Para lá dos impostos, o que sobra afinal do resgate? Cinco anos depois do anúncio de Sócrates, convidámos dois economistas a revisitar a herança dos memorandos. E as medidas que ficaram para trás.
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6 de Abril de 2011. Às 20h38, em tom grave e recriminatório, José Sócrates anunciava na televisão o pedido de resgate à Comissão Europeia, ao Banco Central Europeu e ao FMI. Faz hoje cinco anos. A vida política, económica e social do país nunca mais seria a mesma, entrando em modo de cruzeiro, sem tempo para respirar, com o constante anúncio de medidas e promessas de reformas, e o crescente escrutínio das contas públicas por múltiplas entidades.
Ao memorando de entendimento original sucederam-se as avaliações dos credores internacionais e, com elas, uma miríade de sugestões e imposições que marcaram o ritmo da austeridade em Portugal entre 2011 e 2014.
Parte dessas medidas levou-as entretanto o Tribunal Constitucional, o novo Governo ou, simplesmente, a sua própria natureza transitória. Mas outras há que ainda resistem, apesar de nalguns casos também elas terem sido apresentadas como "temporárias". O que se mantém então?
As mudanças laborais resistem
Depois de avanços e recuos, o Código de Trabalho sofreu várias alterações, que resistem para já ao período pós-Troika. As indemnizações compensatórias ficaram mais baixas em caso de despedimento, foram introduzidos novos critérios para reduzir pessoal e, entre outras medidas, foram suprimidos os três dias de férias que Bagão Félix tinha introduzido como bónus à assiduidade.
O que regressa são os feriados. O Corpo de Deus (feriado móvel), o 5 de outubro, o 1 de novembro e o 1 de dezembro voltam a ser dias de descanso.
O economista Pedro Braz Teixeira espera que as alterações feitas às regras laborais não sejam revertidas. O investigador da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa acredita que será uma tentação para os partidos da esquerda nos próximos tempos, mas lembra que "Portugal está numa situação muito difícil, de competição, por exemplo, com os países do leste Europeu". E avisa que ou o mercado de trabalho se adapta ou o país vai "permanecer com níveis de desemprego muito elevados".
Já Ricardo Paes Mamede tem dúvidas que este tipo de medidas com "impacto muito significativo na desigualdade na distribuição de rendimentos" seja benéfico para "a flexibilidade, a eficiência e a competitividade da economia". O economista do ISCTE pede, em todo o caso, cautela, dizendo que é necessário estudar bem os efeitos das medidas e só depois decidir se deve ou não haver uma reversão.
Na Função Pública, a coligação PSD/CDS cortou, por exemplo, o valor das horas extraordinárias e das ajudas de custo. Medidas que se mantêm este ano, bem como os descontos para o subsistema de saúde ADSE, que foram aumentando progressivamente até aos 3,5%. O Governo socialista vai ainda resgatar as 35 horas de trabalho semanais no Estado.
Relativamente aos cortes nos salários do Estado acima de 1.500 euros brutos, acabam também este ano. Uma medida, no entanto, que não é só uma herança do resgate. Passos Coelho aumentou os cortes na Função Pública, mas, com a decisão do Tribunal Constitucional em 2014, o Governo PSD/CDS recuperou, a meio desse ano, o que já existia quando a Troika chegou a Portugal. São esses cortes que agora terminam, de forma progressiva.
O período da Troika trouxe também novas regras para os desempregados, que se mantêm. O valor máximo passou para os 1.048 euros, com um limite de 26 meses, mas foi reduzido o número mínimo de meses de emprego necessário para ter direito à prestação. O Governo PSD/CDS criou uma majoração para casais desempregados, que o PS manteve. António Costa dá agora também um apoio extraordinário aos desempregados de longa duração que tenham perdido o subsídio social de desemprego há um ano.
Os anéis que já não voltam
Muitas das privatizações foram prometidas ainda com o Governo de Sócrates, mas foi no período de resgate que uma série de empresas públicas passaram para mãos privadas.
A EDP, a REN, os CTT, a ANA (que gere os aeroportos) e os negócios de seguros e saúde da Caixa Geral de Depósitos valeram aos cofres do Estado mais de nove mil milhões de euros, valor que serviu para abater uma pequena parte da dívida pública.
Ricardo Paes Mamede reconhece que, mesmo que os partidos da esquerda quisessem, não haverá hipótese de recuperar essas empresas para a esfera do Estado.
A reversão do negócio da TAP prejudica o investimento?
Os privados entraram na TAP, mas aceitaram mais tarde rever o acordo com a chegada do novo Governo. O Estado vai partilhar o controlo da empresa com a Atlantic Gateway, de Humberto Pedrosa e David Neeleman.
A concessão dos transportes públicos urbanos também sofreu um revés. As empresas de autocarros de Lisboa e Porto vão afinal ser geridas por autarquias. A Metro do Porto continuará a ser concessionada a privados.
O investigador Braz Teixeira acredita que estas inversões de marcha abalam a confiança no Estado. E o resultado - assegura - é a revisão em baixa das perspetivas do investimento. O Banco de Portugal prevê agora 0,7% de aumento, quando há três meses previa 4,5%. O economista considera que é uma situação preocupante e liga esta revisão em baixa às decisões do governo. "Penso que tem a ver com uma perda de confiança dos investidores, porque o Governo veio desfazer negócios que já estavam feitos, contratos que já estavam feitos", lamenta Braz Teixeira, que avisa para os riscos de se tornar mais complicado fazer negócios no país.
Paes Mamede discorda. O investigador do ISCTE entende que nos dois casos, da TAP e dos transportes urbanos, os processos foram resolvidos sem pôr em causa a confiança no Estado.
O "enorme aumento" ainda por aqui anda
A herança mais pesada do tempo da Troika foi anunciada em 2012 por Vítor Gaspar: o célebre "enorme aumento de impostos". O antigo ministro das Finanças de Passos Coelho atalhou caminho ao chumbo do TC, que inviabilizara a suspensão dos subsídios de Férias e Natal dos funcionários públicos e pensionistas. Em contraciclo com a Troika, que pretendia um corte maior na despesa, Gaspar acabou por reduzir o número de escalões de IRS, criar uma sobretaxa extraordinária e aumentar uma série de outras taxas.
Este ano, o Governo de António Costa já começou a reduzir a sobretaxa de forma progressiva e até atualizou ligeiramente os escalões de IRS, mas o essencial dessa austeridade mantém-se, porque não houve ainda uma reversão do número de escalões.
Noutras medidas fiscais, o IVA na energia mantém-se com a taxa máxima, de 23%, ao contrário da restauração, que volta este ano ao escalão intermédio, de 13%.
A taxa máxima do IVA mantém-se nos 23%, mas esta não é uma herança da Troika. O aumento de dois pontos percentuais chegou logo no início de 2011.
Os impostos sobre o património, que revertem para as autarquias, tiveram também um aumento considerável durante o resgate, à boleia da avaliação extraordinária ao valor fiscal dos imóveis. O Governo de Passos Coelho chegou a introduzir uma cláusula de salvaguarda, que limitou as subidas do IMI a 75 euros por ano, mas eliminou-a no ano passado. Agora, o Governo aceita as propostas à esquerda e recupera a medida.
Já a reforma do IRC, envolta em muita polémica entre PS e PSD, foi travada a meio, depois de a taxa ter caído dos 25% para 21% em dois anos. O imposto sobre o lucro das empresas não vai chegar aos 19% (ou mesmo 17%) que tinham sido previstos.
As regras de "rigor e transparência" orçamental
Ricardo Paes Mamede destaca ainda as alterações no âmbito do processo orçamental. As novas regras e procedimentos e a criação, por exemplo, do Conselho das Finanças Públicas, merecem o aplauso do investigador do ISCTE.
Medidas que Paes Mamede diz serem "estruturais", que "introduzem rigor e transparência" e que, como outras tomadas entre 2011 e 2014, vieram provavelmente para ficar.