Afeganistão: há muito a aprender com 20 anos de erros e não há só um culpado

Os taliban tomam o poder no Afeganistão. O governo de Cabul não consegue responder à ofensiva militar. Os EUA não abrandam a retirada. A TSF conversa com um antigo diplomata afegão.

Omar Samad é licenciado e mestre em relações internacionais pela American University e pela Fletcher School; vive em Washington DC. Foi Conselheiro Sénior de Abdullah Abdullah, quando este era o Chefe do Executivo do Afeganistão, foi porta-voz do MNE afegão. Serviu como Embaixador do Afeganistão no Canadá de 2004 a 2009 e em França de 2009 a 2011. Foi Investigador Sénior na New America Foundation e no United States Peace Institute. Hoje em dia trabalha também como consultor e é investigador do Atlantic Council.

Como avalia o que está a acontecer no seu país, no Afeganistão?

Agora que o terreno está a mudar em favor da tomada militar do poder pelos Taliban, da maior parte do país ou de todo o país, não sabemos ainda se a estratégia deles é parar num determinado ponto, e então usar essa alavanca para fazer algumas exigências políticas, por meio de negociações, ou se pretendem tomar o país inteiro e, então, basicamente, anunciar um novo regime. Não sabemos se esse regime terá uma base ampla, se será minimamente tolerável e que tipo de sistema e constituição ou lei eles querem trazer para o país. Não sabemos, mas está claro que o governo de Ashraf Ghani não é capaz de defender, proteger ou resistir.

E já não há mais ajuda internacional...

O apoio internacional é mínimo, no sentido de que, como sabemos, os americanos na NATO comprometeram-se com um certo nível de financiamento da formação e do apetrechamento das forças afegãs, mas isso está acabado e vai ser concluído até 31 de agosto, no que diz respeito aos americanos. Então, depois de uma presença de 20 anos no Afeganistão, no mundo - ou pelo menos em alguns países -, os governos sentem que fizeram o que podiam. E que agora é hora de os afegãos resolverem os seus próprios problemas.

Diria que isto é um fracasso total da política externa dos EUA em relação ao Afeganistão, mas também da União Europeia e da NATO?

Eu diria que, como alguém que esteve intimamente envolvido nessas questões desde o primeiro dia, foi um erro de cálculo estratégico gradual que se agravou ao longo de 20 anos, o que nos trouxe a esta situação que temos hoje. É que não aconteceu da noite para o dia. Não é apenas por causa de uma decisão, não é apenas porque o Sr. Trump decidiu falar ou o Sr. Biden decidiu sair numa determinada data. É uma incorreta gestão gradual e uma má administração de uma missão principal. Começámos com o pé direito e, a certo ponto, tudo ficou confuso. Perdeu-se o objetivo estratégico. Tornou-se uma missão com um contrato muito caro. E minámos alguns dos objetivos e valores que estávamos a promover. Por exemplo, dissemos: estamos ajudando a nossa terra a construir uma democracia. Por outro lado, minámos a democracia. E falámos sobre fazer a paz e trazer segurança e estabilidade. Por outro lado, levámos a cabo atividades que tornaram a situação menos estável e menos segura, especialmente para o povo afegão. Continuámos a dizer: vamos embora e estamos a terminar esta missão. E continuámos, ficámos, demos prazos errados tanto para as nossas próprias populações, quanto para o lado oposto. Concluindo, acho que há muito a aprender nos últimos 20 anos e não há só um culpado. É um erro coletivo de muitas partes, especialmente da liderança afegã, que, em minha opinião, não resultou.

Porque também não se pode dizer que, agora que os Taliban estão a chegar novamente, tudo vai ficar mal, e não haverá mais direitos para as mulheres, como se nestes últimos 20 anos tivesse sido uma espécie de Eldorado. Na verdade, mesmo que alguma legislação tenha sido aprovada e a Constituição mudada, muitas coisas foram bloqueadas no parlamento, houve uma oposição tradicional e política a alguns passos mais progressistas que a comunidade internacional planeava para o Afeganistão...

Deixe-me colocar as coisas de outra forma: não conseguimos - a comunidade internacional não conseguiu - entender o Afeganistão, não conseguimos entender o povo afegão, a cultura afegã, o contexto africano, regional e geopolítico. E pensámos que podíamos impor ou introduzir modelos que não se ajustavam ao país. Não ouvimos quem dizia: vocês precisam de fazer isso de forma um pouco diferente, a fim de tornar isso permanente ou aceitável. Estamos a lidar com uma população diferente, uma história diferente, uma geografia diferente, uma cultura diferente. E pensamos que o nosso modo de fazer as coisas é o melhor, e eles têm que o aceitar.

No caso da mulher, defendo plenamente os direitos das mulheres, das minorias e de outras pessoas no país como parte de uma ordem constitucional. Mas, depois de 20 anos, talvez apenas 0,05% das mulheres do Afeganistão tenham beneficiado de milhares de milhões de dólares de assistência e programas de ONGs. Como não nos conseguimos ligar com a população em geral, relacionámo-nos apenas com algumas pessoas em alguns locais. E esse modelo não funciona.

E do lado dos Taliban? Esta situação mais recente prova que eles não são realmente confiáveis? Porque comprometeram-se, no quadro das negociações em Doha, a não retomar a violência, enquanto as negociações prosseguiam...

Os taliban são um grupo muito difícil de lidar. São um grupo muito obstinado. Estão muito comprometidos com a sua própria agenda. Até mesmo um país como o Paquistão, que mantém relações estreitas com os Taliban, está a ter problemas em orientá-los ou ajudá-los. Portanto, o movimento taliban afegão representa um segmento da sociedade afegã como um todo. E há muito tempo que devíamos ter sido capazes de incorporá-los no novo Afeganistão, não por meio da violência, não por meio de ação militar, mas através de conversas e negociações, algo que estamos a tentar fazer agora, mas talvez seja um pouco tarde demais.

Espero, por outro lado, que os taliban também tenham aprendido a lição. Isto é, da mesma forma que digo que o mundo e os líderes afegãos deveriam ter aprendido muitas lições nos últimos 20 anos, também espero que os taliban possam ter aprendido muitas lições com os seus erros do passado, entendendo a sociedade e percebendo que nem todos nessa sociedade gostam dos taliban, que têm que ser mais abertos, têm que dar mais direitos, têm que ser mais inclusivos, e que não podem governar pelas armas ou apenas pela interpretação que fazem da Sharia. Portanto, há responsabilidade de todos os lados.

Temos de lidar com factos e realidades. Infelizmente, às vezes, nós não gostamos deles. Precisamos de nos envolver com os taliban tanto quanto possível, que é o que deveríamos ter feito nos últimos 20 anos. E envolvê-los quer dizer sentar e conversar sobre tudo o que afeta a vida do nosso povo. Da escola ao governo, aos direitos humanos e das mulheres, à educação e tudo o resto. Precisamos de chegar a um qualquer arranjo, precisamos encontrar um meio-termo que acomode e seja aceitável para a maioria dos afegãos.

Estamos a falar na tarde de quinta-feira. Os taliban conquistaram Kunduz, ameaçaram o aeroporto de Kandahar na semana passada, conquistaram Ghazni - é a décima capital provincial que conquistam numa semana. Pensa que podem fazer o mesmo em Mazar-i-Sharif, no Norte, ou serão, mais uma vez, parados pelo senhor da guerra Rashid Dostum?

Deixe-me dizer-lhe: agora, enquanto você e eu estamos a falar, eles estão dentro da cidade de Kandahar, estão dentro da cidade de Herat e nos arredores de Mazar-i-Sharif e nos arredores de Cabul.

Portanto, as coisas viraram a favor dos Taliban. E as forças de segurança do Afeganistão não estão a lutar, porque lutam há 20 anos. E eles percebem que o melhor é ir embora ou fazer as pazes ou concordar com alguma acomodação que coloque os Taliban no poder. E os líderes políticos e líderes tribais locais estão envolvidos em tudo isso, em todas as partes do país, Norte, Sul, Leste, Oeste. Temos uma situação muito diferente agora. A realidade no terreno é muito diferente do que ouvimos algumas vezes nos média. E a questão é: os Taliban vão tomar e manter as principais cidades ou vão parar em algum ponto para forçar o Sr. Ghani a deixar o cargo de Presidente e talvez concordar com um acordo de divisão de poder com o resto dos dirigentes. Mas, agora, os Taliban colocaram uma condição na mesa: o Presidente Ghani tem de ir. Eles não referem outros. Eles apontaram apenas para uma pessoa. E, se isso for uma solução, precisamos de o avaliar. Ao mesmo tempo, os taliban têm a responsabilidade de falar também sobre a redução da violência e sobre a possibilidade de concordar com um cessar-fogo em algum momento. Mas isso é tudo muito político e agora a política é conduzida pelo lado militar.

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