Cozinhar nos potes com lume de chão, reavivando técnica culinária ancestral em momento único na Quinta de Ventozelo, assumiu a forma de hino aos sabores que perduram na memória
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Cinco potes em ferro fundido, cada um com larga folha de serviços e uma história associada, dispostos em círculo sobre as brasas, assumiam-se como figuras centrais de um cenário de arrebatadora beleza.
Na Quinta de Ventozelo, ouvindo o silencia enquanto o Sol ira rodando no horizonte matizado de cores outonais - o Douro em todo o esplendor cromático - estava tudo montado ao pormenor para um evento único, desenhado em torno da convivialidade gerada pelo modo de cozinhar de antanho.


Longe do palco habitual - a Casa Ana Monteiro, vizinha do famalicense restaurante Ferrugem - o evento "Ir com Sede ao Pote" concebido e organizado pelo chef Renato Cunha em parceria com a esposa Anabela Rodrigues, teve outra dimensão em sessão única: o chefs.
O trabalho, paciente, atento e meticuloso decorreu sob o signo do anonimato quanto às vitualhas, uma vez que o exercício de adivinhação, quanto ao conteúdo dos bojudos potes negros, não tinha sucesso: a tampa do secretismo impedia olhares indiscretos, por mais furtivos que fossem.
Do barbo ao javali no pote
No Jardim dos Aromas, as "Infusões com História" proporcionavam revigorantes boas-vindas, momentos antes de poder ser saboreado, nas entradas, o premiado (ex aequo) tomate coração de boi da Quinta e de desvendada a primeira surpresa, assinada pelo "chef" Miguel Castro Silva, nome grande da gastronomia portuguesa e com forte ligação à Granvinhos: barrigas de barbo grelhadas acompanhadas com grão-de-bico e vegetais.
Com o Douro ali tão perto, um peixe de rio trazido para a ribalta.
A sequência teve continuidade com uma feijoada de samos e línguas de bacalhau. Um prato divinal, com incrível harmonia de sabores, elaborado com feijoca branca e azeitona, pouco habitual neste tipo de cozinhados, tomate e pimento assado.
Seguiu-se o javali no pote, um prato icónico da Cantina, o restaurante da Quinta de Ventozelo, ainda hoje a maior propriedade do Douro, com uma área superior a 400 hectares, cerca de metade ocupada por mata.
Naquela tarde soalheira, o "chef" da Granvinhos, José Guedes, que se desdobra na supervisão da cozinha do restaurante Casario, na Ribeira portuense, teve auspiciosa estreia a oficiar nos potes: o javali, servido com castanhas e cogumelos Pé de Carneiro, credor de nota elevada, foi cozinhado com vinhos do Douro e Porto.
Foram necessários cinco galos de raça preta lusitânica - uma das quatro autóctones portuguesas - para a cabidela, um "pica no chão" com a carne dos galináceos desossada. Um pitéu cheio de sabor, confecionado de modo primoroso.
No pote, conhecido pelo formato das Beiras, foi elaborado o leite creme. Ovos de galinha, leite fresco não pasteurizado e canela
verdadeira foram ingredientes incorporados nesta sobremesa de eleição.
Um esplendoroso ponto final numa jornada eno-gastronómica harmonizada com os vinhos de Ventozelo, cujo portefólio é superior a duas dezenas e meia de referência; inclui três Porto (Colheita, LBV e Vintage) e um espumante, bem como um gin, também muito apreciado, de produção própria.
Estímulo para cozinhar em potes
Este programa, que teve o mérito de estimular a prática tradicional de cozinhar nos potes, ganhou contornos de celebração da ruralidade, com requintados sabores, obtidos graças a uma culinária de afetos, processada a ritmos bem diferentes da vertigem quotidiana dos tempos atuais.
No ambiente descontraído e elegante, destacou-se o som do jazz da dupla Pedro Molina e André Silva enquadrado no cenário esplendoroso da quinta, onde se respira tranquilidade e respeito pelo passado, bem documentado no Centro Interpretativo, premiado internacionalmente, e que merece visita.
A Granvinhos, proprietária de Ventozelo - Hotel e Quinta, teve o elogiável mérito de preservar, com criteriosa reabilitação, a identidade do património edificado, nos lagares, adegas, armazém e destilaria e capela de Nossa Senhora dos Prazeres - de porta sempre aberta --, elevando a patamares muito elevados o nível de conforto e de excelência do alojamento, nos 29 quartos distribuídos por sete edifícios, incluindo os sugestivos "balões", recuperados com requinte.
Sustentabilidade também no plano social
O enoturismo afirma-se como potente motor de Ventozelo, tanto mais que a modelar horta biológica, exemplo de cuidado ordenamento, manutenção, número e diversidade de espécies, é fornecedora, por excelência, de produtos da época destinados ao restaurante Cantina, um espaço outrora refeitório dos trabalhadores da quinta.
Ventozelo é um modelo de preservação ambiental, graças às boas práticas adotadas, e de sustentabilidade, até no domínio social, mercê de um plano estruturado de integração de trabalhadores de outras latitudes. Ali, sustentabilidade não é, de modo algum, mera figura de retórica.