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Começa a canícula a insinuar-se e logo se instala o devaneio da beira-mar. O restaurante Lamelas, em Porto Covo, é a balaustrada com que sonhamos o ano inteiro. Cozinha a cargo da chef Ana Moura, que em boa hora teve a moção de se mudar de armas e bagagens para junto das suas raízes maternas. Na verdade, os pais da genial cozinheira mudaram-se com ela, numa transformação radical de vida a que há que tirar o chapéu. Chegamos e logo temos ao dispor belíssimo pão alentejano, manteiga de porco e toucinho frito, à laia de recompensa da viagem. Há entradinhas e petiscos que não se encontram em lado algum. Por exemplo, o brilhante pâté de fígados de abrótea, que apresenta a cremosidade ideal e é intenso no sabor. A saladinha de polvo é deliciosa e não se consegue comer só uma dose. Há lulas fritas com maionese de algas que nos põem em estado de imponderabilidade. E faz-se o bem regional almece com peixe curado. Dá-se o nome de almece ao soro do leite de cabra ou ovelha, misturado com coalhada.
Entramos nos pratos de peixe, nos quais a nossa chef dileta é mestre. A abrótea com amêijoas em molho verde é absolutamente genial, frescura e rigor de mãos dadas. Há uma açorda alentejana com linguado frito e ovo escalfado que é de devorar e repetir vezes sem conta. Estamos, definitivamente, no sul, com tudo a que temos direito. Este prato pode provocar emoções súbitas, é um tratado. Está também disponível um outro prato que é mais viciante ainda. Falo da lula recheada com migas de grelos e pâté de ovas de pescada. É de tal acerto de sabores e texturas que nos beliscamos para garantir que está mesmo a acontecer. Aconselho severamente o arroz cremoso de peixe e camarão, feito à maneira do risoto, mas ligado apenas pela goma e suado do caldo. Toda uma experiência.
Há um único prato de carne, as migas de chouriço com entrecosto. Ana Moura quer oferecer o melhor da sua grande arte e evita o trivial, que se encontra em toda a parte. Estas migas são muito especiais e encantam pela novidade e pela diferença. Assim devia ser sempre.
A oferta doceira é variada e também muito assumida. As migas doces são baseadas em receituário tradicional e são conforto excelso, em todas as frentes. Faz-se uma tarte de queijo com espuma de caramelo e pistácio que configura perdição. E há uma mousse de chocolate com crumble de amendoim que é pura rendição, mesmo para quem não morre de amor pelas coisas doces. Acompanho a chef Ana Moura há muitos anos e desde a primeira hora que as suas criações culinárias me impressionam muito. No Lamelas ela eleva tudo para um outro patamar. E leva-nos com ela.