Jean-Claude Trichet foi presidente do Banco Central Europeu de 2003 a 2011 e geriu a grande crise financeira de 2008, que levou a Grécia, Irlanda e Portugal a pedirem ajuda externa.
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Que avaliação faz do governo português? Temos um governo único na Europa: um partido que perdeu as eleições mas que se coligou com dois partidos de esquerda. Está surpreendido com os resultados?
As nossas democracias são diferentes de país para país. Este governo está presente, governa. E eu não tenho nenhum julgamento senão que a saída para uma solução muito complicada foi encontrada por este governo. Agora, o que é do superior interesse português é que a economia seja bem gerida, que o crescimento seja maior e o mais sustentável possível (não um crescimento artificial) e que os fundamentais do país estejam a melhorar visível e significativamente. Atualmente todas as economias europeias, da zona euro, sem exceção, estão numa boa situação porque tem havido crescimento, os ciclos de negócios são bons e não é por causa de Portugal especificamente nem de qualquer outro país, é o total dos países da zona euro que estão a seguir na direção certa. É uma oportunidade única para fazer as reformas estruturais.
Em outubro de 2007 numa reunião do Ecofin, no edifício da Alfândega do Porto, em plena crise do Nothern Rock e com os primeiros sinais da crise que teve como desfecho a queda do Lehman Brothers, deu uma conferência de imprensa e disse que "estava tudo bem" e que "não havia motivos para alarmes e preocupações". Quando olha para trás, quais os erros que identifica na forma como a Europa lidou com a crise financeira?
... (respira fundo). Tem de saber que nas reuniões do grupo europeu eu dizia a todos os países: "Não se estão a portar como deve ser. Têm um nível de endividamento que é muito alarmante e um nível de perda de competitividade que também é alarmante".
Eu não queria alarmar a opinião pública nem os investidores, mas eles estavam à espera do contrário para poderem lidar com a situação que era considerada por todos e pelo BCE como sendo, diria, perigosa. Portanto, não sustentável a longo prazo.
Portugal fazia parte desses países, mas estavam também a Irlanda e a Grécia. Sem grande surpresa, os três países de que falei em maio de 2010 foram postos em situações muito difíceis. Por isso vamos refletir um pouco sobre a crise. Primeiro, claro que não foi uma crise europeia, foi uma crise americana, uma crise do subprime e depois uma crise do Lehman Brothers. Tivemos de lidar com esta crise que contagiou todos os países europeus e decidimos lidar com ela de uma forma arrojada. Se bem se lembra, a 9 de agosto, o BCE decidiu dar liquidez sem qualquer limite e por isso decidimos dar 95 mil milhões de euros a todos os bancos comerciais europeus. Foi realmente o início das decisões extraordinárias que tivemos de tomar na altura, pelo contágio da crise americana.
Depois tivemos a nossa crise na Europa, que foi uma crise da dívida soberana. Depois de terem sido postas em causa todas as instituições privadas financeiras, o mercado começou a demonstrar vulnerabilidade no compromisso. No início de 2010, os mais vulneráveis eram a Grécia, Irlanda e Portugal, por esta ordem. Foi uma situação terrível!
Tivesse Portugal, Grécia e Irlanda respeitado a estabilidade do crescimento e respeitado as regras que estabelecemos na zona euro, e não teríamos tido uma crise. E Portugal teria tido - como a Grécia, a Irlanda e até a Espanha, mais tarde - uma situação muito melhor. A zona euro teria estado em melhor situação.
O facto era que o resto do mundo deixou de ter confiança no compromisso dos países de que falei. Decidimos, no BCE, intervir e ajudar Portugal e os outros países. Ao mesmo tempo, estávamos a pedir a Portugal que se ajudasse a si mesmo, o mais rápido possível, porque sem a determinação que demonstrou, Portugal jamais teria recuperado a sua credibilidade. Ao mesmo tempo, claro, pedimos a todos os outros países da Europa que tentassem ajudar. Isto foi em maio de 2010, no exato momento em que estávamos a intervir. Foi um período muito dramático, complicado.
Hoje alerto: por favor, não vamos voltar a ter de lidar com isto, porque nos põe numa situação de desvantagem em relação aos EUA. Os EUA tiveram a sua própria crise financeira e nós, por contágio, sentimo-la da mesma forma. Mas depois nós tivemos uma crise financeira que os EUA não tiveram, nem outros países desenvolvidos. E foi culpa nossa! Não nos devíamos ter posto naquela situação. De todos os países da zona euro - éramos 15 no momento da crise do Lehman Brothers (hoje somos 19) - um terço estava em dificuldades. Mas dentro da perspetiva de que estamos todos interligados na zona euro, foi um grande problema para todos nós, os europeus.
A entrevista a Jean-Claude Trichet vai para o ar este sábado, às 13h, na TSF. É também publicada na edição em papel do Dinheiro Vivo deste sábado, que sai com o Diário de Notícias e com o Jornal de Notícias.