"Não se mata uma empresa onde os trabalhadores se esforçam e demonstram que são capazes de a levantar", sublinha um dos trabalhadores da fábrica de cortiça do Seixal
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Após 37 anos do seu encerramento, a fábrica de cortiça da Mundet, no Seixal, acolhe agora o novo espaço da memória da CGTP, inaugurado a 1 de outubro. Símbolo do movimento operário, esta fábrica foi palco de um conturbado processo de luta dos trabalhadores pela viabilização da empresa.
Outrora a maior fábrica de cortiça do mundo, a memória dos tempos de glória da Mundet é invocada por três trabalhadores, que viviam e trabalhavam na empresa.
"A Mundet exportava para todos os continentes: para a Ásia, para a Austrália, para a Oceânia. Para todo o lado", recorda um dos trabalhadores da fábrica, que chegou a empregar um total de 2500 pessoas.
Graça, José e António trabalharam na fábrica do Seixal entre 1976 e 1988 e confessam que, a da altura, já "moravam" no mesmo sítio onde trabalhavam. E, como eles, "famílias inteiras" também o faziam.
"Trabalhei na Mundet já quase no culminar, tanto da falência da empresa, como seis, sete anos antes", recorda José, em declarações à TSF.
José e Graça já estavam na fábrica há vários anos e o namoro consumado.
"Eu com 17 anos e ela com 15 anos, na mesma secção. Eu era afinador de máquinas, ela estava na máquina e de, vez em quando, avariava a máquina propositadamente para chamar o afinador. Quem era o afinador? Era eu", conta.
A história repetiu-se, já que, a relação dos pais de José surgiu mais ao menos da mesma forma: "A minha mãe conheceu o meu pai aqui também, como eu e a minha esposa. E a minha mãe conta-me uma história muito engraçada: o meu pai estava na tropa e, então, para ver o meu pai que ia a passar para o quartel - que já há muito tempo que não o via -, qual foi a ideia dela? Cortar um dedo para ir à enfermaria só para ir ver o meu pai a passar."
Terreno fértil para paixões, a fábrica da Mundet, no Seixal, era também uma pequena cidade, com "cantina, caixa de providência privativa" e até um "jardim de infância e creche".
"Os meus filhos foram criados aqui. Depois de casarmos, tivemos um filho. O filho vinha connosco para a fábrica. A minha esposa ia deixá-lo às 08h00. Às 11h00 saía, para dar maminha ao filho, e era assim. Não havia absentismo naquela altura, porque as mães, mesmo que o filho estivesse doente, tinham médico privativo", explica José.
Em maio de 1975, tinha já sido implementado um sistema de autogestão pelos trabalhadores e Antonio Inácio confirma que a fábrica era um modelo a vários níveis.
"Tinha a classe económica Mundet, que era uma micro cooperativa dentro da empresa onde os trabalhadores podiam adquirir bens alimentares mais em conta. Havia o Grupo Desportivo dos Trabalhadores da Mundet, onde o Leonel Fernandes, que foi campeão do mundo por Portugal na modalidade de hóquei em patins, foi jogador também do Grupo Desportivo dos Trabalhadores da Mundet", afirma.
Leonel Fernandes, que vestiu a camisola da seleção nacional 109 vezes, jogou num ringue construído nas horas vagas pelas mãos dos mesmos trabalhadores que, durante o horário laboral, produziam um sem fim de produtos de cortiça.
"A Mundet, aqui no Seixal, fabricava rolhas de cortiça, prancha para exportação, papel de cortiça, decorativos também, pastilhas, bolas", entre outros, como semiesferas para penas de badminton e até mesmo próteses mamárias.
"A empresa até produziu materiais que foram aplicados num Space Shuttle, o vai-vem espacial. Os isolamentos com determinadas caraterísticas, claro que cortiças com outra qualidade, com outras caraterísticas. Recordo-me de que a Mundet, nessa altura e nesse ano, até fez um calendário com o Space Shuttle alusivo a essa situação", aponta Antonio Inácio, que não esconde o desgosto com o encerramento da fábrica há 37 anos.
"Não se mata uma empresa onde os trabalhadores se esforçam e demonstram que são capazes de a levantar. Apesar das lutas para defender o contrato de viabilização, que chegou a ser aprovado pelos credores, depois há um recurso no sentido de bloquear a evolução dessa viabilização da Mundet para ela estagnar. Cortaram-nos as pernas", lamenta.
Antonio, Graça e José esperam agora que o espaço memória da CGTP, instalado desde há alguns dias na antiga fábrica da Mundet, dignifique a luta dos trabalhadores.