Falta laboratório aos jovens portugueses "e isso vai ter consequências a médio e a longo prazo"
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A cientista e investigadora Maria Carmo-Fonseca, que esta sexta-feira venceu o Prémio Universidade de Lisboa 2021, admite que a distinção tem um "significado muito especial e muito emotivo" por ter sido anteriormente atribuída a dois dos seus "mentores e referências". Em entrevista à TSF, lamenta a falta de investimento na ciência em Portugal e assinala a importância da troca e aquisição de conhecimento junto de cientistas estrangeiros.
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Como é que recebeu este prémio? Já tinha recebido um eventualmente mais importante, o Prémio Pessoa, mas como recebeu este?
Eu tenho de dizer que este prémio é extremamente especial para mim porque, no passado, o prémio da Universidade de Lisboa já foi atribuído a duas pessoas, duas personalidades que foram meus mentores, minhas referências para a minha vida profissional, que foram os professores João Lobo Antunes e a Maria de Sousa. Por isso, eu poder agora receber o mesmo prémio que eles receberam no passado tem um significado muito especial e muito emotivo. Depois, para mim é muito especial também receber um prémio da minha universidade, porque eu passei toda a minha carreira profissional dedicada à Universidade de Lisboa e em particular à Faculdade de Medicina. Eu adoro ser professora, sou muito inconformista, e todos os dias penso naquilo que pode ser melhorado e tentei, ao longo da minha vida, contribuir para que as aulas funcionassem melhor, o ensino dos alunos fosse melhor, que houvesse mais ciência na escola e na universidade. Por isso, ser reconhecida pelo trabalho que tentei desenvolver, pela minha própria escola e pela minha própria universidade tem um significado muito, muito pessoal, que me toca e que me sensibiliza imenso.
Na nota que acompanha a divulgação do prémio, o júri destaca a contribuição para a literacia científica. Somos um país pouco letrado? Ainda sofremos muito de iliteracia científica?
Ainda temos um longo caminho a percorrer para estabelecer uma cultura científica e generalizá-la a toda a população.
Somos um país que durante muitos, muitos anos não cultivou a ciência. Eu, quando era adolescente e tive de decidir qual era o curso que ia tirar, qual era a minha profissão no futuro, não havia a profissão de cientista. Da minha geração até hoje o país mudou completamente, mas nós ainda temos um longo caminho a percorrer para estabelecer uma cultura científica e generalizá-la a toda a população, ainda estamos longe de atingir essa meta. O que eu estou a assistir agora mais recentemente é que, devido às dificuldades de financiamento das universidades, os nossos jovens estão a ter menos aulas práticas, menos possibilidade de irem para o laboratório e fazerem experiências enquanto estão na universidade. E isso vai ter consequências a médio e a longo prazo, porque vai diminuir a nossa capacidade criativa, porque é quando somos mais jovens que todos nós tendemos a ser mais criativos e, portanto, esse contacto precoce, não tanto com a transmissão de conhecimento, mas com a criação de conhecimento, com o fazer experiências, com o experimentar aquilo que nunca foi experimentado antes. É algo que eu vejo, com pena, que se está a fazer menos no nosso ensino, quer no secundário, quer nas universidades, e isso é uma marca de que o país não está a ir no caminho certo em termos de desenvolvimento científico de toda a sua população.
A professora fez toda a carreira em Portugal, ao contrário de alguns colegas eventualmente até mais novos, que muitas vezes acabam por ir fazer investigação para fora. Teme que isto se agrave ainda mais no futuro?
Gostava de ir experimentar os novos equipamentos, as novas gerações de equipamentos. Depois voltava para Portugal e queria instalá-los no laboratório.
Eu não fiz toda a minha carreira em Portugal, estive vários períodos no estrangeiro, fiz o meu treino pós-doutoral durante três anos no Laboratório Europeu do Biologia Molecular, em Heidelberg, na Alemanha. E mesmo depois de ter voltado eu periodicamente passava os períodos das férias de verão em licença sabática no estrangeiro porque a ciência é global e é muito importante nós termos contactos permanentes com outros institutos que estão mais avançados, outros cientistas, trocar ideias, trabalhar com novas tecnologias, novos equipamentos que ainda não existem em Portugal... O que aconteceu comigo é que eu gostava de ir experimentar os novos equipamentos, as novas gerações de equipamentos, e depois voltava para Portugal e queria instalá-los no laboratório e começar a utilizar estas novas tecnologias, estes novos equipamentos, e isso aconteceu várias vezes ao longo da minha carreira científica. Eu recomendo a todos os jovens, é importante passar pelo estrangeiro.
Mas não ficar...
Passar pelo estrangeiro, mas não necessariamente ficar definitivamente, pela mesma razão que eu estava a indicar: há menos financiamento para as universidades, há menos financiamento para se estabelecerem grupos de investigação em Portugal e, portanto, a necessidade de ir para fora é cada vez mais notória. Infelizmente, há cada vez mais jovens, num mundo com muito talento, que vão, e vão ficando, porque não encontram as capacidades para desenvolver o seu talento científico e a sua ambição científica em Portugal e vão ficando pelo estrangeiro. Eles estão espalhados por todo o mundo e a todos os lados onde eu vou encontro sempre cientistas portugueses com muito sucesso, muitos deles com muito sucesso. E ainda bem, mas é uma dura realidade que não se está a resolver, bem pelo contrário.
Depois de uma vida, de mais de 40 anos dedicados à investigação e à ciência, qual foi a descoberta mais espantosa?
O meu momento eureka foi claramente quando consegui iluminar genes dentro das células.
As minhas descobertas foram sempre relacionadas com o modo como os genes funcionam, e eu sempre tive um fascínio por ver os genes a funcionar dentro das células. O meu momento eureka foi claramente quando eu consegui iluminar genes dentro das células e, ao estar ao microscópio a olhar, ver umas luzinhas a acender e a apagar dentro das células, que correspondiam ao gene que eu tinha iluminado. Essa foi claramente o momento que me deu o maior prazer ao longo de toda a minha vida, mas eu tenho sempre continuado a trabalhar nesta questão da rapidez com que os genes acendem e apagam, e portanto tenho sempre procurado novas tecnologias e por isso disse que era tão importante para mim ir ao estrangeiro e ver quais são os novos tipos de microscópios que existem e quais são as novas tecnologias que existem, para tentar desvendar este mistério do tempo em que os genes se acendem e apagam dentro das nossas células.
E quando se percebe que a investigação não tem saída, é frustrante? Quando percebemos que ela vai afunilar e que não vai dar em nada?
Isso acontece. Ter resultados negativos e fazer experiências que não dão o resultado que nós estávamos à espera faz parte do processo científico, porque sentimos um pouco de frustração durante algum tempo, mas rapidamente ficamos a pensar: "Ok, então, se isto não funciona desta maneira, eu tenho de dar aqui uma volta e pensar fora da caixa, e pensar num novo modelo, e agora desenhar uma nova experiência para testar o novo modelo." E esse é o fascínio da ciência, a ciência não tem um certo ou um errado, a ciência é uma procura constante para conhecer o mundo que nos rodeia. No meu caso, quero conhecer como funcionam as células, como funcionam os genes, e todas as respostas que nós obtemos são sempre incompletas. Há sempre mais atrás desta resposta, há sempre outra pergunta, há sempre outra experiência a fazer. Há sempre uma parte que ainda não foi revelada e, por isso, a ciência nunca acaba e não há resultados bons ou maus. Há passos que nós vamos dando, há momentos em que conseguimos encontrar uma resposta, e imediatamente a seguir a essa resposta pensamos: "Ok, então agora quero saber mais. Agora que já sei isto, quero saber mais." Porque nunca ficamos contentes com aquilo que descobrimos, há sempre muito mais por descobrir.
