Condenação de Bolsonaro: Supremo mostrou que "democracia que esquece quem a violentou está condenada à fragilidade"
À TSF, Joyce Martins, doutorada em Ciência Política, sublinha que no julgamento esteve em causa também o tipo de regime político que o Brasil quer para o seu futuro: "Não era o julgamento simplesmente de pessoas. É o julgamento do tipo de regime político que nós queremos, que é um regime político democrático"
Corpo do artigo
A politóloga brasileira Joyce Martins, professora da Universidade de Alagoas, no Brasil, considera que a condenação de Jair Bolsonaro e de sete aliados tem sobretudo um significado simbólico para o país: "Uma democracia que esquece quem a violentou é uma democracia condenada à fragilidade."
Em declarações à TSF, Joyce Martins defende que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) representa, desde logo, que há uma instituição que "guarda a Constituição" e não esquece um passado em que o povo brasileiro não tinha "direitos garantidos". A democracia, diz, agora está "atenta" e não quer nem "repetir, nem piorar" a História.
Se eu não olho para o passado e reflito sobre ele, esse novo vai nascer carregado do velho. Eu não consigo distinguir o que é realmente novo do que é realmente velho, se eu não olhar para a História.
A também doutorada em Ciência Política defende que no julgamento sobre a tentativa de golpe de Estado esteve em causa também o tipo de regime político que o Brasil quer para o seu futuro.
"Não era o julgamento simplesmente de pessoas. É o julgamento do tipo de regime político que nós queremos, que é um regime político democrático. De acordo com a democracia liberal, nós temos legislativo, executivo, judiciário", numera.
Ainda assim, recorda que a legitimidade de cada regime depende vigorosamente da "aceitação" do seu povo. "É um contrato político e social que essa população precisa hipoteticamente assinar e precisa aceitar e, para isso, precisa entender", defende, assinalando que a condenação de Bolsonaro, além de "histórica" (por ter sido a primeira vez em que um ex-Presidente da República foi punido por tentativa de golpe de Estado), foi também "exemplar e explicativa", porque "ensina".
Quanto à reação dos bolsonaristas, Joyce Martins antecipa uma "disputa de narrativa", em que o STF é enquadrado como uma instituição "autoritária", ainda que a decisão não tenha dependido unicamente da opinião do juiz relator, Alexandre Moraes.
"Vão tentar disputar que o que ocorreu não foi legítimo. Quando é legítimo, o STF pode fazer o que fez: é quem guarda a Constituição. Mas, claro, é simplesmente a lei ou simplesmente uma decisão de Congresso, uma decisão do Supremo. O bom funcionamento da democracia precisa vir também do público", vinca.
Quanto à probabilidade de Jair Bolsonaro cumprir efetivamente a pena de prisão a que foi sentenciado (27 anos e três meses em regime fechado), a politóloga reconhece que é uma realidade dependente de vários fatores: a defesa pode, por exemplo, apelar à continuação da prisão domiciliar devido à "idade" ou até mesmo "problemas de saúde".
"E, claro, o Congresso ainda pode pedir amnistia, mas não é apenas um poder. Não é apenas o legislativo, o executivo, nem judiciário. Então, a amnistia pedida pelo legislativo, ela vai ter de ter uma sanção do Executivo e também vai ter de ser avaliada pelo Supremo, porque essa amnistia não pode estar fora do que é previsto por lei e precisa respeitar também essa compreensão da primeira turma do STF de que houve algo ali que foi tão prejudicial a ponto de que mais de duas décadas de prisão foram pedidos para os condenados", explica.
Esta avaliação terá, assim, de passar também pelo "crivo" do poder judiciário, que já demonstrou estar em desacordo, por considerar que "não pode ser relevado o que ocorreu a 8 de janeiro".
"Foi um processo que se arrastou por meses. Eu não organizo um ato desse de um dia para o outro", nota.
Indo mais longe, Joyce Martins considera que a tentativa de amnistia, promovida pelos deputados bolsonaristas no Congresso brasileiro, espelha a "corrosão" que existe no interior das instituições.
"É uma tentativa, uma manifestação do Congresso em sentido contrário ao que a corte decidiu. Vai mostrar à sociedade não apenas que há políticos favoráveis ao lado do Bolsonaro, mas também que aquilo que o judiciário tentou conter já está dentro das nossas instituições, o que é muito grave", argumenta.
A professora considera mesmo que está é uma forma de "provocação" perante uma população que "já está polarizada", mas ressalva que, tendo em conta os elementos até agora conhecidos, a amnistia não "parece algo tão fácil de ser aprovado".
"E ainda que isso seja aprovado, tende a ser barrado no STF, que é o poder que decide a partir da Constituição", insiste.
Presidenciais 2026: o que está "em aberto"
As próximas eleições presidenciais, marcadas para outubro de 2026, são outro motivo de preocupação: Joyce Martins lembra que a esquerda brasileira está "muito fragilizada" por estar centrada na "figura" de Luiz Inácio Lula da Silva e admite que o "imponderável" vai ser "ainda mais forte" nestas urnas, caso algo aconteça ao atual chefe de Estado.
"O Lula quando está preso coloca [Fernando] Haddad, o Haddad não consegue ir bem na eleição, a Dilma também não foi bem (candidatou-se em Minas Gerais). Então, a esquerda não tem outro nome, não se ventila por enquanto outro nome, pelo menos com seriedade para estar no lugar do Lula", reflete.
Do mesmo modo, há uma "disputa" dentro da própria direita, uma vez que a direita "moderada" perde igualmente espaço com a vitória de Bolsonaro.
"Alguns [elementos] dessa direita mais moderada tentam-se colar ao Bolsonaro, mas já percebem também o prejuízo político que isso pode trazer. Então, vai ter uma disputa também dentro da própria direita. Quem é o sucessor: é uma direita que se coloca outsider contra as instituições ou não? Somos uma direita que quer jogar o Jogo democrático? É isso que está em aberto para as eleições de 2026", remata.