"Quando li o roteiro disse: 'Há aqui muita coisa que está diferente. 'Mas, quando assisti à série, gostei." O autor do livro que deu origem à série da Netflix diz que o espírito da investigação está preservado.
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Vladimir Netto confessa que ficou emocionado por Portugal ser o primeiro país estrangeiro onde o livro que lhe ocupou 17 meses de trabalho, "Lava Jato", vai ser lançado. O sentimento vem-lhe da ligação familiar. Neto de um português, Manuel Arnoso de Almeida Leitão, Vladimir de Almeida Leitão Netto aproveitou as primeiras horas no país do avô para conhecer melhor a capital.
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"Voltar aqui... Quer dizer, eu nunca tinha vindo, mas foi como se estivesse voltando. Eu cheguei no domingo de madrugada, vi o dia nascendo, andei pela cidade, fui na Praça do Comércio, peguei o elétrico até Belém... Isso me tocou demais. Fui almoçar no Cais do Sodré e voltei andando, peguei o Metro. Todas essas coisas me emocionaram, é muito emocionante para mim estar aqui, fico muito feliz por estar aqui."
O jornalista da Globo em Brasília, 44 anos, gravou mais de 130 horas de entrevistas, foi a centenas de almoços e leu milhares de documentos para escrever a obra que deu origem à série da Netflix "O Mecanismo". Ao ver as imagens admite que gostou e vê com naturalidade a polémica em torno da série.
- Porque é que decidiu escrever este livro?
Ao longo da minha carreira eu acabei, aos poucos, me especializando em grandes casos de corrupção.
Eu já cobri casos de corrupção, como repórter, uma ou outra denúncia... Eu tinha feito matérias como o caso de uns ministros que iam de jatinho para Fernando de Noronha. Eu tinha feito antes, em 2009, uma matéria importante: um governador do Distrito Federal (Brasília) que estava envolvido em corrupção, tinha vídeos... Então ia-me especializando nessa área. Houve o Mensalão, eu tinha atuado muito no Mensalão, então de uma certa maneira a minha carreira foi andando para esse lado. Quando começou a Lava Jato eu comecei a achar que ela era diferente, que era uma operação única. Ela estava tendo sucesso onde outras fracassaram, estava indo mais longe, surpreendendo, com prisões, investigações, até a delação premiada. Então, nesse começo da Lava Jato já ficou claro para mim que era uma história diferente, então eu comecei a interessar-me mais e aí, consoante os factos se foram desenrolando, eu vi que era inevitável escrever um livro. Os investigadores começaram a contar-me histórias, como a prisão do Youssef, que eu conto no livro, e começaram a contar-me como é que foi a compra do carro, pelo Youssef para o Paulo Roberto Costa (antigo diretor da Petrobras). Essas histórias são sensacionais.
- Entrevistou muita gente implicada na operação, como os convenceu?
Primeiro tem de ter muita insistência, "cara de pau", paciência... Chegar lá e perguntar: "Por favor, fala comigo?" Mas eu consegui falar com todos. O Alberto Youssef deu-me a entrevista e contou essa história [do carro]. O próprio Paulo Roberto esteve comigo e contou essa história. E contou uma coisa que eu julgo que ficou bem retratada no livro e que é a emoção, o sentimento de ser preso, ficar lá...
Falei com eles várias vezes, convenci-os, acho que eles conheciam o meu trabalho, então acho que foi um sinal de respeito ao meu trabalho.
- E com Sérgio Moro, encontrou-se com ele muitas vezes?
Sim, entrevistei-o a ele e à mulher dele. Tem até falas da mulher no livro. Naquele primeiro momento existia uma curiosidade muito grande no Brasil sobre quem era essa figura, tanto que o meu editor, quando ele me desafiou para fazer o livro, uma das primeiras questões era essa: quem é essa pessoa que assusta os investigados?
Porque há uma grande preocupação no início da Lava Jato que era sair da jurisdição do Sérgio Moro, os advogados fizeram esforços para tirar o caso e levá-lo para Brasília. A ideia era levar todo o caso para o Supremo, eles achavam que seria mais fácil atacar o processo se você escapasse do mérito e fosse tratar questões processuais. Então era natural que houvesse curiosidade sobre a pessoa do Sérgio Moro.
- O seu livro é a base da série "O Mecanismo", da Netflix, o que é que sentiu quando a viu?
Olha... Eu gostei da série. Obviamente que ela é ficção, sempre se propôs a ser uma série de ficção, desde o começo. Nunca a ideia era fazer um documentário, então não ia ser fiel aos factos, eles iam alterar, mas há muita coisa igual e isso é o que eu mais gosto. Porquê? Porque é muito gratificante para o autor você ver o seu trabalho, aquela apuração sua, como jornalista, se transformar naquela cena na série. Esse ponto eu acho bacana. As cenas como a prisão de Youssef, a detenção de Paulo Roberto, isso está bem retratado...
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- José Padilha (realizador e produtor) tem sido muito criticado e Lula da Silva ameaçou mesmo processá-lo. Você, como autor do livro que inspira a série, como é que se sente perante isso, essa polémica?
Eu sabia que ia ser assim. Quando li o roteiro disse: 'Há aqui muita coisa que está diferente.' Mas, quando eu assisti à série, eu gostei, cara.
O espírito está ali. O que é Lava Jato? É a maior investigação de corrupção, que descobriu um esquema de corrupção muito grande instalado na maior empresa brasileira, com a participação das maiores empresas privadas de construção do Brasil, que acabou crescendo e atingindo vários partidos. Isso está lá. Há mudanças de coisas, realmente, há coisas que até são questionáveis, mas acho que a polémica é natural.
- Coisas como a fala ("é preciso estancar a sangria") de Romero Jucá (PMDB), que é colocada na boca de João Higuino, o personagem que corresponde a Lula da Silva...
Isso. Era natural que acontecesse esse tipo de coisas, de controvérsia. Mas o que eles, da série, argumentaram é que, "pôxa", a ideia era retratar todo um sistema contaminado e isso me parece ser uma realidade incontestável, tocou todos os grandes partidos, e não só o PT que está a ser investigado, o PSDB também, o PMDB também.