Nas Aldeias Históricas de Portugal há Receitas que Contam Histórias, trazendo à lembrança memórias e sabores de outros tempos.
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É um projeto inovador, concretizado graças a um exaustivo trabalho de investigação, alicerçado na pesquisa documental, recolha de elementos e contactos no terreno. Esta foi a metodologia seguida por Olga Cavaleiro para mostrar a alma gastronómica de cada uma das aldeias, mas a tarefa revestiu-se de algumas dificuldades.
"O objetivo era elaborar um documento, que não ficasse preso ao passado, mas fosse a construção de um conjunto de ementas identitárias, relacionadas, acima de tudo, com o saber fazer", sublinha Olga Cavaleiro, artífice deste projeto multissetorial desenhado para valorizar o património imaterial como fator diferenciador.
Integrar a comunidade através da recuperação de espécies autóctones, revitalizar a agricultura familiar e a recolha do receituário tradicional foram outros dos objetivos pretendidos.
Para Olga Cavaleiro, o conjunto das Receitas que Contam Histórias «não é uma mera carta gastronómica, um inventário de receitas, mas um instrumento que contribui para o turismo responsável e o desenvolvimento sustentável».
A elaboração dos menus tradicionais que permite fazer uma viagem no tempo foi bem recebida pelos restaurantes, tendo 14 já aderido ao projeto, mas é provável que o número aumente em breve.
«Vamos comer pratos de uma receita com uma história contada por alguém. A saborear uma refeição estabelecemos ligação ao sítio e às pessoas e sentimo-nos protagonistas de uma grande história», sublinha Olga Cavaleiro.
Enchidos, queijos, azeite e pão
O trabalho realizado permitiu a preservação de muitas práticas ligadas ao fumeiro, nomeadamente buchos, palaios e chouriças de ossos (Sortelha, Almeida, Castelo Rodrigo); morcelas doces (Castelo Rodrigo, Almeida, Castelo Mendo), bem como bôla doce, considerado pelos habitantes como o doce mais importante de Almeida; bôla parda; migas de peixe ou de tomate (Castelo Rodrigo); migas recheadas e galo do Entrudo (Trancoso); sangria, ensopado de cabra e uma variedade de migas (Idanha-a-Velha); a batateira (Monsanto); pés de borrego (Belmonte); arroz tostado ou jantar em dia de S. José (Castelo Novo); bôla de sardinha e carolos (Piódão) e sopa seca e sopa de Natal (Linhares).
Em Monsanto, a Mercearia da Paula, no sopé da protuberância granítica, é o único local onde se vende a batateira. O nome do enchido é derivado da incorporação de batata cozida, juntamente com a gordura do porco e tempero idêntico ao da chouriça.
Outros produtos do fumeiro local, as morcelas de fígado de porco e de arroz ou de sangue, com orégãos e cominhos são outros enchidos, obtidos a partir de produção própria de suínos, ainda são fabricados, regra geral entre outubro e março, quando a matéria-prima se esgota.
Com carne de cabra e hortelã é confecionado o borelhão, um enchido cujo modo de fazer Paula Lopes aprendeu com os mais velhos.
Ali perto, em Idanha-a-Velha, onde existe uma oliveira milenar, com a bonita idade de 1630 anos, Beatriz Gomes, 73 anos rijos, ainda amassa e coze pães de quilo e meio no forno a lenha comunitário da aldeia. Assim fez desde toda a vida. O marido, Francisco, dá uma ajuda, mas é mais espetador do labor da mulher.
Quentinho, a sair do forno, o pão é ideal para saborear o azeite bio produzido por Tiago Lourenço, um técnico citadino rendido há seis anos com a família aos encantos da vida rural, e o sócio Ricardo, a partir de variedades endémicas - bical, cordovil e galega. A criação de ovinos -- 180 merinos pretos alentejanos - é outra componente da atividade da empresa, que coloca no mercado 3 000 litros por ano da marca Egitânea.
Um périplo pelas Aldeias Históricas proporciona momentos de encanto, contactos de incomensurável riqueza humana, saborosas experiências.
No concelho de Celorico da Beira, mais concretamente em Vide Entre Vinhas, a caminho de Linhares da Beira, a Casa Agrícola Os Arais é produtora certificada de queijo DOP Serra da Estela. O fabrico passou de avós para pais e, desde 2014, passou a estar nas mãos da 3.ª geração, quando Célia Silva assumiu a liderança da produção.
O leite - 260 litros /dia -- das 270 ovelhas da raça bordaleira Serra da Estrela que integram o rebanho próprio - em conjunto com outros criadores são 1200 animais - dá para produzir mais de 100 queijos por dia.
O cardo utilizado no processo de fabrico, com leite cru e não pasteurizado, é de produção própria. Para produzir um quilo de queijo são necessários cinco litros de leite.
Para Célia Silva, que lidera uma estrutura que conta com seis pessoas, «a diferença principal dos tempos antigos para os dias de hoje é o aumento dos custos de produção.
Nos arredores do Fundão, a Beira Lacte fabrica queijo típico da Beira Baixa e de outros tipos há mais de três décadas. Berta Godinho, diretora geral, sublinha que a empresa familiar que dirige procura «fazer o melhor dentro das características tradicionais com forte componente manual».
A proximidade aos produtores de leite é um trunfo a empresa que conta com 31 colaboradores e fabrica queijos amarelo da Beira Baixa; Castelo Branco (só leite de ovelha); picante da Beira Baixa (cura de oito a 12 meses); cabra curado (muito tradicional na região e um dos mais representativos) ovelha reserva; curado e queijo fresco (leite de cabra e de ovelha) e ainda requeijão certificado da Beira Baixa, que esteve quase extinto. A travia (soro e coágulo) é outros dos produtos fabricados nas modernas instalações da empresa.
Nas andanças pelas Aldeias Históricas, sabe bem terminar o dia em Castelo Novo, onde na Associação Sócio Cultural saboreámos um reconfortante arroz de costelas, antecedido de uma sopa divinal. Para terminar este jantar tradicional confecionado por Laurinda Duarte, o dinamismo em pessoa, nada melhor que papas de carolo.
A doçaria
A doçaria é uma das facetas mais curiosas destes territórios, que permite reavivar festas de casamento e noutros dias festivos através dos bolos confecionados por gente sénior.
Em Castelo Rodrigo, há biscoitos de Escalhão; tónicos, económicos - confecionados com azeite, aguardente e raspas de laranja - esquecidos e bolinhas com chancela da Padaria Gomes, onde Maria José é figura destacada.
Naquele rincão da Terra Quente Beirã, Eugénia faz das amêndoas o negócio de uma vida: torradas com caril ou com ervas aromáticas são apenas duas das 14 variedades que produz e comercializa, divulgando um dos produtos de qualidade da região,
Mais longe., em Sortelha, Maia de Lurdes Matos recorda, aos 70 anos, as sopas paridas, idênticas às rabanadas, que eram dadas às mulheres após o parto. Embebidas em leite, fortaleciam as parturientes em tempo de recuperação.
Regressada a Sortelha após uma década a viver em França, Maria de Lurdes não perdeu o jeito de fazer as filhoses tradicionais e os enchidos: morcela e farinheira.
Para harmonizar, os vinhos DOC da Beira Interior, em frase crescente de notoriedade, são ideias. José Madeira Afonso, médico em Coimbra, hoje reformado, é hoje produtor. Em Souropires (Pinhel) vinhas sem tratamentos com herbicidas e pesticidas com 60 a 100 anos de idade ocupam 15 hectares. Começou a engarrafar em 1993 e nutre uma paixão imensa pelo que faz. «Há quem tenha Ferraris ou Porsches, eu gosto disto; mas, o vinho é como o jogo, torna-se viciante. O próximo é sempre melhor», sublinha com evidente humor.
O portefólio comporta as referências Casas Altas e Quinta Vale Ruivo, que expressam, com elegância, as características do "terroir" da Beira Interior, uma região de tradições e sabores e onde há Receitas que contam histórias.