O livreiro com "sangue" português na cidade do papa Francisco
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A livraria Ateneo é das mais belas do mundo, uma atração turística obrigatória em Buenos Aires e faz parte de um império de venda de livros. Carlos Eduardo Gruneisen, filho de lisboeta, foi recebido pelo papa no Vaticano.
"Estamos a ter mais ou menos, no Ateneo Grand Splendid, entre 2000 e 2500 pessoas por dia, este. Mas na nossa cadeia tem sido melhor. Temos tido 14 milhões de visitantes por ano", conta à TSF Carlos Eduardo Gruneisen, sentados num dos camarotes do antigo teatro que é livraria, joia da coroa de uma empresa com dezenas de estabelecimentos livreiros. Desceu para um quarto a venda durante a pandemia mas, ainda assim, em 2020 e 2021, vendiam online uma média de cem livros por mês. Em circunstâncias normais, o número quadruplica.
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Carlos Eduardo, da família Gruneisen, tem sangue português: "A minha mãe era portuguesa, nasceu em Lisboa e veio para cá, digamos, para leste. Nos anos 50. Anteriormente no Rio de Janeiro, onde ficou dois anos. Veio para cá e estamos a morar, desde então, no mesmo prédio do outro lado da rua onde ela morou quando se instalou na Argentina, que é na Libertador e Coronel Díaz. A livraria começou em 1997. Em dezembro de 1997 estudámos o assunto no Ateneo. Não chegámos a acordo sobre o preço e fomos ver a segunda melhor livraria, a Jenny. A nossa ideia era devolver ao país tudo o que tínhamos conseguido com a venda da nossa primeira empresa, com a qual nos tínhamos dedicado ao petróleo durante muitos anos. E assim fomos para o negócio, com o mesmo fanatismo, no bom sentido. E finalmente, bem, comprámos a Jenny e em julho de 1998 comprámos o Ateneo, que não tinha nada a ver com a atual Ateneo. Desenvolvemos e profissionalizámos o negócio, mandámos pessoas para os Estados Unidos para ver como se fazia uma livraria. Estou a falar de 1998, até que também descobrimos este espaço em 2000 e trabalhámos durante seis meses sem parar, dia e noite, para o inaugurar em dezembro do ano 2001"
Carlos é filho de uma mulher de armas:
"A minha mãe era uma grande mulher. Digamos que a verdade é que ela tinha uma força de trabalho. Eu raramente vi isso. Estou a falar, por exemplo, de anedotas. Se se deitavam tarde num sábado, o problema era vosso. No domingo, tinham de fazer as camas às 08:00 e tomar o pequeno-almoço. Se quisessem voltar para a cama depois, o problema era vosso. Por outras palavras, estabelecia um ritmo de trabalho muito importante no seio da família. Ou seja, a minha mãe era uma pessoa com muito caráter, muito caráter."
A mãe também era uma atleta, nadadora: "Era. A minha mãe gostava muito de nadar. Todos nós aprendemos a nadar desde muito pequenos e a minha mãe foi campeã dos 100 metros crawl no Brasil. Portanto, bem, ela não era, era uma atleta, era magra, um pouco ao nosso estilo, mas muito atlética e digamos, viveu bem até aos 85 anos."
Uma lutadora?
"Uma lutadora. Sim, ela limpava, cozinhava, ia às compras, foi assim que aprendemos a comer peixe. Há quarenta ou cinquenta anos, a Argentina não comia peixe como agora. Íamos com o meu avô a Mar del Plata, ao porto, para comprar peixe e a minha mãe verificava os olhos, as guelras, para ver se o linguado, a sardinha, o bacalhau, etc., estavam frescos. Não me lembro agora... os vermelhos, uns peixes vermelhos do tamanho de uma sardinha. Carapau. Sim, quando eles vieram para cá nós trazíamos sardinhas com a TAP, transportes aéreos portugueses, esta podia ser importada há anos luz. Portanto, ele já era, digamos, um representante da embaixada portuguesa. E eu, de alguma forma, sempre acompanhei isso, digamos assim. Por um lado, eu era o mais novo do primeiro grupo e depois tive mais duas irmãs. Somos seis, sempre com os mesmos pais."
Era um sonho antigo seu dedicar-se aos livros? Quando estava a trabalhar na indústria petrolífera, pensou nisso?
"De facto, sempre gostei de livros. Tenho uma biblioteca muito importante dedicada aos peixes, répteis e plantas aquáticas, que tem pelo menos 40 anos. Mas sempre gostei de aprender. Borges costumava dizer que quando ia a casa de alguém conhecia a sua personalidade pelos livros que tinha. E bem, digamos, sempre gostei de livros. De facto, a certa altura fui também diretor de uma empresa americana e a verdade é que era num sítio no norte de Nova Iorque que era muito aborrecido para ficar a dormir e o grupo argentino voltava sempre para Nova Iorque e eu já aí andava à procura de livros para os meus filhos que tinham uns dois ou três anos. E aí comprei um livro muito interessante chamado Give your child a first read (Dê ao seu filho uma primeira leitura) e que marcava ano a ano os livros que deviam ser comprados para desenvolver a leitura nas crianças. Consegui fazer isso durante três anos. Depois disso, não mais, porque todos esses livros estão esgotados nos Estados Unidos. Por isso, não há maneira de continuar o processo. Mas digamos que sempre gostei."
Qual é o seu espaço preferido aqui na Ateneo Splendid? A secção da natureza, dos peixes, dos répteis?
"Digamos que, na verdade, já há muitos anos. Eu digo que sou um ictiólogo e herpetólogo frustrado, peixes e répteis que dediquei a criar peixes há mais de 62 anos."
A criar peixes...
"A criar peixes. E também, digamos que nesta fase do jogo, já sei muito bem o que eles são. Tenho três lagoas onde tenho peixes de vários tipos, desde os peixes naturais daqui até às carpas, digamos carpas chinesas, e tenho uma quinta de rãs arbóreas, uma que se chama "expulsa-pulseira". São aquelas famosas rãs que sobem pelas paredes e fazem um som muito engraçado, cric cric, que antecipa de certa forma a chuva. Acabei de terminar um livro muito bom, mudando de assunto, Os Portugueses no Atlântico Sul, escrito por um inglês, conta esta história... começando obviamente pelo Brasil. Por causa das correntes, para ir para Portugal, os navios partiam da Baía porque apanhavam o vento e chegavam mais depressa. A Baía foi a primeira capital durante muito tempo até ser deslocada pelo Rio de Janeiro. Também nos diz muito bem que os portugueses, que não tinham um grande exército, estavam interessados no comércio. Assim, por exemplo, em diferentes países de África, como a Nigéria, Moçambique, Angola, pagavam-lhes pela tecnologia marítima que Portugal já tinha para navegar com a troca de negros. E estes, muito curiosamente, eram recolocados na rota do navio de acordo com a sua especialidade. Por exemplo, se tivessem trabalhado nos campos abertos a criar gado, iam para o sul do Brasil, se tivessem trabalhado na mineração, iam para o Rio de Janeiro e assim, foi-se organizando e o Brasil desenvolveu-se a uma escala enorme. O Brasil tinha desenvolvido uma frota que não parava de navegar e de trocar mercadorias. Por exemplo, deixavam de passar por Portugal e iam diretamente para África. Em África, trocavam produtos e continuavam o seu caminho, chegando mesmo ao Japão, passando pela Índia. O livro é muito bom, realmente muito bom e estou a lê-lo apenas para aprofundar o meu português, estou no meu terceiro ou quarto livro em português. Li Os Portugueses no Atlântico Sul. Acho que é o melhor. Li Os holandeses no Brasil, Os Franceses no Brasil e outro assunto que também gosto muito: A História do Médio Oriente que começa 1800 anos antes de Cristo, como evoluiu e como conseguiram reconstruí-lo."
Está a lê-lo em português: "É, em português, muito difícil. A pessoa que mo recomendou no Rio de Janeiro disse-me que eu tinha de estar com o telemóvel à mão para encontrar palavras. É escrito por um antropólogo, um historiador e outra pessoa, muito bom mas difícil, para me superar. Os outros eram mais fáceis de ler. Portanto, na realidade, sempre me dediquei a, digamos, aprender."
É surpreendente que alguém que tem milhares de livros disponíveis aqui ainda compre livros como esse...
"Sim, é verdade. Por exemplo, comprei em francês, estou a acabar de ler... difícil, mas estou a recordar o meu francês, a teoria da arte moderna de Paul Klee. Portanto, também é um tema diferente. Mas ando sempre à procura. A arte é algo que me apaixona. Também olhando para a arte se conhece a história, se conhece a interpretação que as pessoas fizeram da história e do momento em que se está a viver. Por isso, procuro sempre... Obviamente, quando vou à Europa, vou a todos os museus. Coitada da minha mulher, mas ela é uma companheira fiel e..."
Ter, ser proprietário, gerir uma livraria com 100 anos, para além dessa gestão empresarial, vê isso também como uma responsabilidade cívica?
"Bem, claro que sim. E educativa. Por outras palavras, para nós, a qualidade dos livros é fundamental. E é por isso que eu comecei a aprofundar determinadas matérias de que gosto particularmente. Ao longo dos anos, no meu caso concreto, tento saber o mais possível, aprofundar matérias. Agora a importação de livros está um pouco fechada devido à crise do dólar no país, mas quando conseguimos, importamos livros, sempre a pensar no cidadão, ou seja, trouxemos livros que não eram produzidos cá e que eram importantes para as pessoas lerem e venderam muito bem, muito bem."
Carlos Eduardo Gruneisen lembra-se bem do dia em que Jorge Mário Bergoglio foi eleito Papa: "Eu tenho uma igreja perto do escritório e senti os sinos a tocar que o Papa tinha sido eleito, mas ainda não sabíamos quem era e passado meia hora já se sabia. Então lá preparámos tudo, editámo-lo. Um dos livros que foram feitos sobre o Papa."
Foi ver o Papa ao Vaticano?
"Claro, claro, estivemos lá, visitámo-lo, uh, tirámos fotografias com ele, digamos, estava lá a família toda, porque somos seis irmãos."
Hoje, olha com preocupação para o Papa Francisco: "Bem, ele está cansado. Está a pensar reformar-se e é um papa com um perfil social um pouco diferente do que tem sido a igreja tradicional. Está um bocadinho mais orientado para o que é o mundo de hoje."
Há uma recordação da mãe que foi benzida pelo Papa e que guarda com todo o cuidado: "Eu tenho uma medalha de Fátima que agora tenho medo de usar, que a minha mãe me trouxe de Portugal quando eu tinha 17 anos e desde que a mostrei ao Papa e o Papa a benzeu, já não a quero usar porque se me roubarem eu morro porque esteve comigo toda a minha vida. Por isso, agora fico zangado porque, com toda esta insegurança, não se pode usar ou até porque a corrente pode partir-se".
Mas está guardada em casa, em segurança?
"Sim, sim, e mantenho-a limpinha".
Esta polarização que se vê na cena política argentina, traduz-se no interesse das pessoas em comprar livros sobre política?
"Isso sempre existe. Não é só a polarização de agora. Há sempre um grupo de pessoas, há um perfil de pessoas que gosta de ler este tipo de livros. Portanto, isto não é novo, pode é haver mais, ou pode haver menos. Com Menem, por exemplo, havia uma quantidade enorme de autores que escreviam sobre este tema. Agora também há alguns. Ou seja, está constantemente a ser renovado porque a investigação é cada vez melhor, porque a realidade é que hoje a velocidade de obtenção da informação em função da tecnologia disponível na Internet, da investigação, etc., faz com que se possa chegar à informação muito mais rapidamente do que há 30 ou 40 anos. O próprio facto de ter o meu telemóvel ao meu lado permite-me, quando encontro palavras difíceis, escrever a palavra e automaticamente aparecem as línguas que quero. Isto simplifica muito as coisas. A mesma coisa acontece nas diferentes disciplinas, digamos que é a mesma coisa. De facto, antes, quando se queria estudar, era preciso ir à universidade buscar os livros, fazer fila, pedi-los, preencher um formulário. Recebíamos o livro durante duas horas e tínhamos de o devolver. Hoje em dia, tudo isto está na Internet. Posso ouvir música clássica, Beethoven, a 7ª Sinfonia, enquanto faço a barba de manhã."
Há um livro que acho que é novo, chama-se Galeria de Celebridades Argentinas, de Pola Oloixarac. A minha pergunta é: quais são os argentinos da na sua galeria senhor Gruneisen? Quais são os argentinos que mais admira, seja qual for a sua área ou época?
"Desde logo Sarmiento, que mudou o mundo. Menem foi muito importante para a Argentina. Ele provocou uma mudança..."
Domingo Faustino Sarmiento, o membro da geração liberal que fundou a literatura argentina no exílio durante o regime do caudilho Juan Manuel de Rosas. Quando fala em Menem, o ex-presidente Carlos Menem?
"Menem. Sim. Esta foi, digamos, uma mudança muito importante. A Argentina exportava 3 mil milhões de dólares de petróleo por ano. Ou seja, isto começou em 1993, estamos em 2023 e agora somos importadores. Ou seja, isto mostra um bocadinho o potencial que o país tem também na área marítima, mas não cuidamos dos nossos, quer dizer, temos isso todos os dias. Podem olhar para o Google e ver o que está para lá do limite das 200 milhas, à espera que ninguém entre no limite das 200 milhas e vá pescar. E há de todos os países. Por outras palavras, há muitas coisas ainda por desenvolver."
Viajemos do Atlântico Sul para o Atlântico Norte, falou-me de Fátima, mas pergunto-lhe se conhece Lisboa, a terra da sua mãe?
"Sim, sim, conheço o Estoril, onde viviam os meus avós. Tinham lá uma casa, sim, sim, e nós fomos visitá-la. E o mais incrível de tudo foi que conheci a pessoa que comprou a casa dos meus avós na Argentina, numa viagem ao sul."
Mas conheceu-a por acaso? Por acidente?
"Havia uma senhora que... Ele era médico e havia uma senhora que começou a falar português e depois eu falei português. Começámos a falar, a falar, a falar, a falar e... Mas ele perguntou-me Mas qual é o seu apelido? Piano. Ah, eu conhecia o teu tio. Ele disse-me: eu comprei a casa dos avós dele. Passando a escritura para o meu tio. Então isto, digamos que..."
O mundo é pequeno...
"Sim, o mundo é... a verdade é que é incrível. Digamos que o que está a acontecer hoje, especialmente hoje. Porque nós já vivemos uma época importante, muito diferente do que era o mundo atual. Hoje com as comunicações muitos livros são publicados e promovidos no Twitter, por exemplo, e as pessoas procuram-nos no Twitter. Quer dizer, há lá artistas, esta que nós vendemos, uma rapariga chamada Jo Rigg... que fez um livro, não me lembro do nome... já sei... La vaca en La Maca, que já vendeu milhares de livros e tudo através de vendas, através do Twitter, através destes meios de comunicação que os miúdos manejam muito bem. Isto não existia no nosso tempo. Eu estudei quando era preciso ir à biblioteca buscar livros."
Mas a vossa empresa também costuma estar nestas redes sociais à procura da atenção dos miúdos?
"Sim, sim, sim, claro, claro. Mas o que eu quero dizer é que eu não consigo acompanhar a velocidade de mudança dos miúdos. Impossível, não é? Impossível. A toda a hora são coisas novas. E eu ainda estou a interpretar coisas de há dois, três anos atrás. E continua. Continua, e com uma velocidade enorme e coisas novas estão a ser geradas. Conheço uma pessoa que desenvolveu uma tecnologia para monitorizar plataformas petrolíferas offshore com drones. É um argentino de 26 anos e já está a assinar contratos no valor de muitos milhares de dólares com empresas multinacionais que estão no Mar do Norte. Portanto, está a avançar a uma velocidade que, digamos, nunca conseguiremos alcançar. Mas o que eu gosto é de me interessar por estas coisas, pelo menos para acompanhar a mudança do meu ponto de vista e do que se pode fazer."
O livreiro, que fez fortuna nos petróleos, é especialista em répteis, criador de peixes, 69 anos é praticante de Surf incluindo no Guincho, mas não entra noutras ondas.
"Nazaré é uma palavra grande; faço no Guincho. Mas a água é um pouco fria. É preciso usar um fato de mergulho."
Nazaré é uma palavra grande, porquê? "O tamanho da onda é Impossível. Não, não é para toda a gente. E um brasileiro morreu recentemente. Não, não, muito grande. Demasiado grande. Isso é só para profissionais. Eu sou apenas um humilde surfista que adora a água e que a desfruta há mais de 54 anos. Por isso, treino durante o ano com outros desportos para chegar ao verão. Mas antes, no inverno, costumava ir para o mar. Aqui em Mar del Plata, que tem boas ondas. Desta vez tenho andado a surfar por todo o mundo."
Carlos Eduardo Grineisen, o dono da Ateneo em Buenos Aires, sangue português de um porteño, tal como o Papa Francisco.
