Muhammad Yunus é o criador da ideia do microcrédito que ofereceu uma saída da miséria a milhões de famílias. Agora, luta por uma vacina universal para prevenir o coronavírus. Entrevista à TSF.
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O Nobel da Paz 2006, Muhammad Yunus, está a protagonizar uma campanha mundial para que a vacina para a covid-19, quando finalmente chegar, seja para todos, universal, em vez de ficar como exclusivo ou propriedade dos países mais ricos. O apelo do "banqueiro dos pobres" já foi assinado por personalidades como Desmond Tutu, Mikhail Gorbachev, Malala Yousafzai, Bono, Richard Branson, Lech Walesa, Lula, George Clooney, Sharon Stone, Mary Robinson, Anne Hidalgo, Andrea Bocelli, Rigoberta Menchu, Shirin Eibadi, Romano Prodi, Gordon Brown, Jeffrey Sachs, José Ramos Horta, entre muitos outros. A entrevista ao programa O Estado do Sítio, na TSF neste Dia Mandela, em que o economista do Bangladesh participa na conferência organizada pelos portugueses da Academia de Líderes Ubuntu..
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Professor Yunus, num mundo cheio de laços estreitos entre grandes empresas e governos, pensa que a comunidade mundial pode realmente comprometer-se com a ideia de vacinas COVID-19 livres de interesses comerciais?
Estamos a tentar. Esse é o apelo que lançámos, agora já assinado por 140 pessoas e cerca de 30 delas são laureados com o Nobel. Portanto, esta é uma boa maneira de o fazer, no sentido de considerarmos a vacina como um bem comum global, mas há boas razões pelas quais isso deve ser feito. Acho que, em primeiro lugar, se houver uma propriedade comercial sobre a vacina, toda a vacina será administrada de maneira completamente diferente, tudo focado na maximização do lucro e entregue à melhor oferta. Portanto, a maior parte da população do mundo já estará a perder e o processo ainda não começou. Os Estados Unidos estão, embora agressivamente, a comprar apenas futuras vacinas.
Realmente, já investiram um ponto seis biliões de dólares para que seja uma empresa americana a fornecer cem milhões de doses e o seu objetivo é comprar 300 milhões de doses. Estão a comprar à Sanofi a maior parte da produção imediata que eles terão. Toda será comprada pelos Estados Unidos. Já avançaram com o dinheiro.
O Reino Unido assinou com a Glaxo Smith Kline para fornecer 50 milhões de vacinas apenas ao Reino Unido. E depois uma que trabalha com a Universidade de Oxford já anunciou que produzirão vacinas para a Europa primeiro. O foco parece estar apenas em cada país ou grupo de países, as pessoas não falam em algo para comprometer uma comunidade mundial como um todo.
Portanto, há um profundo sentido de indisponibilidade de vacinas para uma vasta parte do território do mundo e para todas as pessoas. Especialmente as pessoas pobres, de rendimentos médios e baixos, não serão capaz de aceder a essas vacinas.
Há também o risco de termos grandes negócios multibilionários de vacinas falsas nesses países e misturas que serão vendidas nestes mercados dos países mais pobres, alegando que estas são as genuínas e ganhando assim muito dinheiro, enquanto as pessoas sofrem porque estão tão desesperados para tomar a vacina, porque é a única maneira de sair da crise do coronavírus.
De forma a evitarmos tudo isto, o que temos que fazer é reunir toda a comunidade mundial e anunciar que a vacina não pertence a ninguém. É um bem comum. Há um precedente nisto que é a vacina da poliomielite que foram declaradas como um bem comum. Vacinas do povo, assim lhe chamavam. Não se trata de impedir que os americanos tenham a vacina, mas abrir a possibilidade para que todos as produzam, em vez de serem apenas controladas por algumas empresas. Aí, então, as empresas podem produzir em cada país, no Bangladesh, na Tailândia, no Camboja, no Uganda, onde houver instalações para isso ou onde se possam construir instalações para produzir isso o mais rápido possível. Portanto, não é apenas a disponibilidade da vacina. Importante para mim é também a pontualidade das vacinas. Portanto, se apenas puder estar disponível daqui a cinco anos, será o mesmo que não existir. Portanto, quando estiver disponível nos EUA e na Europa, ao mesmo tempo deverá estar disponível no Bangladesh, noutros países, em África, na América Latina, onde quer que seja. Portanto, isto deve ser feito simultaneamente e apenas o pode ser feito se não estiver na propriedade de alguém. É por isso que este apelo é tão importante.
Quais devem ser os primeiros passos? Fazer com que a Organização Mundial da Saúde (OMS) elabore um plano de ação para colocar a vacina no domínio público, como bem público global?
A OMS poderia desempenhar um papel de liderança, mas infelizmente a OMS foi atingida com tanta força recentemente pelos Estados Unidos... Em primeiro lugar, ao retirarem o dinheiro que já tinham alocado para a Organização Mundial de Saúde. E isto no auge do problema, quando a OMS mais precisava de todo o apoio e precisava de mais dinheiro. Quando precisavam de mais dinheiro, os Estados Unidos retiraram-no. E depois, foram submetidos a investigação, ou seja, houve investigações que enfraqueceram a sua mensagem. Agora, os EUA anunciaram que vão retirar-se enquanto membros da organização. Portanto, este não é um bom cenário. Diria que sim, a OMS deve ter um papel de liderança que lhe reste e outros países devem compensar a falta de apoio dos EUA com mais entusiasmo.
E, ao mesmo tempo, os líderes do G20 e os os líderes da União Europeia em cada nível, devem aprovar a resolução que declara a vacina como um bem comum global. A União Europeia já anunciou que apoia isto, convencerão as empresas a fazê-lo ou adotarão legislação para que isso aconteça. E para que, finalmente, vá à Assembleia Geral das Nações Unidas onde possa ser feito um anúncio formal de que a vacina é um bem comum global. E haverá compensações para as empresas não perderem dinheiro, mas também para não terem a propriedade; podes produzir quantas quiseres, tendo essa capacidade. Permite-se é que os outros também produzam em vez de ser um exclusivo de alguém.
Se esta campanha mundial não for bem sucedida, quais podem ser as principais consequências na sua opinião?
Espero que tenha sucesso. Não ser bem sucedida não parece ser uma opção. Como eu disse, o grande problema é que haverá uma tremenda corrida para alcançar a vacina e se não estiver disponível para os países que estão na periferia, haverá um grande tráfico de vacinas falsas. Será uma confusão total. Haverá várias vacinas diferentes e assim por diante.
Por outro lado, a China já anunciou que todas as suas vacinas, quando forem lançadas - (já têm quatro empresas que estão na fase de desenvolvimento; isto é, das oito ou nove que estão na dianteira, quatro são chinesas - começarão a produzir vacinas até o final do ano ou no início do próximo ano, desejavelmente) serão bem público, bem comum. Portanto, não haverá propriedade, todos podem produzir. Deve ser assim, em vez de ser apenas um ou dois que consegue a aprovação e que entra no mercado e todos têm que lidar com isso. Se tivermos várias opções, podemos tentar mobilizar toda a capacidade produtiva no mundo para produzir a vacina. E uma só empresa não poderá fornecer tudo, haverá um fornecimento global. Temos de abrir fábricas, prepará-las, podemos negociar para descobrir exatamente como produzir, com que velocidade, que tipos específicos de vacina, porque nem todas as vacinas são exatamente iguais.
Portanto, a fase de preparação deve ser iniciada, uma vez que concordemos que deveria estar disponível para produção gratuita, livre de propriedade. Então, esse é o objetivo final. Caso contrário, ficaremos sem vacina por muitos e muitos anos, porque não se está a proteger parte do mundo. Se não é protegida parte do mundo, o mundo inteiro não é protegido, porque o vírus será espalhado de novo a partir de algum lugar. Esse é o lado perigoso disto tudo.
Há aqui também uma dimensão económica na proposta? A produção, o fabrico em massa de uma vacina pode ajudar a compensar a perda de empregos fabris um pouco por todo o mundo?
Quanto mais rápido se chegar à vacina, mais rápido se poderá abrir a economia e fazer regressar os negócios e assim por diante, porque as pessoas agora estão livres para se mover, mas os países estão diferentes, as pessoas movem-se com muita relutância, apenas por sobrevivência, sempre com muito medo de que possam apanhar o vírus. Se toda a gente tiver a vacina, sinto-me mais confiante para voltar a fazer as coisas que desejo e preciso de fazer; portanto, por razões económicas, é algo muito importante. Mas, ao mesmo tempo, gosto de lembrar a todos que, ao esperarmos para reiniciar o mecanismo da economia que está adormecido por um coronavírus, precisamos responder a uma pergunta: devemos voltar ao mesmo mundo de onde viemos ou procuramos construir um novo? Esta é uma questão importante, porque o mundo de onde viemos foi horrível. E temos sorte de não precisarmos de voltar para lá. Pelo menos temos a possibilidade de não voltar.
Com o aquecimento global, estávamos a contar os dias, semanas e anos para terminar o mundo inteiro para habitação pelos humanos no planeta. Então, esse é o tipo de mundo que estamos à espera? Depois, há toda a questão da concentração de riqueza. Toda a riqueza nas mãos de apenas alguns pode, em breve, provocar uma explosão de raiva. E um enorme desemprego está prestes a acontecer por causa da inteligência artificial, da maneira como as máquinas estão a substituir os seres humanos e podem tornar-se cada vez mais rápidas. Então, esse é o ponto: o coronavírus veio e o mundo está parado.
Posso dar um exemplo: é como se estivéssemos no corredor da morte para ser enforcado ou algo assim, porque a nossa vida está prestes a terminar e todos nós estamos a avançar nesse corredor como se estivéssemos num comboio. Movemos o comboio em direção ao destino final de morte e destruição e o coronavírus chegou para parar esse comboio.
Hoje temos uma escolha: devemos continuar neste comboio ou sair dele, salvar-nos dos espíritos da morte, ir para outro lugar onde a morte não será algo que nos persegue? Portanto, essa escolha tem de ser feita agora. E eu digo que a decisão que tomamos hoje tem de ser a decisão de não voltar para trás. Ou mudar para um comboio novo, diferente. É possível porque sabemos exatamente quem são os responsáveis pelo aquecimento global. A lista está disponível. Quem está a contribuir e com quanto para o aquecimento global.
Portanto, ao passarmos para um mundo novo, temos de eliminar ou desencorajar: "você não vem, não trazemos essas empresas para o novo mundo".
E, da mesma forma, verificamos os plásticos. Não queremos levar plástico connosco. Tudo já é bastante sabido e conhecido, simplesmente estamos ocupados demais a viver e a desfrutar de uma maneira em que não temos tempo para considerar todas essas coisas: "a nossa vida é boa, se alguém sofre é culpa deles". E é por isso que os nossos filhos pequenos, os adolescentes, estavam a manifestar-se nas ruas antes do coronavírus ter chegado e os ter feito parar. Mas há um movimento global que, subitamente, começa a ser vital e culpa a geração dos seus pais por serem totalmente irresponsáveis. Dizem-nos: "Criaram um mundo para vossa diversão esquecendo o que a vida seria para nós. Não temos vida para nós. E vocês negaram-nos a sustentabilidade deste planeta como seres humanos decentes, seres humanos saudáveis neste planeta, porque vocês não o mantiveram saudável para nós. Então vocês são responsáveis. Agora, têm a tarefa de desfazer todas as coisas más que fizeram".
Então, esse é o desafio. Essa é a acusação que os jovens estavam a fazer. Se mudarmos de direção, não precisamos de aceitar essa acusação. Esta é outra questão crítica durante o período do corona.
Como tem vivido estes meses de pandemia? Qual foi o impacto nas suas rotinas e como está a lidar com isso?
Bem, como todo a gente, preso dentro da sala na minha casa. Mas também, ao mesmo tempo, esta é uma vantagem porque posso falar com as pessoas como estou a falar consigo agora. A tecnologia abriu essa porta. Não fico sentado a lamentar-me sobre tudo aquilo que nos acontece, posso dizer algo sobre o que faço sobre essas questões, como esta campanha para não nos trazer de volta para o passado. Essa é uma campanha e a outra campanha é tornar a vacina para a Covid-19 como um bem comum básico. E posso fazê-lo a partir de minha casa. Mas o interessante é que, se eu tivesse que visitar Portugal para fazer esta entrevista, teria que viajar. E agora, no mesmo dia, posso falar consigo, daqui a alguns minutos, conversarei com alguém na Austrália e no mesmo dia posso falar com cinco continentes diferentes, sem ser nada difícil, sem desperdiçar energia e criar poluição e assim por diante.
Sinto que estou mais ativo agora do que antes porque para falar com cinco continentes levaria várias semanas de viagens, problemas com tempo, espera de vistos, etc. Hoje eu posso fazer a mesma coisa num dia e as pessoas podem assistir, ouvir, ligar de volta. Então, diria que este é outro mundo.
Mas, por outro lado, as pessoas sofrem. O coronavírus fez as pessoas sofrerem tremendamente. especialmente na extremidade inferior do nível de rendimentos e, em países como Bangladesh, Índia e Paquistão, a maioria das pessoas está nessa situação, num estado muito vulnerável. Perderam todo o seu salário porque os negócios pararam e tudo parou. Não têm qualquer rendimento, já gastaram as suas economias e estarão perdidos e a vender aquilo que lhes resta como propriedade, sejam a casa ou os animais. Vão-se tornar completamente despossuídos no final deste tempo.