"13% das despesas militares globais seriam suficientes para erradicar a fome e a pobreza extrema no mundo"
A Fundação Fé e Cooperação e o Instituto Marquês de Valle Flôr decidiram abordar a questão da ajuda ao desenvolvimento e o papel de Portugal na defesa internacional. Estas duas entidades realizaram uma sondagem sobre políticas de desenvolvimento no âmbito do projeto Coerência. Entrevista na TSF
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Bem-vinda ao Estado do Sítio Ana Patrícia Fonseca (Fundação Fé e Cooperação). Que projeto é este? E a que conclusões é que chegaram com esta sondagem?
Este é um projeto que procura trabalhar a coerência das políticas para o desenvolvimento, que é um instrumento da União Europeia (UE), das Instituições da UE e dos Estados-membro, e que obriga a que as políticas europeias não contradigam os esforços de desenvolvimento dos países em desenvolvimento. Com esta sondagem, que foi feita pela Pitagórica, aquilo que procurámos perceber foi o que pensam os portugueses sobre o desenvolvimento e a cooperação para o desenvolvimento. Da leitura da sondagem que aborda cinco áreas temáticas, das questões de segurança e desenvolvimento às questões da defesa, talvez o dado mais relevante, para nós, é o apoio que os inquiridos dão às políticas de cooperação para o desenvolvimento.
61% defendem que Portugal deve aumentar o apoio a países de língua portuguesa, principalmente através da ajuda humanitária e programas estruturais de longo prazo…
Exatamente! É um dado bastante significativo, portanto, dentro dos países em desenvolvimento, os inquiridos consideram que Portugal deve ter como prioridade os países de língua portuguesa e em linha com aquilo que é a estratégia da cooperação portuguesa até 2030, mas também 83% refere que o mundo vai precisar de mais cooperação para o desenvolvimento. E, nestes tempos que vivemos em que do que falamos mais é dos esforços que temos de fazer com a Defesa, aquilo que a sondagem nos revela é que, para as pessoas, a cooperação também é muito relevante. 83% refere que o mundo vai precisar de mais cooperação internacional e não há uma dicotomia entre uma coisa e outra. Mas há, de facto, naquilo que tem sido o discurso político e também do ponto de vista mediático, tem sido dada muita ênfase às questões da defesa. E aquilo que nós percebemos com esta sondagem é que, além das questões da defesa que também aparecem aqui como um dado relevante, o estudo diz, por exemplo, que 40% dos inquiridos concordam que haja uma redução nas políticas de erradicação da pobreza a nível global, em caso de necessidade, para investir na defesa.
Isso preocupa-vos?
Não vemos como uma dicotomia.
Mas os orçamentos também não são infinitos.
Não são elásticos, mas aquilo que vemos no estudo é que, havendo esta preocupação que também é legítima, porque no espaço público, de facto, as questões da defesa são as que predominam tanto no discurso político como também no espaço mediático, e isso também preocupa as pessoas, e acho que este dado revela essa preocupação. A verdade é que se fizermos uma leitura global dos dados da sondagem, há um apoio também muito significativo à cooperação para o desenvolvimento. Aquilo que que nós defendemos e promovemos é a construção e a manutenção da paz e sociedades pacíficas, como está no ODS 16, o objetivo de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas 16. Acreditamos que há espaço do ponto de vista daquilo que é a opinião e a perceção dos cidadãos para trabalhar nessa área — ao contrário daquilo que temos vindo a assistir, sobretudo do ponto de vista do discurso político e da ação política, em que se fala muito mais de guerra do que de paz, em que se fala muito mais de como nos podemos defender de uma potencial ameaça do que como podemos promover a paz e como podemos reforçar as operações de paz, tanto ao nível das Nações Unidas como no próprio espaço da União Europeia.
Esse discurso político parece, de alguma forma, já ter passado para, ou contaminado pelo menos, a opinião pública. É o vosso estudo que revela que 59% dos inquiridos consideram adequada a participação de Portugal em missões de segurança e defesa, 24%, que é uma percentagem também elevada, acham que deve até ser aumentada…
Sim, sem dúvida que este discurso político, como dizia há pouco, vai contaminando aquilo que também é a perceção das pessoas e destes cidadãos inquiridos, em particular. Não só vai contaminando a opinião dos cidadãos, como também tem uma expressão nos próprios orçamentos e agora temos a meta dos 2% para a defesa e, por contraponto, a meta da ajuda pública ao desenvolvimento, que é uma meta que vem desde os anos 70, de alocar 0.7% do rendimento nacional bruto à ajuda pública ao desenvolvimento, essa sistematicamente não é cumprida. Portugal também está nesse grupo dos que não cumpre esse compromisso internacional. Portanto, há aqui, de facto, uma contaminação não só da opinião pública, como também das próprias políticas públicas e dos orçamentos destinados a estas políticas públicas.
Nós vivemos numa era de grande conflitualidade. Vivemos um tempo em que temos o maior número de conflitos a nível mundial desde a Segunda Guerra Mundial. As despesas militares mundiais são também as mais elevadas desde o tempo da Guerra Fria. E vemos sistematicamente que os orçamentos para a defesa são justamente para armamento, para a capacitação e a formação de tropas e apenas 0.6% do orçamento das despesas militares globais são para operações de manutenção e da prevenção. Até do ponto de vista da racionalidade económica faz pouco sentido, porque sabemos também que por cada dólar investido em operações de prevenção de conflitos, são poupados 16 dólares na resposta reativa aos conflitos. Também sabemos que para as sociedades prosperarem, para as pessoas poderem viver com dignidade, precisamos de paz e aquilo que defendemos, enquanto organização da sociedade civil, é que o foco das políticas públicas deve ser colocado, com coragem, na defesa e na construção da paz. Aquilo a que assistimos hoje é justamente o contrário. O foco é na guerra. Fala-se de guerra e na defesa e pouco na paz e na cooperação. Aquilo que defendemos é justamente isso: é que se possa promover a paz, se possam promover sociedades pacíficas, onde as pessoas possam viver com dignidade, possam ter acesso à educação, a serviços de saúde e que possam de facto ter uma vida digna.
Também sabemos que o orçamento do bolo total das despesas militares a nível global, se nós dedicarmos percentagens de 2% desse orçamento, por exemplo, seria suficiente para o fornecimento de água e de higiene e de saneamento para populações que, neste momento, não têm acesso. 6% das despesas militares a nível global seriam suficientes para que todas as crianças pudessem ter a nível global acesso ao ensino primário e secundário, e 13% dessas mesmas despesas seriam suficientes para erradicar a fome e a pobreza extrema no mundo. Os orçamentos não esticam, não são elásticos, mas há opções políticas que põem o foco num ou noutro lado.
O Papa Francisco, na sua mensagem deste ano para o Dia Mundial da Paz, dia 1 de janeiro, fazia três grandes apelos: o cancelamento da dívida dos países em desenvolvimento, a abolição da pena de morte e a criação de um fundo, com uma percentagem das despesas gastas em armamento, destinado à educação universal e à erradicação da pobreza. E, portanto, aquilo a que assistimos são opções políticas que se traduzem nos orçamentos alocados a essas políticas que podem ir para o lado da construção da paz e de sociedades pacíficas, onde as pessoas podem prosperar e as economias podem prosperar ou a políticas de defesa que têm vindo a promover um ciclo de conflitualidade do qual é difícil sair.
E estamos, portanto, a caminhar no sentido completamente contrário àquele que acaba de defender. Temos os países a serem mobilizados para aumentar mais a despesa em defesa e segurança. Vamos ter, no final deste mês, a Cimeira da NATO a 24 e 25, em Haia, Países Baixos. E o que vai estar em cima da mesa não são só os 2% de orçamento em defesa, mas sim já 5%, vai ser essa a proposta que os países da Aliança Atlântica vão ter em cima da mesa, uma proposta muito levada a cabo, muito carregada, digamos assim, pelo Governo dos Estados Unidos. Temos também os cortes da administração Trump na ajuda ao desenvolvimento com o fim da USAID, que estão a ter impacto no mundo todo. O que é que já puderam ver ou sentir, ou perceber relativamente a isso?
Aquilo que assistimos é ao desmantelamento de algumas organizações ou à saída de algumas organizações de países em desenvolvimento, nomeadamente naqueles onde nós trabalhamos como Moçambique, onde algumas organizações eram financiadas pela USAID e, neste momento, estão a sair do país com todas as consequências para as populações com quem trabalhavam, sobretudo do ponto de vista do desenvolvimento humano, da promoção, da educação e da saúde.
Vão deixar de conseguir fazer esse trabalho? O que é que, na prática, para que as pessoas possam perceber melhor, o que é que essas organizações fazem no terreno? Quando se fala em saúde e educação, isso acaba por continuar a ser um pouco abstrato. O que é que fazem concretamente no terreno e o que é que fica em causa com o desmantelamento ou com a saída dessas organizações?
Muito do que é feito é na formação dos professores, dos diretores de escola, dar capacidade aos professores desses países e às escolas desses países [para] que possam funcionar de forma eficaz e com capacidades técnicas do seu quadro docente, mas também com capacidades organizacionais do ponto de vista da gestão da escola para que melhor possam educar e instruir os seus alunos. E isso é uma das coisas que pode cair por terra, sobretudo as organizações que trabalham nesta área. Vão deixar de apoiar os professores, vão deixar do ponto de vista da sua formação e da sua capacitação, e que é um trabalho contínuo e constante e, ao ser interrompido, põe em causa a qualidade e o acesso ao ensino de qualidade de muitas crianças.
O mesmo do ponto de vista da saúde, tanto do ponto de vista da capacidade e da capacitação das unidades de saúde, como também da própria prestação dos cuidados que muitos são também financiados com o apoio da USAID e também de outros países europeus que já anunciaram e que já estão mesmo a cortar nos seus orçamentos de ajuda pública ao desenvolvimento.
Estamos com um Governo novo, ainda que na sequência do anterior, liderado pelo mesmo primeiro-ministro. Que recomendações é que faria? O que é que é preciso fazer em termos de políticas para desenvolvimento?
Portugal tem uma estratégia de cooperação para o desenvolvimento relativamente recente e que vai até 2030. (...) Uma estratégia que tem como prioridade justamente os países parceiros da cooperação portuguesa que são os países de língua oficial portuguesa. Tem a igualdade de género e as questões do ambiente como prioridades transversais e tendo também a questão da ajuda pública ao desenvolvimento, como uma meta com um calendário previsível para que em 2030 Portugal possa cumprir os 0.7% do seu compromisso. Esta seria uma grande recomendação: apostar e continuar a reforçar a cooperação portuguesa também através do seu orçamento e da ajuda pública ao desenvolvimento para os países em desenvolvimento.
A Fundação Fé e Cooperação tem trabalho no terreno em Moçambique. O país continua a ser um caso complicado: a violência terrorista na província de Cabo Delgado já se alastrou para outras províncias do país. Isso afeta de alguma forma o vosso trabalho?
Sim, aquilo que afeta as pessoas afeta também o nosso trabalho. Nós não estamos na província de Cabo Delgado, estamos ali à volta, no Niassa, onde também já houve ataques terroristas e temo-nos debatido nos últimos anos com ações, juntamente com outras organizações católicas, de sensibilização para essa que é uma crise esquecida. Há muitas crises e muitos conflitos a nível mundial, que não são mediatizados e, por isso, não têm também tanto interesse da comunidade internacional. E a crise em Cabo Delgado é uma dessas crises. Nos últimos anos, trabalhámos para dar visibilidade ao que está a acontecer em Cabo Delgado, que é uma província onde é difícil trabalhar do ponto de vista da ação humanitária. Não é o nosso caso, mas aquilo que se vive em Cabo Delgado afeta as pessoas todas. Há milhares de deslocados, de famílias desfeitas por via da fuga aos ataques terroristas. Crianças que deixam de ir às escolas, já não conseguem, sobretudo meninas que não conseguem regressar à escola, mesmo estando nos campos de refugiados. É, de facto, uma crise humanitária que se vive em Cabo Delgado e que tem pouca atenção mediática da comunidade internacional e que nós nos últimos anos procurámos trazer também para a agenda pública.
Passemos então de um caso que tem pouca visibilidade mediática em termos globais para, provavelmente, aquele que tem mais visibilidade mediática, mas nem por isso se resolve. Como é que vê o que acontece em Gaza?
Aquilo que está a acontecer em Gaza é uma catástrofe humanitária que está aos olhos de toda a gente e que era preciso travar com aquilo que defendemos, que é o diálogo e a concertação, que é difícil porque é um conflito que tem raízes históricas antigas, que é complexo, mas aquilo a que assistimos é a uma violência desmedida e a consecutiva violação do direito internacional. É uma enorme crise humanitária. E é importante o multilateralismo (...) mas aquilo que era preciso travar já é a crise humanitária que está a acontecer em Gaza com as consequências e com a barbaridade a que todos nós assistimos diariamente nas televisões. É uma barbaridade o que está a acontecer e é preciso travá-la imediatamente.