas para aquelas que são surpreendentes, que normalmente abrangem um número muito grande, regra geral, à abertura.
As contas públicas mexeram muito nas últimas duas décadas. Depois de se atingir défices orçamentais de dois dígitos, uma dívida pública de 130% do PIB, o país começou a endireitar a trajetória. A esperança de vida subiu, os portugueses estão mais qualificados. O que é que justifica o ano, penso que 2015, ser o ano histórico de reclamações com quase 700 mil queixas?
Acho que tem a ver com um problema específico do ano de 2015. Não sei identificar agora o problema, mas recordo-me que houve um ano que se destacou de todos os outros e que tinha a ver com um problema específico. Não me lembro se terá sido a questão da Afinsa Fórum que trouxe uma imensidão de consumidores ou se foi algum outro problema, mas foi pontual. Não é propriamente dizer-se que naquele ano todos os consumidores resolveram ir reclamar ou houve generalizadamente mais problemas em todo o lado. Não, foi um setor específico e um problema específico que causou esse pico.
E hoje o que é que é expectável os consumidores esperarem por parte do novo governo, tendo em conta já medidas anunciadas a nível fiscal, a nível da habitação, do alojamento local?
Para nós ainda é um bocadinho cedo para podermos tomar uma posição, porque não tivemos ainda a oportunidade de reunir com o senhor secretário de Estado. Ele vai estar presente na conferência que vamos organizar na segunda-feira, vai fazer o encerramento da conferência e, portanto, teremos aí também a oportunidade de dialogar, mas, entretanto, esperamos falar com ele. Creio que os consumidores podem esperar aquilo que esperam de qualquer governo, que é Portugal tem uma legislação bastante desenvolvida de defesa do consumidor. Espera-se que continue esse caminho. Espera-se que, onde existam problemas que afetam os consumidores, o governo tenha uma capacidade de resposta a esses problemas. Creio que há alguns sinais que são positivos, como seja a questão agora, embora não conheçamos aprofundadamente as medidas, mas a questão da baixa do IVA no setor da construção, ou a questão da prorrogação do apoio à renda mesmo para os contratos celebrados após 15 de março de 2023. São sinais positivos, mas obviamente também conhecemos as circunstâncias em que o governo está a trabalhar. Mas creio que é isto que podem esperar.
Ao nível da energia, do ponto de vista do consumidor, seria possível mexer na fórmula da determinação do preço para baixar a fatura das pessoas no final do mês?
Creio que seria difícil mexer na fórmula por si, mas podia haver um maior apoio ou um apoio mais alargado às famílias que têm mais dificuldades. E isso é uma coisa que a DECO tem vindo a reivindicar e a reivindicar também a descida do IVA na eletricidade. A questão da eletricidade não é só uma questão de preço, também é uma questão de preço, mas não é só uma questão de preço. E aquilo que nos preocupa bastante, nomeadamente nos agregados familiares mais vulneráveis, é que estamos todos a tentar fazer uma transição energética e a ir para aparelhos mais eficientes que consumam menos. Mas isso tem custos muito elevados e tem custos elevados cujo retorno é, digamos, bastante longo. Portanto, para agregados familiares com recursos menores não é verdadeiramente uma opção. Não só o preço é um problema, como depois os próprios aparelhos que as pessoas têm vão ser um problema porque vão gastar mais energia. E acho que aqui é que se tinham de encontrar soluções para resolver esta questão da pobreza energética. Até porque isto depois tem outras consequências ao nível de tudo o que é sustentabilidade e do próprio agregado familiar. E muitas vezes, tomando estas decisões, evitam-se outro tipo de apoios que é preciso fazer às mesmas famílias quando estão em situação de vulnerabilidade económica.
Presumo que essa seja uma das questões que querem levar ao novo governo, para discussão com o novo governo. Mas haverá também outra, por exemplo, ao nível da água. Penalizar o consumo com taxas em zonas de escassez como o Algarve não vai provocar mais queixas, uma vez que este é um bem essencial?
Tenho muitas dúvidas sobre a própria penalização através do consumo. Por vários motivos. Um primeiro motivo é para que se possa responsabilizar os consumidores primeiro é preciso que haja uma gestão correta, adequada e rigorosa dos recursos hídricos. Quando sabemos que há municípios que perdem 40% da água que captam é difícil depois estar a convencer os consumidores de que têm de pagar mais porque gastam mais. Há 40% de água que podia ser aproveitada. Depois, a questão do consumo depende de que tipo de consumo é que se faz, depende dos agregados familiares, depende de uma série de circunstâncias. Haver um agravamento para consumo excessivo definindo-se bem o que é que é o consumo excessivo ou para consumo superior não creio que nos cause um problema maior. Mas tem de haver primeiro medidas que mostrem que efetivamente isto é uma preocupação de todos e não se está a pôr só o ónus no consumidor. Por outro lado, e este é um trabalho que a DECO tem feito muito, é preciso mais do que penalizar, é preciso cativar os consumidores para perceberem como é que podem poupar água. Porque se calhar há muitas pequenas coisas que podem fazer e que levam a uma poupança muito significativa da água que se transforma em dinheiro que os consumidores poupam e que se transforma em água que poupamos todos.
A propósito do que está a dizer, tanto seja na água como na energia, são muitas as campanhas que têm sido feitas e a DECO tem feito muitas e tem muita informação no site. Acha que ainda há alguma falta de informação, ou seja, que as pessoas precisam de ser mais sensibilizadas para mitigar este problema ou elas próprias já estão a fazer mais ou menos tudo aquilo que é possível e de facto não conseguem poupar porque é um bem que está muito caro?
Acho que, mais uma vez, independentemente do preço, acho que muitas vezes o que faz falta é as pessoas terem o clique de que isto é importante, mas isto é muito difícil de fazer ou de dizer “eu posso fazer assim esta diferença” muitas vezes é o que leva a pessoa a poupar ou não poupar. Por isso, creio que em termos de sustentabilidade e em termos daquilo que é exigido aos consumidores, o discurso, as campanhas, aquilo que se fizer tem de ser no sentido de apresentar instrumentos que ajudem as pessoas efetivamente a mudar e a saber o que podem fazer e não coisas meramente teóricas. Porque se for assim, a pessoa chega lá e diz está bem, mas como é que agora vou fazer isto? E não tem muitas formas de fazer, ou melhor, não encontra muitas formas de fazer.
Entre o que falta fazer e o que está feito, e não só no domínio da água, mas também da energia das telecomunicações ou dos serviços financeiros, a DECO tem um cálculo de quanto é que já conseguiu recuperar por exemplo nos últimos cinco anos aos portugueses?
A DECO recuperou nos últimos cinco anos cerca de 30 milhões de euros aos portugueses. E deixem-me fixar este número porque é importante, porque não são 30 milhões abstratos, ou seja, isto são dinheiros de reclamações que os consumidores fizeram e que viram reembolsado o valor que tinham despendido, portanto, isto é dinheiro efetivo. Depois há todas as medidas que foram tomadas através da sensibilização do governo, das empresas, etc., e que levaram a que isso se convertesse em poupanças, mas não está nestes 30 milhões. Isto significa, para as pessoas terem uma ideia, uma média de 16 500 euros por dia, o que é um valor francamente significativo.
E que alternativas por exemplo podem existir para reduzir a produção de resíduos?
Creio que há várias medidas que podemos tomar, creio que umas têm a ver até com uma campanha que a DECO fez que tem a ver com o plástico a mais, em que sensibilizou consumidores e empresas para o plástico que se usa e que é a mais. Atenção que esta campanha tem aqui talvez três coisas importantes: primeiro, estamos a falar de plástico de uma única utilização, não estamos a falar de plástico reciclável; segundo, não estamos a falar só da utilização de plástico, estamos a falar da utilização de excesso de plástico; terceiro, o consumidor foi participante, isto não é uma campanha de informação, o consumidor é que ia às lojas e aos produtos que comprava, fotografava, enviava e depois sensibilizava-se as empresas para isso. Foi uma campanha que teve uma adesão muito grande em relação aos consumidores e muito grande também relativamente às empresas. Agora, veja-se por exemplo, atualmente, desenvolveram-se muito os serviços de entrega de comida, de compras, etc., portanto, o comércio online desenvolveu-se brutalmente e temos esses serviços. A quantidade de embalagens, de resíduos, que produz uma entrega dessas se calhar é um trabalho que tem de se fazer com as empresas que enviam esses produtos e ver que eles sejam remetidos nas condições em que chegam, obviamente nas devidas condições aos consumidores, mas que não se gastem tantos resíduos, tanto plástico, tanto papel, tanto cartão, que não é necessário.
Falamos também do desperdício alimentar, que também é uma preocupação da DECO e é uma preocupação do ponto de vista do consumo que todos devem ter.
O desperdício em si é uma questão de consumo, o desperdício alimentar talvez ainda mais e se calhar dava um exemplo que não é tanto desperdício alimentar, mas que mostra a importância disto de se pedir às pessoas que na sua dieta reduzam em um dia o consumo de carne, porque isto já é o suficiente para se contribuir para que a situação melhore. Não resolve, mas ajuda. Ora, se pensarmos nas nossas casas em quantos quilos de carne vão para o lixo ou não chegam a ser consumidos porque não se olhou para as datas de validade ou cozinhou-se em demasia, sobrou e não se reutilizou, se pensarmos nisto, provavelmente por mês, somos capazes de ter dois, três dias de consumo de bens que consomem recursos, que gastam água, que produzem gases e que seriam evitados se houvesse um maior cuidado com isso. Por outro lado, isto também vai afetar o bolso dos consumidores, porque conseguindo gerir melhor os recursos que têm também vão gastar menos na própria alimentação.
E o que é que está a falhar, por exemplo, na parte da transformação destes resíduos e na tal economia circular para que todos queremos caminhar?
Acho que falha alguma separação dos lixos, a correta separação dos lixos que deve ser mais intuitiva e possivelmente mais simples. Acho que isso é um fator muito importante quando se trata com os consumidores, porque querer impor as coisas apenas porque elas são importantes, isto é, se olharmos para trás, raramente estas coisas resultaram a não ser quando são coisas que entram de tal maneira pela vida das pessoas que as pessoas até mudam. Por regra, as pessoas têm de ser cativadas e têm de ser coisas que sejam intuitivas, que sejam simples, e acho que muito do que falta é isso. Não é fácil separar algum tipo de lixo, não é também visível muitas vezes para as pessoas o próprio ciclo e o benefício desse ciclo e acho que isso também poderia ajudar. Depois, acho que é um trabalho muito importante a fazer com crianças e jovens porque muitas vezes são eles os motivadores da mudança nos agregados familiares.
Vocês estão a direcionar a vossa comunicação para esse público mais jovem, para as crianças, para que eles também sejam um influenciador em casa?
Estamos. A DECO, aliás, distingue-se das outras associações de consumidores, diria praticamente a nível do mundo, embora não quer dizer que não haja uma ou outra, mas desde o seu início teve um foco muito grande na educação e no trabalho com as escolas, com os alunos e com os professores, enquanto a maioria das outras associações de consumidores se dedicou muito aos testes, à parte jurídica, a DECO fazia isso, mas fazia também esta parte. Portanto, temos um trabalho com escolas de praticamente 50 anos e temos uma rede de escolas que neste momento, se não estou enganado nos números, abrange 5500 escolas na DECO Jovem e com quem é feito anualmente um trabalho com alunos e com professores. Depois, trabalhamos também com o Ministério da Educação no referencial para a educação do consumidor, que também inclui matérias destas e obviamente que trabalhamos também com as universidades etc. Mas diria que o grosso do trabalho da DECO tem estado, nesta área, muito virado para crianças, jovens e professores exatamente pelo efeito multiplicador que isso tem.
Viramos agora um pouco para a Europa até pela proximidade das eleições. A economia na União Europeia entrou com o pé esquerdo em 2024, mas os sinais de recuperação do consumo privado levam já Bruxelas a falar de uma ajuda à retoma. Já há um ritmo de crescimento saudável na segunda metade do ano. Acredita neste cenário ou pode haver domínios da economia que terão impactos diferentes e que as eleições podem ajudar a clarificar?
Acho que as eleições, estas eleições em particular, vão ter consequências ou podem ter consequências grandes no próprio rumo da Europa. Se olharmos para as evoluções que tem havido em vários países, e independentemente das questões políticas, sabemos que há o crescimento de vários partidos que são críticos relativamente ao projeto europeu. Se se vier formar um parlamento em que esses partidos tenham um peso bastante significativo, no mínimo isso vai dificultar aquilo que é o caminho que tem vindo a ser feito, por exemplo, na área de defesa dos consumidores, mas não só nessa área, como até em áreas mais estratégicas para a Europa.
Mas de que forma é que pode afetar na área da defesa do consumidor?
Neste momento, foram aprovados recentemente uma série de diplomas que são importantes e foi bom terem sido aprovados, mas ficam aquém do que os consumidores queriam.
Como por exemplo?
Como a questão da regulamentação da inteligência artificial. E a esperança é que este trabalho que se fez até agora se continue a fazer, que haja avaliação e possa depois encontrar-se uma legislação que seja mais equilibrada, que tenha mais em conta as questões dos consumidores. Com o parlamento mais dividido ou dividido em partidos que tenham posições mais críticas, ou quando a prioridade for outra, estas questões podem ficar mais esquecidas, podem ser tratadas de uma outra forma. Até porque os consensos no parlamento europeu são ainda mais difíceis do que no parlamento nacional e a partição das forças, a maior divisão das forças, pode trazer problemas acrescidos. Muitas vezes é muito importante para o funcionamento da democracia, porque também ajuda a pôr em causa os partidos que estão mais habituados a estar no parlamento europeu, mas tem também este problema de poderem dividir de tal forma que depois os consensos sejam tão difíceis que há aqui um entrave e a legislação não avança.
Qual é a sua opinião em relação à inteligência artificial, o impacto que tem nos consumidores e que perigos é que traz?
O foco da DECO, e eu tenho uma perspetiva muito pessoal relativamente a isso, mas é sempre olhar para estes problemas do lado das oportunidades. Não quer dizer que se esqueçam os outros, mas não olhar para isto como um problema que vai acabar o mundo, vai acabar a humanidade, mas olhar o que é que isto pode trazer aos consumidores. E pode trazer imensas coisas e muito importantes, o que creio que é preciso ter cuidado é haver uma regulamentação que leve a que este instrumento que é a inteligência artificial seja usado com transparência, com cuidado na recolha dos dados, com o consumidor a ter noção de que dado está a dar e ter de autorizar a recolha de determinados dados para que efetivamente seja um instrumento importante. Porque se olharmos só para o que se fala hoje da programação que pode ser enviesada em face do género, em face da raça, em face até de coisas que nós próprios não nos apercebemos que têm a ver com a nossa própria forma de ver o mundo, se isto pode ser feito desta maneira com facilidade, se não há regulamentação, então temos assistentes virtuais, por exemplo, que vão aconselhar ao consumidor o que é que deve comprar numa determinada plataforma e que estão completamente enviesados. Portanto, estão a dar um conselho errado e depois isto levanta do ponto de vista jurídico uma série de problemas, porque há aqui um assistente virtual que não faz parte da relação quando a legislação foi concebida. Porque a relação era entre um consumidor e uma empresa, agora temos aqui um assistente virtual que até foi criado pela empresa, ou não, pode haver outros independentes, e que está a aconselhar o consumidor. Portanto, as questões de responsabilidade, as questões de quem enganou quem ou quem teve uma prática desleal, tudo isso tem outro enquadramento.
Juridicamente foi uma máquina que levou a esse engano e se calhar as empresas podem ilibar-se dessa responsabilidade.
Mas alguém programou essa máquina e alguém mandou programar essa máquina. Isso tem de entrar ou na interpretação em sistemas mais abertos e menos regulamentares ou na interpretação que os tribunais fazem e na construção que as próprias faculdades estão a fazer. Ou então, em sistemas como o nosso que são mais regulamentares, tem de ser a própria legislação a definir como é que se faz essa responsabilização.
Numa Europa que é muitas vezes acusada de ser protecionista, precisamente por causa de se focar muito na produção legislativa de diretivas, mas que no fundo também é referência de um projeto de prosperidade, pelo menos nos dois últimos séculos, foi a maestrina na capacidade negocial.
Tivemos exemplos de povos, como os chineses e os japoneses, que vieram absorver conhecimento para produzir e hoje produzem mais e melhor. Mas não correrá a Europa o risco de estar a caminhar para o fim do projeto europeu? Porque no fundo somos todos consumidores com este caminho que agora mais focado na defesa não tanto nas preocupações da saudável convivência social e económica.
Qual é o papel dos consumidores neste novo projeto europeu que ainda não sabemos para onde vai caminhar, depende também do resultado das eleições?
Acho que o papel dos consumidores tem de ser central na Europa e por uma razão simples: os consumidores são pessoas e a União Europeia existe para as pessoas. Aliás, tudo existe para as pessoas e creio que a crise de 2008 mostrou isso muito bem. Quando facilitamos determinados controles ou determinadas práticas, há uma curva em que isso vai de certeza trazer problemas e acho que têm de ser centrais nisso. Agora, tem de haver um equilíbrio. Vou dar um exemplo: a defesa do consumidor até aqui, e ainda continua assim, embora existam vários direitos, há um direito que é o direito rei, que é o direito à informação. E muita da legislação que se fez foi a sobrecarregar as empresas ou a obrigar as empresas a prestarem deveres de informação aos consumidores, acreditando-se que ao fazer isto se equilibra a relação. Hoje a economia comportamental mostra-nos que há evidência que não é pelos consumidores terem mais informação que estão mais informados. Mais, o excesso de informação provoca desinformação, a pessoa não lê, não vai ver, até porque aquilo é tudo tão rápido. Com esta constatação, não faz sentido, aí sim, sobrecarregar as empresas com informação que não é útil, que não é prática. O consumidor não vai usá-la. No entender da DECO e hoje o movimento de defesa de consumidores está muito coeso nesta questão que é, podem-se reduzir os deveres de informação e aliviar as empresas, mas ter como contrapartida, por exemplo, uma inversão do ónus da prova quando é necessário provar algumas das coisas que depois se tornam praticamente impossíveis para o consumidor. E creio que esse caminho de simplificação regulamentar, sem que haja perda real dos direitos dos consumidores, é o caminho que também pode levar a Europa a estar mais liberta de alguma regulamentação que, por exemplo, os Estados Unidos, que ainda são os mais próximos, mas a China, por exemplo ou a Índia, não têm de forma alguma. Creio que aí poderá haver esse maior equilíbrio, agora não me parece que o equilíbrio possa ser olhando para o modelo chinês ou para o modelo americano e dizer que não faz sentido proteger os consumidores. Porque aí perde-se a confiança, aí voltamos às defesas que tínhamos antes de termos a internet, o comércio online, a globalização e por aí adiante.
Vão realizar a vossa conferência, Conferência Internacional nesta segunda-feira, qual é a mensagem que espera da Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres. Que mensagem espera?
Deixe-me falar primeiro do Secretário-Geral das Nações Unidas porque é da casa. O Dr. António Guterres é o sócio número um da DECO e foi um dos fundadores. Espera-se uma mensagem de carinho obviamente, mas espera-se principalmente, como Secretário-Geral da ONU, uma mensagem de apoio principalmente nestas questões da transição verde e da transição digital, que são duas áreas claramente prioritárias para os consumidores e onde uma palavra do Secretário-Geral da ONU teria obviamente muito bom acolhimento e muita importância. Da Presidente da Comissão Europeia, creio que se espera uma mensagem um bocadinho diferente. Obviamente de apoio nestas áreas, são áreas definidas como prioritárias e assumidas como prioritárias pela Comissão a que ela própria preside, mas esperaria também uma mensagem de grande suporte do Movimento de Defesa dos Consumidores. O Movimento de Defesa dos Consumidores, se olharmos para a construção da Europa, é um movimento agregador dos cidadãos porque é um dos poucos movimentos organizados que tem cidadãos e onde a União Europeia pode efetivamente entregar a sua mais-valia. E pode mostrar ao cidadão que vota que a União Europeia tem importância para ele. Esperaria uma mensagem deste género. O Movimento de Defesa dos Consumidores é um dos grandes construtores deste espaço único europeu e da forma, nem sempre totalmente equilibrada, mas com o equilíbrio possível com as forças que existem, que a União Europeia tem.
Vão aproveitar o ativismo de António Guterres na urgência climática para lançar alguma reflexão sobre o que os consumidores devem esperar do crescimento destes conflitos humanitários e das alterações climáticas?
Na conferência vamos discutir vários dos temas relacionados com a emergência climática, relacionadas com as migrações e que entroncam diretamente naquela que é a missão da ONU. É claro que esperamos que o secretário-geral da ONU esteja identificado com esses problemas, embora o Movimento de Defesa dos Consumidores tem o foco dos consumidores, enquanto o secretário-geral da ONU tem de ter o foco mais geral, muito mais abrangente.
E como membro desse movimento Portugal tem sido um bom aluno? Ou seja, quando se compara a legislação da defesa do consumidor face ao resto da Europa temos sido um bom aluno na transposição de diretivas e de cumprimento de direitos?
Acho que temos sido mais do que um bom aluno, temos sido um bom professor. Aliás, Portugal tem das legislações de defesa do consumidor mais avançadas da União Europeia, não é a mais avançada, depois também se pode discutir o que é mais avançado, mas daquelas que são mais coerentes e que efetivamente olham para o problema da forma como os consumidores o sentem. E há vários exemplos em que Portugal, sempre que pôde, foi além do que as diretivas diziam, exatamente porque percebeu que o que as diretivas propunham era insuficiente face àquilo que eram as necessidades dos consumidores. Onde acho que Portugal tem uma falha maior, embora tenha legislação até mais avançada do que alguns dos países da União Europeia, é depois na efetivação desses direitos. Ou seja, apesar de termos uma legislação sobre a ação coletiva há muito tempo e que é utilizada, a verdade é que as demoras nos tribunais, as questões técnicas nos próprios tribunais, têm dificultado a que esse acesso depois se verifique na realidade. Um processo rápido numa ação deste género demora cinco anos e quase todos demoraram mais do que isso. Isto, na verdade, leva a que haja uma certa impunidade em algum tipo de violações da defesa do consumidor.
E os portugueses têm consciência disso? Vão votar nas europeias a 9 de junho? O que é que ainda nos falta perceber enquanto cidadãos sobre o impacto das decisões europeias na política e na legislação nacional?
Não sei se os portugueses têm totalmente consciência disso e acho que há muita responsabilidade por parte dos vários candidatos ao parlamento europeu em eleições passadas de continuarem a discutir as questões nacionais em vez de discutirem as questões europeias, e em vez de demonstrarem aos portugueses a importância efetiva que a Europa tem e teve ao longo destes anos na construção da democracia e na construção de um estado de direito completo, adequado, equitativo. Lembro-me de duas ou três iniciativas que as ações de consumidores tiveram nas vésperas de eleições europeias e que da parte dos deputados portugueses, devo dizer que não era só dos portugueses, mas os portugueses eram dos piores, da parte dos deputados portugueses, e não teve qualquer adesão porque as questões que discutiam eram nacionais. Portanto, fiquei muito contente quando no primeiro debate que houve nestas eleições efetivamente se discutiu a Europa e espero que alguma coisa esteja a mudar. Tenho muita esperança de que qualquer dos candidatos que seja apresentado olhe para a Europa com olhos de efetivamente perceber que este é um projeto sem o qual dificilmente conseguiríamos viver num mundo com as instabilidades que existem hoje e que consiga demonstrar àqueles que votam neles esta importância. E é tão fácil. A DECO tem um documento que partilhou com os candidatos ao Parlamento Europeu exatamente a mostrar isto: onde é que a Europa foi importante para os consumidores.
E que recetividade teve por parte dos candidatos?
A recetividade, habitualmente, é grande na receção do documento, mas depois é a transmissão disso para a campanha eleitoral que é mais difícil.
Mas estes candidatos têm mostrado que apresentaram ou pelo menos que estudaram a lição? Porque, como está a dizer, uma coisa é a recetividade e outra coisa é efetivar medidas.
Acho que há dois momentos distintos. Depois de eleitos, não nos podemos queixar da participação dos eurodeputados portugueses, pelo contrário. Temos muito boas relações e o próprio BEUC tem muito boas relações com a maioria ou quase totalidade dos deputados portugueses. O problema é que, e isso é que me parece perigoso, é que é preciso chegar lá. E para chegar lá é preciso convencer as pessoas que vale a pena votar e que vale a pena votar em projetos que acreditem na Europa. E se não se conseguir isso, não sabemos qual é o resultado das eleições e aí pode ser mais difícil.
O que é que considera prioritário face às tecnologias atuais emergentes, as alterações climáticas e os seus efeitos, a participação do consumidor no projeto europeu ou a diversidade e inclusão, porque penso que são matérias que vão estar em discussão nesta conferência internacional da DECO.
Vão estar todas em discussão e na verdade são todas muito relevantes. E esperamos que os vários painéis possam responder a várias dessas questões. Parece-me claramente que a questão da sustentabilidade já não se discute se é uma questão, é só urgente. Tem de ser e tem de ser com medidas concretas, não tenho dúvidas nenhumas. Agora, não podemos olhar para a questão da sustentabilidade e dizer que não há questões de inclusão na sustentabilidade. Há imensas questões de inclusão. Aliás, a sustentabilidade, com alguma reserva, é muito mais fácil para quem tem meios económicos do que para quem não tem.
E daí a importância de uma associação como a DECO para proteger também aqueles que têm menos acesso.
Não diria que é só para aqueles que têm menos acesso. Acho que para esses claramente, porque esses normalmente são os que não são ouvidos, mas também para os outros. Porque quando, por exemplo, falamos em taxar os maiores consumos de água, muitas vezes estamos a pensar em casas que têm jardim, em casas que têm piscina, a DECO também tem de olhar para esses consumidores. E esses consumidores também têm de ser protegidos de medidas que sejam injustas. Agora, os mais vulneráveis têm sempre aquela questão de que são menos ouvidos e, portanto, isso é muito importante claramente.
O que é prioritário neste momento em termos de matéria de defesa do consumidor, quer no quadro europeu, quer para o governo nacional?
Parece-me que transição digital e transição verde são as duas áreas fundamentais porque depois vão entroncar nas outras. A questão da sustentabilidade por aquilo que falámos, porque não há volta a dar, e a questão da transição digital porque está a acontecer. Se não se olhar para isto e se olhar só para os problemas que ficam a montante, acho que temos uma série de problemas aqui que não foram devidamente resolvidos.

