Tribunal decide se houve omissão de socorro nas mortes de 7291 idosos que viviam em lares de Madrid durante a pandemia
Em causa estão uns protocolos do Governo regional que impediam a derivação desses pacientes aos hospitais
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Durante a pandemia, 7291 pessoas morreram nos lares de idosos de Madrid. Entre elas, estava Eduardo e Paz, de 89 e 92 anos. Os dois adoeceram com Covid, mas nenhum recebeu assistência hospitalar porque um protocolo do Governo regional de Madrid o impediu. Agora, dois responsáveis do Executivo sentam-se no banco dos réus, acusados de discriminação e omissão de socorro.
Eduardo e Paz viviam há cinco anos no lar. A filha, Maria Villanueva, ia visitá-los a cada fim de semana, como aquele domingo, 8 de março, em que já não a quiseram deixaram entrar. “Tínhamos estado juntos no dia anterior, mas comecei a ouvir nas notícias que iam fechar os centros de dia e pensei que não iam demorar a fechar os lares. Por isso queria levar-lhes roupa”, conta.
Depois de alguma insistência, e porque todos a conheciam, deixaram que o pai viesse à rua buscar os sacos de roupa, mas já não a deixaram subir para ver a mãe.
Falámos um momento, expliquei-lhe o que estava a acontecer de forma a não o alarmar demasiado e depois veio uma enfermeira ajudá-lo a levar os sacos. Essa é a última imagem que tenho do meu pai: de costas, a subir as escadas com os sacos de roupa.
Sexta-feira, dia 13 de março, o Governou espanhol decretou o confinamento e todo o país se fechou em casa. Os pais de Maria resistiram menos de um mês. “A minha mão morreu dia 6 de abril e o meu pai dia 8. Dia 7 é o meu aniversário...”, conta Maria.
Eduardo tinha um telemóvel que usava para falar regularmente com a filha.
Mas, um dia, o meu pai deixou de me atender. Certo dia ligaram-me a dizer que o tinham encontrado caído no chão e depois deixei de ter informação. Ligava para o lar, mas ninguém atendia. E então começaram a ligar-me para dizer que o meu pai tinha umas décimas de febre, que estava abatido, mas sempre coisas muito sucintas.
Até ao dia 6 de abril. “Acordaram-me às 08h00 para me dizer que a minha mãe tinha falecido. No dia seguinte, como prenda de aniversário, liga-me um médico a dizer que iam sedar o meu pai porque já não saturava. Pedi-lhes que o levassem ao hospital, disse-lhes que andava a pedir que o levassem ao hospital desde dia 25 de março, mas disseram-me que não se podia”, lembra.
Os protocolos da vergonha
Eduardo não podia ser levado ao hospital porque havia uma ordem que o proibia. Um protocolo, estabelecido pelo governo da Comunidade de Madrid, liderado por Isabel Díaz Ayuso, que impedia enviar idosos com Covid-19 ao hospital, com o pretexto de que os lares iam ser medicalizados, algo que nunca aconteceu. O protocolo devia aplicar-se a pessoas, com deficiência, deterioração cognitiva, problemas de mobilidade e doenças terminais, mas os casos vindos a público fazem pensar que nem só a estas pessoas foi aplicado.
Eduardo, por exemplo, não tinha qualquer tipo de problema cognitivo e era completamente autónomo a nível de mobilidade e tarefas do dia a dia. “Até se encarregava da medicação da minha mãe, que tinha uma leve demência”, explica Maria. Ainda assim, também ele não teve direito a uma assistência hospitalar.
As famílias denunciaram o governo regional por discriminação e omissão de socorro e defendem que, parte das 7291 mortes que aconteceram nos lares de idosos de Madrid, podiam ter sido evitadas se essas pessoas tivessem recebido assistência hospitalar. Agora, pedem uma só coisa:
Justiça. Justiça. Que as pessoas que pensaram, fizeram, assinaram esses malditos protocolos cumprem o que tenham que cumprir segundo a sentença. Mas que o cumpram.
Luta de cinco anos
Durante meses, o governo regional negou que existissem tais protocolos, apesar do testemunho de pessoas como o ex-vereador de Políticas Sociais do Governo da Comunidade de Madrid, Alberto Reyero, que se demitiu precisamente devido a estes protocolos e os denunciou publicamente. “Eu avisei que, se esse protocolo se aplicava, as pessoas iam morrer de forma indigna”, disse Reyero à saída do tribunal esta semana, onde declarou como testemunha. “Eram discriminatórios e eu avisei que não eram éticos e, possivelmente, nem legais.”
Quando a revista científica BM Geriatrics, atraída pelo alto número de mortes nos lares de Madrid, publicou um estudo que concluía que o governo tinha impedido a derivação de pacientes aos hospitais, o Executivo teve de reconhecer a existência desses protocolos, que passaram a ser conhecidos como os protocolos da vergonha.
Ainda hoje, a presidente da Comunidade, Isabel Díaz Ayuso, acusa as vítimas de mentirem e terem um objetivo político com tudo isto, algo que Maria desmente. “Nós estamos aqui pelas nossas famílias, não somos de nenhum partido. E o triste é que ninguém da administração se tenha posto em contacto connosco durante cinco anos para nos perguntar se precisávamos de alguma coisa, nem que fosse ajuda psicológica. Agora dizem que as vítimas podem ir falar com eles quando quiserem? Agora? Depois de todas as faltas de respeito? Agora que façam a fotografia com outros”, atira.
Maria enterrou a mãe e o pai dia 11 de abril num caixão selado que não pôde abrir. Uma imagem que não lhe sai da cabeça:
Não me pude despedir. Não lhes pude dizer uma última vez que os amava. Nem sequer sei se são eles, que é uma coisa que me martiriza ainda hoje. Queriam ser enterrados num sítio específico e não sei sequer se fui capaz de cumprir a sua última vontade.