O governador do Banco de Portugal não quer ver travagens bruscas da economia como efeito das promessas eleitorais. Em entrevista à TSF e DV, Mário Centeno pede aos partidos para “preservarem a estabilidade financeira”.
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Uma taxa de juro de 2% , nunca mais baixa do que 2%, é o que defende o governador do Banco de Portugal (BdP) como farol para o caminho gradual que o Banco Central Europeu (BCE) vai começar a trilhar este ano.
O caminho das descida das taxas de juro em função da descida da inflação na zona Euro não pode levar a taxas zero como no passado. “Nós não vamos trazer a taxa de juro de novo para valores muito baixos. Desejavelmente a taxa de juro quando começar a descer, não seguirá um processo até valores próximos do que existia antes deste processo inflacionista porque esses valores são considerados perversos para o crescimento económico e para a estabilidade financeira na área do euro”, sublinha Mário Centeno, na entrevista A Vida do Dinheiro, da TSF e do Dinheiro Vivo.
Assim, quando se diz que taxa de juro vai começar a descer, “ela irá descer mas não vai retomar valores anteriores, mas vai estabilizar idealmente em valores próximos de 2%, que são a taxa neutral”, defende o Governador do BdP.
Mário Centeno diz acreditar que a zona Euro vai convergir para 2% de inflação mas de forma mais lenta do que foi a descida até agora e sem querer falar em concreto do fim da medida do IVA zero, que de acordo com INE foi responsável pela subida da taxa de inflação de janeiro, o Governador do BdP defende que este tipo de medidas devem ser provisórias.
“À medida que os factores que justificaram a pressão sobre os preços se diluem, nós também devemos ajustar as políticas a esse desenvolvimento, ou seja, não é sustentável do ponto de vista das finanças públicas manter apoios depois dos choques se terem dissipado. Há uma receita que o Banco Central Europeu tem vindo a transmitir de que esses apoios sejam focalizados nos mais vulneráveis, naqueles que verdadeiramente têm mais dificuldade em reagir à variação dos preços. Em boa medida foi isso que foi feito em Portugal”, destaca Mário Centeno.
E no momento em que Portugal vive um intenso debate politico devido à campanha eleitoral, o Governador do BdP apela aos políticos para que não deixem de pensar que o ciclo que estamos a viver de pleno emprego vai ter um fim que é preciso acautelar.
Na opinião de Mário Centeno, “nós devemos, dentro desse conjunto de escolhas que temos não só o direito, mas o dever de fazer, de privilegiar, e daí eu, como Governador do Banco, não me posso eximir, a numa lógica de estabilidade, de preservar a estabilidade financeira, de garantir que que as opções que são tomadas não põem em causa uma trajetória que nos vai dando a cada passo mais alternativas”.
Porque, “quando se inverter o ciclo, não estando isso nas nossas previsões nos próximos semestres, quando se inverter o ciclo se tivermos entretanto aumentado as despesas permanentes de forma mais rápida do que a nossa capacidade produtiva, nós vamos sentir um travão no pior momento em que ele nos possa aparecer que é na próciclicidade. Nós não queremos travar quando a economia travar e, portanto, também não podemos agora acelerar quando ela está em pleno emprego, porque a travagem nessa altura vai ser muito mais brusca”, alerta o Governador do BdP.
Mário Centeno recorda que a economia da zona euro não cresce nos últimos 5 trimestres, ou seja, a economia não apresenta recessão mas está estagnada.
Mário Centeno, doutorado em Economia pela Universidade de Harvard, está à frente do Banco de Portugal desde julho de 2020, vai fazer quatro anos. O governador foi ministro das Finanças do Governo PS de António Costa entre 2015 e 2020, foi presidente do Eurogrupo, o poderoso conselho informal dos ministros das Finanças da Zona Euro.
A taxa de inflação estimada o mês passado, em janeiro, na Zona Euro, pelo Eurostat, foi na casa dos 2,8%. O Banco Central Europeu tem uma meta de médio prazo de 2%. O que é preciso mais para chegarmos a este objetivo?
É um trajeto que estamos a fazer de forma sustentada. Todos os indicadores que temos mostram que a inflação tem vindo a baixar. Na verdade, a um ritmo que é mais rápido do que aquele que subiu. Foi um processo inflacionista muito forte, que nunca tínhamos vivido no período do euro na Europa. E, portanto, foi necessário reagir. O Banco Central Europeu teve de subir as taxas, todos sabemos o efeito que isso tem e também estamos atentos a todo este processo de descida. O que é necessário para que o ciclo de política monetária continue é que tenhamos confiança no grau de permanência deste processo e que os próximos meses, estou certo, trarão, se não acontecerem, entretanto, mais choques adversos daqueles a que, infelizmente, assistimos há uns anos e que justificaram a subida dos preços.
Gostava de lhe perguntar sobre um indicador importante que saiu esta semana por parte do Banco Central Europeu, o inquérito aos consumidores. Há uma revisão em alta da inflação esperada para o longo prazo, até 2025, 2.4 para 2.5. É uma décima a mais, mas o que é que isso sinaliza para si, enquanto banco central e enquanto membro do Conselho do BCE?
Estamos atentos a um número muito grande de indicadores e seguimo-los de forma muito cuidada. As expectativas são muito importantes porque a política monetária trata precisamente de gerir expectativas. Temos um objetivo de 2% para a inflação no médio prazo. E, portanto, ancorar as expectativas no médio prazo, e ancorar significa tê-las firmemente próximas de 2%, é crucial para a condução da política monetária. E, por isso, retomando aqui um pouco a primeira pergunta, o que é mais importante para nós é a trajetória e não exatamente o valor concreto de um mês de inflação. E, por isso, é que podemos dizer hoje que estaremos próximos dessa inversão da trajetória da política monetária.
Mas a trajetória é mais importante do que a meta?
A meta atinge-se no futuro próximo. Vamos falar abertamente, o corte das taxas de juros não se dá apenas quando a inflação atingir 2%. Não é assim que funciona, porque sabemos que há uma convergência para esse valor. E, desde que essa convergência esteja ancorada, esteja firme, seja sustentada, a política monetária pode e deve reagir. É evidente que todo este conjunto de indicadores que seguimos, as questões de confiança, as expectativas dos consumidores são indicadores importantíssimos mas não valem só por si, valem no seu conjunto.
A economia da área do euro não cresce há cinco trimestres. Está entrando no sexto trimestre, que é este primeiro trimestre de 2024, em que posso usar a expressão que o crescimento ainda é um desafio. Não esperamos números que possam claramente indicar que a recuperação começou.
Os riscos para o outlook são negativos também?
No curtíssimo prazo, sim. No médio prazo, são um pouco mais otimistas e positivos. E isso também nos dá algum alento de que o processo possa estar a inverter no tal médio prazo, não no primeiro trimestre deste ano. O segundo, temos de ver bem como é que entramos nele. O que é importante é que a política monetária possa ser credível, sempre.
É absolutamente essencial, não há gestão de expectativas se a política monetária não for credível. O fator mais importante de credibilidade da política monetária é a nossa determinação em combater a inflação, porque a inflação tem efeitos negativos superiores àqueles que poderíamos esperar do aumento das taxas de juros.
A economia, no cenário base, não tem uma recessão, mas está estagnada. E se a economia está estagnada, significa que a procura está estagnada e a transmissão de todos estes efeitos aos preços é algo que, em termos económicos, é quase inevitável. E isto também está por detrás desta desaceleração, deste processo de desinflação. Não é deflação, é desinflação, que é a redução da inflação que temos observado. E isso é crucial que se mantenha e que possa estar refletido em todos os números.
O BCE sente menos pressão nesse aspeto e também que o seu trabalho passado está a surtir efeitos na atividade económica. Como esse efeito é um efeito de desaceleração da atividade económica, que vem muito através do crédito (a política monetária transmite-se à economia, por exemplo, através do crédito), temos, em Portugal, e temos na área do euro, valores do crédito que estão muito abaixo daquilo que estavam há uns anos atrás.
Em termos reais, se deflacionarmos, digamos assim, o valor do crédito, esse comportamento negativo ainda é mais evidente. E temos de ter as cautelas necessárias a atingir um objetivo essencial, que aliás é comum a todas as políticas económicas. Elas são políticas estabilizadoras, não são políticas procíclicas ou que possam elas próprias promover ciclos económicos mais acentuados. O que significa que a política monetária deve estar calibrada para não fazer demais. Porque se fizermos demais, podemos ter um efeito perverso na inflação, ela descer para lá dos 2%, e isso é algo indesejável.
Temos de ter alguma paciência (...) quando nos começamos a aproximar de 2%, é natural que o ritmo de redução da inflação fique menos acentuado.
Por isso, também temos de ter alguma paciência. E a primeira pergunta que me fez vai, aliás, muito nesse sentido, que é quando nos começamos a aproximar de 2%, é natural que o ritmo de redução da inflação, ele próprio, fique menos acentuado. Vamos convergir para 2% no tal médio prazo, estando já hoje abaixo de 3%, e já não é o primeiro número de inflação abaixo de 3% que temos, essa convergência se torna mais lenta, mas com esta característica de que o processo não descarrile e isso é absolutamente essencial.
E como é que vai funcionar esse sistema de vasos comunicantes entre descida da inflação e descida das taxas de juros? Vai demorar mais a descer as taxas de juros do que levou a subir as taxas de juros?
É difícil prever qual é a rapidez com que este processo se dá. Nesta lógica de estabilidade, preferiria que as taxas descessem de forma gradual, sem hesitações, do que à pressa. Até porque normalmente quando os bancos centrais têm de agir de forma mais rápida, significa que alguma coisa não está a correr exatamente bem, que alguma coisa não está a correr bem neste processo.
Relembro, por exemplo, a rapidez com que o Banco Central Europeu teve de agir em 2008 e depois em 2011, 2012, em face do processo recessivo que, quer num caso, quer no outro, se colocou na área do euro. Se conseguirmos estabilizar a inflação e a economia e prepará-la para a recuperação de uma forma gradual, damos tempo aos agentes económicos para absorverem esta mudança, para se readaptarem à nova realidade.
Deixe-me só acrescentar aqui um ponto, que não é técnico, mas é um pouco mais específico. No processo de subida, podemos dividir este processo de subida, que foi muito rápido, e como nunca antes tinha sido, durante 14 meses, subimos 450 pontos de base a taxa de juros de política monetária, mas parte deste trajeto foi para trazer a taxa de juros de valores negativos, muito indesejáveis, para valores próximos daquilo que é, vou chamar-lhe a taxa de equilíbrio. Chamamos-lhe a taxa neutral, que andará em torno dos 2%.
Portanto, não vamos trazer a taxa de juros, de novo, para valores muito baixos. Desejavelmente, a taxa de juros, quando começar a descer, não seguirá um processo até valores próximos do que existia antes deste processo inflacionista, porque esses valores são considerados, na verdade, até perversos para o crescimento económico e para a estabilidade financeira na área do euro. E armadilham todo o processo do BCE e também dos agentes económicos. Portanto, quando dizemos que vai começar a descer, ela irá descer, não vai retomar valores anteriores, mas vai estabilizar, idealmente, em valores próximos de 2%, que são a tal taxa neutral.
Senhor Governador, mas no caso de uma crise, haverá sempre, e toda a gente aceita isso, é inevitável, que venha uma nova crise ou que venha uma nova recessão. Se for um episódio mais grave, o Banco Central Europeu, pergunto-lhe, já que tem assento na mesa, vai tentar ao máximo evitar descer juros até perto desse zero?
Falou de algumas palavras que são muito difíceis de um governador de um Banco Central usar, mas temos de enfrentar aquilo que temos em cima da mesa. Como disse há pouco, o cenário base não tem uma recessão. Esperamos, e isto é comum ao que estão nas previsões para os Estados Unidos, para o Reino Unido, que são economias muito diferentes da área do Euro. Mas partilhamos este resultado, que é, em todas estas áreas económicas e monetárias, a inflação parece estar a cair sem que se coloque um cenário recessivo, apesar do grande aumento das taxas de juros. E esse cenário base, que não é recessivo, significa que não iremos de facto enfrentar essa recessão, não quer dizer, só para também usar as suas palavras, porque também não vale a pena termos assim receio de as usar, que em termos do ciclo económico, mais lá para diante, ele não possa ser aquilo que normalmente é um ciclo económico numa sociedade moderna, que é que tem períodos em que o crescimento económico cai e depois tem períodos em que o crescimento económico recupera. Não há problema nisso.
Do lado do Banco Central Europeu, acreditamos que neste momento temos os instrumentos disponíveis, tendo saído desse limiar, dessa armadilha, como bem colocou, de taxas de juros negativas, para reagir e para acomodar um processo dessa natureza.
Uma das ferramentas que tem sido usada pelo Banco Central Europeu no alívio monetário foram os programas de compras de ativos do Euro sistema. Essas compras de ativos estão a terminar. Que impacto é que isso vai ter nos juros soberanos, no caso mais expostos e endividados, como é o caso da economia portuguesa?
Temos tido a capacidade, e posso até acrescentar o sucesso ao longo de todo este processo, não só de ter evitado uma recessão, como evitámos dificuldades financeiras, que no passado recente se colocaram à área de forma muito aguda. E isso é um enorme sucesso.
O balanço do BCE, tal como de outros bancos centrais, é, neste momento, muito maior do que aquilo que historicamente tínhamos como balanço de um banco central. E foram esses programas de compra de ativos que tiveram uma contribuição muito grande para este aumento. Todos os programas de cedência de liquidez também, mas esses programas de cedência de liquidez estão a terminar, e vão terminar nos próximos meses, e não tem havido nenhuma perturbação na área financeira, no financiamento das economias, seja ele o financiamento do soberano, ou seja, dos Estados, seja das empresas, seja das famílias.
O crédito está a cair, em grande medida, porque a procura de crédito está baixa. E é natural que assim o seja, porque uma economia que está estagnada com o aumento do custo do dinheiro, o crédito, obviamente, ressente-se. Mas não tem havido um problema, digamos assim, do lado do setor bancário em oferecer crédito. Há imensa liquidez, há muita liquidez no mercado, e a redução, muito gradual e muito suave, que neste momento implementámos já com uma parte dos programas de compra de ativos, o chamado APP, que foi o primeiro programa que surgiu, com o pré-anúncio, para começar no verão, da redução também daquilo que é detenção de ativos no âmbito do programa de emergência do período de crise do Covid. Todos estes processos têm sido, no meu entender e no nosso entender, com o ritmo adequado a que as dificuldades, que referiu, não aconteçam.
E, portanto, continuaremos assim, porque a estabilidade financeira é muito importante para a condução da política monetária. Chamamos-lhe até uma pré-condição para a estabilidade de preços. E, sem dúvida, que essa preocupação se manterá sempre no Conselho de Governadores. Não posso deixar, só para terminar a resposta, de sublinhar mais uma vez que tivemos imenso sucesso na condução deste processo, porque garantimos, em todos os momentos, o financiamento das economias, a estabilidade dos mercados financeiros, em particular, para, quer as economias, quer os agentes económicos mais endividados. Não houve nenhuma perturbação, ao contrário, aliás, do que aconteceu noutras economias, como, por exemplo, a economia norte-americana, com alguns episódios, felizmente, localizados no setor bancário. Isso não aconteceu na Europa.
Temos estado a falar do papel do Banco Central, mas há outros atores na economia, designadamente as administrações públicas, os governos e o setor privado. Estávamos a falar também da questão da economia hoje não estar a crescer, portanto, estar relativamente estagnada, a economia da zona euro. O setor privado e os governos estão a cumprir o seu papel? Que avaliação é que faz disto?
Mais uma vez, e se calhar estou aqui a fazer demasiado de otimista e de positivo face àquilo que é a evolução presente na área do euro, mas estes resultados não se conseguiriam obter apenas com a política monetária. Felizmente, deixámos aquele período que a Europa viveu durante muitos anos, lembramo-nos todos do presidente Mario Draghi, a dizer que a política monetária era a única política que estava ativa e a lutar contra os problemas financeiros e económicos da área do euro. E hoje já não é assim, isso mudou, mudou porque as instituições europeias hoje são mais fortes, porque temos mais instrumentos, porque o BCE também atua de forma diferente, quer do lado da política orçamental, quer do lado dos diferentes mercados, começando pelo mercado de trabalho e passando para o mercado do produto, digamos assim, ou seja, onde os preços são formados, quer empresas, quer trabalhadores atuaram de forma consistente para que este objetivo de redução da inflação fosse conseguido.
Não podemos guardar os louros todos para o Banco Central Europeu, há hoje na Europa um funcionamento dos mercados que é mais compatível com a existência – e vou até usar um chavão que muitas vezes é usado na economia –, porque havia muita gente que duvidava se a área do euro era uma área monetária ótima, porque lhe faltava integração, faltava os mercados estarem mais oleados, mais entrelaçados, e hoje temos um mercado de trabalho na Europa que funciona como tal, que tem resultados de grande qualidade do ponto de vista da sua adaptação e do seu ajustamento, e temos também um mercado interno que hoje está muito mais maduro do que estava há uns anos.
E isto é a tradução de um processo de integração que leva tempo, que requer paciência, mas que tem tido e tem trazido aos europeus grande benefício. Temos de continuar, isto nunca está concluído, mas não podemos deixar de sublinhar, e agora obrigado pela pergunta, porque ainda não me tinham feito, de partilhar este resultado com as empresas e com os trabalhadores.
Em Portugal a inflação, ao contrário do que aconteceu no resto da Europa, a inflação subiu no mês passado, no mês de Janeiro, foi uma das cinco economias da zona euro em contraciclo, com a tendência de descida. O Instituto Nacional de Estatística explica que este aumento em Portugal é em parte explicado pelo aumento dos preços da eletricidade e pelo fim da isenção do IVA Zero no conjunto de bens alimentares essenciais. O IVA Zero deveria ter continuado para empurrar a inflação para baixo?
Tivemos uma surpresa com o número da inflação de Janeiro, apesar de ela ter subido, subiu bastante menos do que aquilo que o Banco de Portugal e a generalidade dos analistas esperavam. Ou seja, é verdade o que o INE diz, há dois efeitos que justificam alguma aceleração nos preços, mas estes dois efeitos tiveram um impacto no resultado da inflação bastante abaixo daquilo que esperávamos. O que significa, mais uma vez, que os tais mercados estão a funcionar e há uma compreensão, um resultado e também uma tradução. Na Europa há uma estagnação económica, mas em Portugal, felizmente, não temos essa estagnação. Portugal está a crescer acima da área do euro, o emprego em Portugal cresce cinco vezes mais nos últimos anos do que no conjunto da área do euro e a economia tem crescido sustentadamente acima da área do euro.
Apesar da procura externa indicar o contrário?
Apesar de termos um desafio muito grande com a procura externa, porque somos uma economia muito aberta e três quartos do nosso comércio é feito com a área do euro. Mas apesar de tudo isso, a economia portuguesa tem dado sinais de grande resiliência, como os economistas gostam de dizer.
A pergunta que me fez sobre se estes mecanismos de apoio ao preço deveriam ou não continuar, a minha resposta é aquela que temos dado em geral. Não vou falar em particular da questão do IVA Zero. Em geral, à medida que os fatores que justificaram a pressão sobre os preços se diluem, também devemos ajustar as políticas a esse desenvolvimento. Ou seja, não é sustentável, do ponto de vista das finanças públicas, manter apoios depois dos choques se terem dissipado. Muitos dos apoios eram generalizados, como aliás o do IVA Zero. Há uma receita, digamos assim, que o Banco Central Europeu tem vindo a transmitir, de que esses apoios sejam focalizados. Focalizados nos mais vulneráveis, naqueles que verdadeiramente têm mais dificuldade em reagir à variação dos preços. Em boa medida foi isso que foi feito em Portugal, porque houve a retirada do apoio, justamente temporário, na taxa do IVA, mas houve o reforço, através dos apoios sociais, para as famílias de menor rendimento, que substitui uma parte deste efeito. Esta tendência, que na verdade está a ser seguida também noutros países europeus, é, do nosso ponto de vista, do ponto de vista económico, adequada.
Elas (as ajudas) devem manter-se, insisto, apenas enquanto as condições económicas e de preços justificarem. Porque não há razão para manter apoios além daquilo que é a sua justificação económica.
Continuando com a economia portuguesa, o senhor Governador já referiu que, por várias vezes, e outros economistas também, que está muito próxima do pleno emprego, que é uma coisa boa. Ou seja, toda a gente está empregada, o crescimento do emprego continua, como acabou de dizer, e isso traz a resiliência à economia que sublinhou, mas é também um risco. Até onde é que a economia portuguesa pode ir em pleno emprego e depois do pleno emprego, o que é que vem?
Essa é a cautela que temos de ter. Diria que é uma boa cautela, porque quando estamos numa situação próxima do pleno emprego, as preocupações que temos são diferentes daquelas que temos quando enfrentamos uma recessão muito séria, como, aliás, temos memória há não muito tempo em Portugal, e, portanto, temos de nos manter alerta com a evolução desses indicadores. E não é só em Portugal, é na Europa como um todo. O mercado de trabalho é o grande sustentáculo da presente situação económica e social. Temos níveis de emprego historicamente elevados e níveis de salários também historicamente elevados. Todos sabemos que, num determinado momento, há sempre numa economia setores que vão melhor do que outros, e famílias, e, portanto, todos temos de estar atentos a essas vulnerabilidades que são uma constante nas nossas economias. Mas, do ponto de vista agregado, do ponto de vista macro, as nossas economias estão numa situação privilegiada desse ponto de vista.
A questão do nível de salários ser muito elevado, pode só concretizar o que é que quer dizer com isso?
A massa salarial, como um todo, nunca atingiu valores próximos daquelas que temos hoje em Portugal. Nos últimos oito anos, as contribuições sociais, portanto, pagas à Segurança Social, aumentaram em Portugal 79%.
Tem uma correlação elevadíssima com o emprego…
Muito justificada com o emprego e, em parte, também com o aumento do salário médio. É muito importante reconhecermos isto, não para nos satisfazermos, mas para percebermos o desafio. E quando fez a pergunta pô-la exatamente no sítio certo. O que é que vem a seguir ao pleno emprego? O que é que vem a seguir, porque sabemos, numa lógica de ciclos económicos, que, enfim, é muito difícil estender situações de pleno emprego durante muito tempo, sem sobreaquecer a economia, sem gerar inflação.
E desemprego também…
Na fase seguinte é o resultado.
Existe esse risco para uma economia como Portugal?
Acho que o risco, do ponto de vista da sua latência, da sua possibilidade de existir, existe sempre. Para isso estão as políticas económicas. E as políticas económicas, em vez de sobreaquecer o ciclo económico, por isso é que há pouco disse que elas não deviam ser procíclicas, elas devem gerir as flutuações de forma sustentada e com ajustamentos o menos abruptos possíveis. Por isso é que a política monetária deve ser gradual e não abrupta, por isso é que as políticas orçamentais devem apoiar quem tem de ser apoiado, em vez de serem procíclicas. E é esse o desafio que temos neste momento, que é como é que prolongamos um ciclo económico nestas circunstâncias.
Portugal beneficia, e talvez os dois grandes fatores que justificam a nossa situação diferencial com a Europa neste momento, são a estabilidade financeira, que é traduzida, por exemplo, nas melhorias de ratings que a economia portuguesa tem tido. As melhorias de ratings não beneficiam apenas o Estado, beneficiam o Estado, beneficiam todos, mas depois beneficiam também os bancos, as empresas e as famílias que nos seus créditos, que na sua atividade diária também têm acesso a financiamento mais barato. E o outro fator, que é mais estrutural, se quiserem, mas que é absolutamente essencial para Portugal, que é o do nível de qualificações.
Portugal tem vindo a aumentar o nível de qualificações, este é um fator distintivo desta fase em que a economia e a sociedade portuguesa se encontram. E ele está traduzido, não tenho a menor dúvida, no diferencial de comportamento que temos tido em termos económicos com os nossos parceiros europeus. Porquê? Porque eles já fizeram este trajeto há mais tempo. Nós estamos numa lógica de recuperação e essa recuperação traz obviamente benefícios. Também traz algumas dores de crescimento, que muitas vezes somos confrontados com elas, que têm a ver com o facto de muitas vezes as qualificações aumentarem mais depressa do que o emprego dessas qualificações. Mas o caminho que temos traçado, e que as famílias portuguesas felizmente têm adotado, é o mais profícuo e o mais produtivo no médio prazo.
Estamos a falar de números do desemprego, mas o que é certo é que os dados desagregados por classes etárias, por idades, mostram que o desemprego jovem é bastante elevado. E não nos esquecemos de dizer que esta é a geração mais qualificada de sempre. Teme que se desperdice talento com este desemprego jovem?
O desemprego jovem tradicionalmente é sempre superior ao desemprego total, mas também tem uma característica: tem uma duração menor. Ou seja, os jovens passam menos tempo desempregados do que os menos jovens. E, portanto, há uma maior rotação de jovens no mercado de trabalho e essa rotação, se for no sentido construtivo, de procura e de obtenção de melhores empregos, tem um sinal positivo para a economia portuguesa. Não podemos nunca esquecer que é importante que esse investimento, e só posso concordar com o teor da pergunta no sentido de que, é imperativo que a economia portuguesa crie os empregos para, na verdade, dar emprego a esses jovens mais qualificados. Os indicadores que vamos obtendo são bastante positivos, ainda que fiquem sempre – porque ficam sempre –, aquém das nossas ambições, não tenhamos dúvida nenhuma. Mas, vou-lhes dar só o número desde 2019.
Portanto, quando comparamos a economia portuguesa hoje com a economia que tínhamos no momento exatamente anterior à crise do Covid, temos hoje mais 12% de emprego no setor privado. Esqueçamos a administração pública, a saúde e a educação. Só no setor privado temos mais 12% de emprego. Mas o crescimento do emprego nos setores que pagam acima do salário médio, ou seja, aqueles que pagam mais, cresceu 22%. No mesmo período de quatro anos, nesses setores que pagam acima do salário médio, o emprego está muito mais dinâmico. Isto é a fotografia, digamos assim, dos últimos anos. E, na verdade, é aquela que devemos usar para projetar os próximos tempos, se se mantiverem as condições de estabilidade, de formação, as empresas vão criar emprego para jovens com as qualificações que temos vindo a adquirir nos últimos anos.
O que nos remete justamente para os próximos anos, os próximos três anos. O senhor Governador já referiu que é preciso responsabilidade daqui para a frente para colocar ou manter a economia a crescer a um ritmo de 2%, mais eventualmente, de acordo com o que vier, o que for a execução do investimento, por exemplo. Mas também é preciso responsabilidade política. O que é que espera dos intervenientes políticos? Que adotem uma lógica de continuidade do que têm sido as políticas dos últimos anos da recuperação pós-troika, pós-Programa de Ajustamento?
Sim, pós-Programa de Ajustamento. O processo de decisão política é muito, enfim, quase que apetece dizer policromático e muito variado. Ou seja, temos uma enorme quantidade de decisões, que podemos e devemos tomar, e que não se regem, felizmente, neste momento em Portugal, pela lógica de não haver alternativas. Elas existem e elas devem ser discutidas. Assentava só, dadas as minhas funções neste momento, numa mesma tónica, digamos assim, que aliás está muito sobre assento à sua pergunta, que é que devemos, dentro desse conjunto de escolhas que temos, não só o direito, mas o dever de fazer, de privilegiar – e daí eu, como Governador do Banco de Portugal, não me posso eximir –, numa lógica, sim, de estabilidade, de preservar a estabilidade financeira, de garantir que as opções que são tomadas não ponham em causa uma trajetória que nos vai dando, a cada passo, mais alternativas.
Porque, apesar do grande progresso que tivemos, a economia portuguesa ainda é uma economia com uma dívida elevada, apesar, insisto, de termos sido, no conjunto de todos os sectores, não só o Estado, mas as famílias, as empresas, a economia europeia, que mais reduziu o seu endividamento. Mas isto é um trajeto, não é um fim em si, e ele só tem sentido se for continuado, e se com esse percurso pudermos, objetivamente, ganhar a tal capacidade de escolha entre alternativas que existem.
Mas, Governador, perante essa paleta de cores de que fala, os programas económicos dos partidos às eleições parecem adequados com as exigências do novo Pacto de Estabilidade, ou estamos aqui numa espécie de corrida às promessas?
O Pacto de Estabilidade muda o enfoque das variáveis medidas em termos estruturais para uma regra de despesa. Não é necessariamente mais fácil cumpri-la do que as regras anteriores, mas é mais fácil de a transmitir. E há uma regra muito importante nestas fases não eleitorais, não estou a falar da fase eleitoral, estou a falar da fase em que, como há pouco o Luís dizia, estamos em pleno emprego, o tal sobreaquecimento da economia, que é a ilusão que se pode criar, de que a despesa permanente, seja do Estado, seja das famílias, seja das empresas, pode crescer acima da nossa capacidade produtiva. Isso deve ser evitado.
Não podemos agora acelerar quando se está em pleno emprego, porque a travagem depois vai ser muito mais brusca
Porque, quando se inverter o ciclo, não estando isso nas nossas previsões nos próximos semestres, quando se inverter o ciclo, se tivermos, entretanto, aumentado as despesas permanentes de forma mais rápida do que a nossa capacidade produtiva, vamos sentir um travão no pior momento em que ele nos possa aparecer, que é a tal próciclicidade. Não queremos travar quando a economia travar. E, portanto, também não podemos agora acelerar quando ela está em pleno emprego, porque a travagem nessa altura vai ser muito mais brusca.
Decorre daí que Portugal tem de ter disciplina. A regra da despesa diz que não é mais fácil de cumprir do que as regras anteriores, no entanto, ela converge para o mesmo objetivo que é reduzir a dívida até aos 60%. Portugal precisa para isso, como ainda falta 40% do PIB, de entregar excedentes todos os anos, não é?
Mas temos felizmente reduzido a dívida e já fizemos dois episódios de 17 até 2020 e depois de 2020, 21, até 2023, de grande redução da dívida e sabemos como fazê-la. E, portanto, na verdade, quando hoje na Europa se fazem exercícios de avaliação da sustentabilidade da dívida, a nossa dívida está mais bem cotada do que a holandesa, a francesa, a belga, a austríaca, a italiana, a grega. Ou seja, Portugal, nesse sentido, quase mostrou como é possível fazer. E, portanto, sim, temos de manter essa cautela, mas, insisto, foi essa cautela que nos trouxe a capacidade de reagir nos momentos mais difíceis. E não estou a falar apenas de Portugal, estou a falar da Europa. O sucesso financeiro que a Europa hoje tem deve-se muito ao comportamento que tivemos antes da crise pandémica, porque estávamos todos, coletivamente, num processo de redução do risco. Quando as economias estão num processo de redução do risco, têm muito mais capacidade de resposta perante as dificuldades do que quando, perante a possibilidade de reduzir esse risco, não o fazemos.
A minha pergunta era mais do ponto de vista social, se é possível continuar com o ajustamento das contas públicas desta forma, se não há resistência social, se não sente que tem de ser explicado de outra forma?
A palavra é essa, tudo tem de ser explicado. E as opções têm de ser explicadas. E não há maniqueísmos, não há formas absolutas de atingir um objetivo sem ele ser explicado. É o que temos de fazer, voltando à primeira pergunta que me fez, sobre a política monetária, temos de explicar quais são as condições e porque precisamos para inverter o ciclo das taxas de juros, e acreditamos todos que estamos próximos desse momento. A mesma questão se coloca em todas as dimensões de política económica ou social. É sempre importante pesar todas essas dimensões.
Estamos numa fase diferente daquilo que conhecemos nos últimos anos. Tivemos uma dissolução do Parlamento com a queda do Governo. Os Açores votaram, mas está tudo em aberto na solução governativa da região. Na Madeira a situação está por resolver. Em termos de incerteza que pode passar lá para fora, Portugal está num momento diferente, é mais arriscado isto que está a acontecer. Estamos a enviar sinais errados ou não é assim tão importante o que está a suceder?
Não, é seguramente importante e por ser importante internamente temos todos que estar muito focados nas decisões que temos de tomar. É muito importante também, ou igualmente importante, que transmitamos para todos aqueles que nos veem, até que nos veem como exemplo. Porque foi a grande mudança de Portugal neste momento, é a ideia que se tem deste crescimento cinco vezes mais rápido o crescimento do emprego do que a área do euro. Estamos a convergir sucessivamente com a área do euro, coisa que não acontecia antes, nunca tinha acontecido durante o período do euro.
O país tem, não só nas finanças públicas, mas também nas finanças empresariais, empresas mais capitalizadas, as famílias com redução muito significativa do endividamento. Conseguimos, e vamos ter de continuar a monitorizar esta matéria, que as famílias em Portugal conseguissem dar resposta ao processo mais forte de subida da taxa de juros que alguma vez registámos na área do euro. E os níveis de incumprimento estão muito baixos, não há sinais de que eles venham a aumentar. Não digo isto como um troféu para a economia portuguesa, porque tudo isto dá muito trabalho e um esforço enorme de todos, do Estado, das famílias e das empresas. Mas a verdade é que somos vistos como um país que cumpre, um país que responde aos desafios que tem de forma positiva. E o desafio que descreveu aqui, que há uns meses era inesperado no momento do tempo, mas ele iria colocar-se em algum momento, que é ter eleições, vai ser respondido com a mesma qualidade, digamos assim. Estou convencidíssimo disso, porque é como temos vindo a fazer. Isto não nos exime de manter um grande nível de exigência e uma muito boa comunicação, quer interna, para explicar às pessoas o momento em que estamos, quer externa, para que aqueles que nos financiam, que nos procuram, que são nossos clientes dos produtos que exportamos, mantenham um grau de confiança na economia portuguesa compatível com o passado recente.
A palavra incerteza não é uma palavra que goste de usar muito, porque acho que devemos analisá-la, mas transformar essa incerteza nos compromissos, e é por isso que o Banco Central Europeu tem de se comprometer com uma trajetória que seja clara e uma política clara para a taxa de juros e para todas as decisões que toma, mas também todos os outros decisores de política económica. O compromisso está na base de tudo, porque é aquilo que as pessoas retiram quando têm de tomar também elas decisões que muitas vezes estão dependentes, obviamente, de todas estas variáveis de que falámos aqui.
Governador, em 2025, para o ano, termina o seu primeiro mandato como Governador do Banco de Portugal. Faz sentido para si um segundo mandato?
A decisão não é minha.
Mas gostaria de ter mais tempo para aprofundar o trabalho que está a fazer?
Tenho tido uma atividade muito profícua e muito intensa enquanto Governador do Banco de Portugal. Estabelecemos como ideia-chave destes cinco anos, no Conselho de Administração, a proximidade e a confiança. E tenho pugnado muito pela ideia de proximidade e do Banco ter uma entidade aberta ao exterior, e temos feito um enorme esforço, não só eu, mas todo o Conselho de Administração e o Banco, para que isso aconteça. E nunca o Banco esteve tão presente na sociedade portuguesa como hoje. Acredito, e vou dar-lhe aqui uma nota quase que até pessoal: a alegria dos estudantes da Escola Secundária de Mirandela, quando fui fazer uma aula aberta, que é como lhe chamamos, e falar de economia. Esta é uma conversa muito próxima daquilo que tivemos aqui hoje. E eles disseram que era a primeira vez que um governador do Banco de Portugal estava em Mirandela. E isto é algo que tem um valor intrínseco muito grande para a instituição e seguramente para mim. E a mesma coisa do lado da confiança, que é transmitir da melhor maneira que sabemos aquilo que fazemos e o que pensamos sobre a economia portuguesa, porque a nossa última missão é precisamente essa de aconselhamento de questões sobre a economia portuguesa. E acho que o Banco tem muito para fazer. Se for comigo como governador e se for essa a situação, excelente, acho que nunca está terminada esta tarefa.