Primeiro, era apenas uma moeda virtual. Depois, chegou mesmo aos bolsos e carteiras dos europeus. Foi há 20 anos que nasceu o euro, a moeda única da União Europeia.
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O euro é hoje uma moeda forte (vale mais do que o dólar) e é utilizada em 19 países por mais de 340 milhões de pessoas. Mas nem só de arco-íris e sorrisos se fez o percurso da união monetária... A TSF leva-o numa viagem pela história do euro, no dia em que se assinalam os 20 anos da moeda única.
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Antes do euro, o ECU
Tudo começou com o ECU (a European Currency Unit - a "unidade de moeda europeia", em português. Criado a 5 de dezembro de 1978, o ECU foi a moeda virtual que antecedeu o euro.
"Foi criado com o objetivo de preparar o caminho para o euro e criar uma política de estabilidade cambial", explica João Duque, economista e ex-presidente do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG).
Apesar de não ser oficialmente reconhecido como uma moeda, o ECU era aceite pelo Banco Mundial para transações e integrava as moedas de todos os países pertencentes à então CEE (Comunidade Económica Europeia), à qual Portugal aderiu em 1986.
Na altura, o ECU deu até origem a algumas músicas mais insólitas, em território português.
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A 1 de janeiro de 1999, o ECU dá lugar ao euro, essa sim, a moeda oficial europeia. Inicialmente, era apenas uma moeda virtual. Três anos depois, passou a ser uma moeda física.
Uma adaptação difícil
A transição para o euro teve logo um arranque pouco harmonioso. Alguns Estados-membros da União Europeia, como o Reino Unido e a Dinamarca, recusaram-se a aderir à moeda única. Ainda hoje, estes países mantêm a sua moeda própria - sendo que o Reino Unido está mesmo em vias de abandonar, por completo, o projeto da União Europeia - com o polémico Brexit.
Já aqueles países que aderiram ao euro tiveram que passar por uma adaptação complicada.
"A vida dos portugueses mudou", constata João Duque. "As pessoas passaram uns três anos a aprender a fazer as contas do dia-a-dia numa nova moeda." Quem não se lembra dos caricatos conversores do escudo para o euro, que toda a gente levava consigo quando ia às compras?
No início, o euro foi mal recebido pela população, que o encarou como uma forma de subir os preços dos produtos. Uma desconfiança que, admite João Duque, até era bem fundamentada.
"As coisas ficaram mais caras, é verdade. Houve aí um aproveitamento grande", reconhece o economista.
As vantagens
Por mais defeitos que se lhe aponte, é impossível deixar de constatar os aspetos positivos do euro.
Antes de mais, a moeda única transformou totalmente a forma de fazer compras quando se viaja na União Europeia, deixando de ser necessário que os cidadãos troquem o seu dinheiro pela moeda local do país onde estão.
João Duque aponta também como vantagem o facto de o euro ser uma moeda forte - mais valiosa do que o dólar norte-americano e a segundo moeda mais utilizada em transações internacionais -, reconhecida internacionalmente.
Mas mais importante do que isso, diz o economista, foi "a estabilidade que o euro trouxe ao controlo da inflação".
"Eu lembro-me de ter taxas de inflação na ordem quase na ordem dos 30%!", recorda. "Uma pessoa ia comprar uma casa e, quando vai fazer contas à vida, dizem-lhe que a taxa de juro é de 25% ao ano, 25% do valor da casa! Eram valores exorbitantes que complicavam, de facto, a vida das pessoas".
Por último, João Duque aponta como um aspeto positivo da adesão ao euro a criação de um sentimento de pertença europeu. "Temos agora a noção de que qualquer coisa que qualquer Estado-membro faça tem um impacto em todos."
Os problemas
Ao passar a integrar o euro, houve várias coisas de que os Estados-membros tiveram de abrir mão.
"Integrar as economias é integrar mais políticas, perdendo poder de decisão e individualidade", lembra João Duque.
Desde logo, ao adotar o euro, dois dos mecanismos de segurança da economia de cada país - a capacidade de alterar as taxas de câmbio, para potenciar as exportações, e a capacidade de ajustar as suas próprias taxas de juro, para estimular a atividade comercial - deixaram de estar ao alcance dos países.
"Grande parte dos problemas institucionais associados ao euro ficaram visíveis desde muito cedo", afirma Mariana Mortágua, economista e deputada do Bloco de Esquerda.
"Basicamente, a adesão ao euro implicava: a perda da política cambial, a perda da política monetária e uma grande pressão sobre a política orçamental, que passa a estar altamente condicionada", refere.
A economista afirma que houve uma passagem para um "sistema altamente liberalizado", mas "sem que tivessem sido criados mecanismos compensatórios" e que levassem em conta o facto de países pequenos, como Portugal, passarem "a concorrer, em mercados internacionais, com países altamente industrializados, com outras capacidades de competição".
"A adaptação a estas novas regras foi duríssima para a economia portuguesa", sublinha Mariana Mortágua.
"O euro não serve para todos", constata João Duque. "Há muitas diferenças entre os Estados-membros, pelo que devia de haver uma maior cooperação e integração europeia", repara.
A hegemonia alemã
Uma das críticas mais frequentes ao funcionamento da zona euro é a interferência da Alemanha na economia europeia - e, consequentemente, na economia dos outros países do bloco europeu.
A preponderância da Alemanha é personificada pela chanceler alemã, Angela Merkel - que, se é adorada muitos, é odiada por muitos mais.
"Temos um Banco Central Europeu que era, supostamente, independente do poder político. Depois, na verdade, sabemos que funciona às ordens dos interesses geoestratégicos da Alemanha", ataca Mariana Mortágua.
Uma crítica que, apesar de tudo, é rejeitada por João Duque (ainda que não totalmente...): "É claro que se vem sempre dizer sempre que os alemães isto e aquilo... É verdade que os alemães terão sempre uma palavra, mas o euro não está ao serviço da política alemã".
A grande crise da zona euro
A crise financeira global de 2008 espoletou uma crise de dívida na zona euro, entre 2010 e 2012. A crise obrigou ao resgate financeiro de vários países europeus, como Portugal, a Irlanda e a Grécia - que só este ano se viu, finalmente, livre da ajuda financeira.
A solidez do euro e a união da Europa ficaram em causa. Para manter o dinheiro na zona euro e prevenir um fenómeno de deflação, o Banco Central Europeu tomou medidas sem precedentes: colocou as taxas de juro a níveis historicamente baixos, ofereceu empréstimos em conta aos bancos e comprou milhares de milhões de euros em dívida.
"A crise revelou todas as deficiências estruturais do euro, todas elas", declara Mariana Mortágua. Se a estas deficiências se juntar uma economia altamente endividada, quando a crise financeira chega e a resposta é austeridade, a estrutura produtiva dos países fica dizimada - exatamente o que aconteceu a Portugal, na ótica da economista.
Já João Duque nega que a origem da crise tenha estado na unidade monetária: "[O euro] teve aspetos menos bem-sucedidos, mas não é o culpado das crises individuais de cada país."
Pelo contrário, o economista defende mesmo que "se não fosse o euro, a crise teria, provavelmente, acontecido mais cedo e teria sido muitíssimo mais difícil superá-la."
Aquilo em que ambos concordam é que se acentuaram os contrastes entre o Norte e o Sul da Europa e, com eles, um sentimento de divisão entre os países.
"Talvez tenha criado ou ampliado a diferença entre aqueles que estariam mais aptos, que têm políticas mais coesas, e aqueles que estão mais afastados", reconhece João Duque.
"O processo de integração europeia era suposto trazer mais crescimento, mais prosperidade, mais solidariedade, melhores condições de vida, mais segurança, e, em vez disso, trouxe o contrário", lamenta Marina Mortágua.
Desafios para o futuro
Com 20 anos de história tão atribulados, o que se segue, daqui para a frente, para o euro?
A resposta de Mariana Mortágua é taxativa: "O grande desafio da união monetária será, certamente, a sua sobrevivência."
Há quem quem diga que os países da zona euro não estão a tomar medidas para se prepararem para outro embate económico, uma opinião partilhada por Mariana Mortágua. "A união monetária não tem criado instrumentos que garantam a estabilidade económica."
O presidente francês, Emmanuel Macron, tem vindo a propor a criação de um orçamento da zona euro, uma união bancária e um depósito de seguro para toda a Europa - propostas classificadas por Mariana Mortágua como "uma fraude" - mas estas não devem seguir em frente na totalidade.
João Duque refere mesmo que, daqui em diante, o desafio da zona euro será descortinar se há necessidade de criar "dois blocos na Europa - um de primeiro nível, mais integrado, e outra que faça um percurso mais lento - e em que medida é que isso vai afetá-la e levar, ou não, à criação de uma outra moeda europeia. Em suma, a existência de uma Europa de primeira e uma Europa de segunda, cada uma com a sua própria moeda.
Ao mesmo tempo, outras ameaças surgem. Os sentimentos antieuro e anti-União Europeia crescem em países como a Itália e a Europa - além do já mencionado atribulado processo do Brexit.
"É o desafio da legitimidade democrática e social", frisa Mariana Mortágua. "É o facto de as pessoas não só sentirem que as políticas não dão resposta aos seus problemas, mas sentirem que as decisões são tomadas por órgãos informais, não-eleitos e distantes."
"Estes são os desafios da união monetária - e não são pequenos. O quadro está longe de ser positivo, pelo contrário.
Com problemas, crises e desafios para enfrentar, a verdade é que, segundo o último inquérito feito pelo Banco Central Europeu, 74% dos europeus inquiridos consideram que o euro foi bom para a União Europeia, enquanto 64% afirmam que o euro foi bom para o seu país.