Um percurso inédito através dos cocurutos da Serra da Estrela; a recriação histórica de pelejas da Guerra Peninsular e um pitéu regional na mesa de Freineda foram pontos marcantes do 15.º Raide do Bucho e Outros Sabores
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Uma viagem por todo-o-terreno, desafiando as alturas, pela gastronomia raiana, saboreando bucho, uma vitualha regional, e pela História, fazendo marcha-atrás no tempo até às Invasões Francesas, foi a aposta ganha de novo com brilhantismo pelo Clube Escape Livre, organizador do 15.º Raide do Bucho e Outros Sabores, iniciativa que teve na Junta de Freguesia de Freineda (Almeida), o parceiro, já histórico, deste programa diversificado.
É já um lugar-comum sublinhar o grau de excelência das organizações do clube da Guarda, mas nunca é demais frisar o extremo cuidado posto no fator segurança durante os trajeto por todo-o-terreno. Os controlos de passagem e a rede interna de rádio são ponto relevantes de um meticuloso trabalho regido pela legislação vigente.
Tais fatores voltaram a estar em destaque neste raide cujo programa teve um simulador Suzuki para corridas virtuais na neve ao volante de um Jimny; provas de vinhos (Avelanez e Quinta do Ministro) e de azeites (Ethos), produtos do concelho da cidade mais alta; visita aos viveiros de trutas em Manteigas e uma fartura de emoções serra acima e outra, bem quentinha, saboreada em plena estrada, como é histórica tradição.
A 1700 metros de altitude
A caravana de 38 veículo todo-o-terreno e uma centena de participantes contou com as benesses da meteorologia para se fazer à serra, estrela pintada de branco recortada no horizonte.
O baloiço de Maçainhas, com as águas da albufeira da barragem do Caldeirão em pano de fundo, deu o mote para os registos fotográficos de um dia sem chuva e com sol a iluminar a subida ao Cabeço da Azinha.
Do posto de vigia de incêndios florestais a vista abarca uma panorâmica soberba a várias dimensões, com cumeadas e vales entrecortados. É local com condições ideais para a prática do parapente.
O Suzuki S-Cross não estranha as partes mais pedregosas do percurso que se desenrola por extensas áreas ardida. É um dó de alma aquilatar a dimensão do trágico incêndio que devastou quilómetros e quilómetro de floresta. Os sinais de repovoamento florestal são parcos ou até mesmo inexistentes por aqueles lados, onde sobeja madeira queimada e árvores que são silhuetas pintadas a negro num cenário desolador.
Com alvura do maciço central a emoldurar quadro deslumbrante, o percurso vai ganhando altura até ao chamado Corredor dos Mouros, território de lendas e crendices onde o Cerro do Gato é o ponto culminante a 1700 metros de altitude!
O êxtase é inevitável perante a magnânima paisagem, Despida de arvoredo, a montanha mostra a sua face mais rude; impõe respeito, evidencia a nossa pequenez em tamanha dimensão.
A descida, pedregosa, exige atenção e coloca à prova a robustez do Suzuki S-Cross, que não se faz rogado quando as dificuldades aumentam. A caixa de velocidades manual, bem escalonada, é de fácil utilização, os travões são eficazes e a direção contribui para uma condução segura.
A descer para Manteigas, uma paragem no miradouro da Cruz das Jugadas, cujo topónimo está associado ao termo ‘jeira’, um pedaço
de terra lavrável num dia por uma junta de bois e sobre o qual incidia um imposto: era a jugada paga ao rei.
O miradouro, um espetacular parapeito sobre o verdejante vale glaciar do Zêzere, e o fantástico Poço do Inferno, tonitruante cascata de desmedida altura, foram locais de paragem obrigatória num trajeto que incluiu uma exigente subida após Vale da Amoreira. Um caminho pedregoso, atravessado por sulcos muito pronunciados cavados pelas águas pluviais. A adrenalina subia de tom na razão direta da inclinação do traçado, a exigir máxima concentração. O sistema All Grip de tração total deu preciosa ajuda nos pontos mais exigentes de uma longa e trabalhosa subida.
A cereja no topo do bolo foi o corta-fogo que se seguiu, ponto culminante de uma etapa sublime, por trilho e caminhos inéditos em iniciativas do clube liderado por Luís Celínio.
A fechar, uma tirada mais curta e rolante, com uma paragem reconfortante em Parada (Almeida), por cortesia da Junta de Freguesia local.
A caminho de Freineda, um percurso mais plano e rápido, enlameado e plano, em grande parte paralelo à A 25, com o Suzuki -Cross sem apresentar o mínimo problema.
Um trajeto ao jeito de ‘aperitivo’, antes de saborear a iguaria que deu nome ao raide, em que todos os participantes receberam um troféu Spal.
Para Ana Guerreiro, responsável comercial da Suzuki Motor Ibérica em Portugal, “foram dois dias de trilhos e paisagens deslumbrantes, momentos de cultura e boa gastronomia”, enquanto Luis Celinio, presidente do Clube Escape Livre, salientou “o sucesso desta parceria com a dinâmica Junta de Freguesia da Freineda, que mostra a excelência das tradições e de um território”.
Marcha-atrás na História até à Invasões Francesas
A escaramuças de Freineda, com tiros de canhão e de mosquetes e o envolvimento patriótico da populaça, trajando à época, munida de varapaus, forquilhas e enxadas afirmaram-se como um dos pontos altos do programa.
Várias dezenas de recriadores, entre eles elementos dos regimentos números 4 e 23 da praça de Almeida, fardados a rigor e destrinçados pela cor do punho e do colarinho da farda, protagonizaram alguma das ‘escaramuças’, fazendo várias barreiras de fogo contra o ‘inimigo’, que ripostava com determinação.
Houve ‘luta’ aguerrida, baionetas em riste, forte tiroteio a atroar os ares, empestados de cheiro a pólvora, e o ribombar dos canhões, só silenciados quando o cerimonial das bandeira e dos hinos impôs sepulcral silêncio no largo central, onde se destaca uma mansão senhorial: é o solar dos Morgados de Freineda, construído em 1695, onde Arthur Wellesley, 1.º Duque de Wellington, esteve alojado de 1811 a 1813 e dali dirigiu com sucesso as tropas que derrotaram o exército francês, em concreto triunfando na batalha de Ciudad Rodrigo, durante a 3.ª Invasão ordenada por Napoleão.
Uma encenação rigorosa e sublime das pelejas raianas, protagonizada pelo elemento do GRHMA (Grupo de Reconstituição Histórica do Município de Almeida), que contou com outras ‘forças’ internacionais na manhã em que, mais de dois séculos volvidos, a História voltou a ser revivida na região onde foi travada a Batalha do Côa, uma das mais sangrentas da Guerra Peninsular.
Restabelecida a ‘paz’, houve ‘alma até Almeida’, que é como quem diz, até ao terreiro circundante da capela de Santa Eufémia, para saborear o tão apreciado bucho, ao fim e ao cabo, o desígnio de um raide já tradicional.
Um pitéu revigorante
O bucho raiano, também conhecido por palaio (intestino grosso) ou bexiga do porco, é uma apreciada especialidade da região fronteiriça que se estende ao longo das margens do Côa, em concreto pelos concelhos de Almeida e do Sabugal.
Na sua elaboração entram carne, rabo, costelas, cabeça, orelha e ossos do porco, ingredientes que permanecem dois a três dias numa marinada elaborada com colorau, sal, alho e água,
Após aquele período, o bucho é cheio, atado e pendurado ao fumeiro, um procedimento idêntico ao dos enchidos.
Um pitéu saboroso e calórico, acompanhado com batata cozida e grelos de nabos, na ementa de uma suculenta jornada gastronómica, promovida com revigorante entusiasmo e afinco pela Junta de Freguesia de Freineda, que em paralelo monta uma mostra e venda de produtos regionais, em especial queijos, vinhos, pão, enchido, compotas e licores.
Outros sabores para além do bucho.
