Tracie Hall, professora na Universidade de Washington, liderou a maior associação de bibliotecas do mundo. De passagem por Lisboa, marcou presença no Festival 5L onde falou de desinformação, censura e democracia. À TSF, avisa para os perigos da Administração Trump nas bibliotecas e a cultura, enquanto "bens coletivos"
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Como foi ser a primeira mulher afroamericana a liderar a American Library Association, a maior e mais antiga associação de bibliotecas do mundo?
Ter a oportunidade de liderar a maior e mais antiga associação de bibliotecas do mundo foi um sentimento que não posso repetir. Foi maravilhoso e deu-me a oportunidade de trabalhar com alguns dos melhores bibliotecários e administradores de bibliotecas do país.
Qual foi o seu objetivo? Quem era o público que queria mais alcançar, a quem queria chegar?
Bem, acho que continuei a fazer o trabalho que sempre fiz na minha carreira. Quero sempre chegar a toda a gente, mas as pessoas a quem mais quero chegar são aquelas que são mais negligenciadas, aquelas que são mais mal servidas, aquelas cujas vozes são menos ouvidas ou cujas opiniões são menos solicitadas. Na verdade, quero sempre servir as pessoas que, ou a quem, por vezes, são ignoradas pelas nossas instituições. E para mim, na Associação Americana de Bibliotecas, na altura em que lá estive, queria realmente apoiar as pessoas que estavam encarceradas em prisões, cadeias e centros de detenção, que não tinham acesso a serviços bibliotecários ou que tinham um acesso limitado a livros enquanto estavam presas ou limitado acesso a serviços educativos, aprendizagem ou educação básica. Queria também apoiar as pessoas das comunidades rurais. Estas podem não ter muitas possibilidades de acesso à arte ou a ideias diferentes. Queria apoiar pessoas que pudessem viver com uma deficiência ou pessoas com crianças pequenas ou pessoas mais velhas que se pudessem sentir geograficamente isoladas ou simplesmente socialmente isoladas. Queria chegar à primeira geração de estudantes universitários que vão depender da biblioteca, talvez até mais do que os seus pares, porque precisam de todo o apoio possível para enfrentar esta nova coisa chamada faculdade e formar-se. Eu fui assim numa determinada altura. Por isso, essas são as pessoas que eu queria ter a certeza de que alcançava, o que era muito importante para mim.
Provavelmente, já deve ter coleccionado muitas histórias de pessoas que dizem: ‘ler isto ou aquilo ajudou a mudar a minha vida.’...
Sim. Oh sim, a toda a hora. A toda a hora. Mas lembro-me de uma dessas histórias.
Deve ser muito gratificante.
Sim é algo muito gratificante, sabes. Quero dizer, acho que todos nós já tivemos essa sensação de estar, de ter um momento transformador, quer seja na escola ou na biblioteca ou numa livraria ou apenas um momento transformador. Mas acho que uma das histórias que mais aprecio foi algo que não aconteceu necessariamente comigo mas com um utilizador, uma leitora da biblioteca. Já trabalhei na Biblioteca Pública de Seattle e lembro-me de estar algures na cidade e de uma mulher me ter identificado como a bibliotecária e eu ter dito que sim. Sabe, ela disse: “Uau!” Seattle tinha acabado de construir uma biblioteca novinha em folha. Eu já não estava lá e ela disse: "Sabe, o meu filho está no exército e eu costumava levá-lo àquela biblioteca, a antiga biblioteca, quando ele era criança. Quando construíram a biblioteca grande, ele foi destacado para fora do país, no Médio Oriente. Enviei-lhe uma fotografia da biblioteca nova concluída. E ele disse que quando a recebeu pelo correio, lá estava ele, sabe, a milhares de quilómetros de distância. Ele disse-me que começou a gritar quando abriu a carta e começou a correr. E alguns dos seus colegas soldados, porque estão habituados a que, por vezes, as pessoas não recebam boas notícias e gritem e corram como ele, correram atrás dele para ver o que era. E quando os viu todos atrás dele, ficou muito embaraçado porque estava a olhar para um recorte de jornal com esta nova biblioteca e ele disse que virava a fotografia para os camaradas e lhes mostrava que era - e dizia - “a minha biblioteca. Temos uma nova biblioteca”. E todos começaram a rir e a bater palmas”. Ela contou-me esse entusiasmo dele com aquela biblioteca que não podia visitar na altura, mas que esperava poder visitar em breve, e estava tão feliz. E ela contou-me a história. Comecei a sorrir porque acho que a biblioteca é algo que todos podemos ter. Não é preciso ter um dólar. Pode ser um contribuinte ou uma criança que ainda não paga impostos, ou pode ser um recém-chegado que vem visitar uma comunidade. Mas todos nós temos um sentido de propriedade colectiva quando se trata de uma biblioteca e penso que para mim é isso que é único e transformador numa biblioteca. Por isso, essa história não me sai da cabeça.
Acha que essa propriedade colectiva das bibliotecas pode estar em causa atualmente, em termos políticos?
Sem dúvida. Penso que a propriedade colectiva é algo que é contestado. Penso que a propriedade colectiva e o acesso às ideias é o medo que têm os tiranos e os oligarcas. Penso que a ideia de que as pessoas podem pensar livremente e formar as suas próprias opiniões é vista como problemática por aqueles que querem retirar-nos o poder e as liberdades civis. Percebe-se perfeitamente que as bibliotecas estão a ser ameaçadas. E que há muita coisa em jogo. Mas uma coisa que eu sei é que as bibliotecas são uma instituição orgânica criada por pessoas de todo o mundo. Em qualquer época em que uma sociedade se forma ou se conhece a si própria como sociedade, há um impulso para recolher e partilhar informação, para falar sobre o que aconteceu, o que está a acontecer e o que pode acontecer. Penso que as bibliotecas são uma forma de sobrevivência colectiva. E é por isso que criamos este repositório: para reunir, colecionar e partilhar as nossas histórias. Para mim, há qualquer coisa nisso que fala de um instinto de sobrevivência.
É verdade que em toda a rede de bibliotecas dos EUA, isto é, as bibliotecas nacionais, as bibliotecas estaduais, as bibliotecas públicas, provavelmente continuarão a fazer esse trabalho. Mas depois há bibliotecas muito importantes que pertencem a universidades e nós temos toda esta questão do não financiamento das universidades, especialmente aquelas que estão focadas nas políticas de Diversidade, Equidade e Inclusão. (DEI) e por aí fora. Estão a enfrentar perigos reais?
Estão a enfrentar perigos reais e temos de compreender a importância das bibliotecas académicas para o sucesso dos estudantes, certo? Temos tantos tipos diferentes de estudantes, especialmente estudantes que podem ser a primeira geração da sua família a ir para a universidade, e temos dados que dizem que, normalmente, os estudantes da primeira geração dependem da biblioteca académica ou universitária muito mais do que os seus pares, certo? Por isso, penso que, agora que estamos a ver esta mordaça ser colocada nas universidades em termos do que podem dizer e do discurso no campus, estamos a começar a ver bibliotecas universitárias, bibliotecas de campus a serem solicitadas a retirar dos seus sítios Web informações sobre libertação da escravatura ou sobre equidade racial ou sobre inclusão. E isso é problemático e perigoso, porque as universidades deviam ser o local onde o discurso é protegido, porque expõe dá visibilidade a estudantes que se vão tornar decisores políticos, que se vão tornar gestores ou trabalhadores de grandes sistemas e organizações. Devíamos expô-los a toda a gama de ideias e, quando lhes tiramos isso, reduzimos a sua oportunidade de imaginar, de ser criativos, de inovar e de ter empatia com os outros e, para mim, essa é uma das razões pelas quais acredito que estamos num estado de crise de informação; de facto, a nossa democracia está a enfrentar uma ameaça existencial.
Nao faz as coisas por menos, pensa mesmo que a democracia na America enfrenta uma ameaca existencial…
Sempre que vemos o nível de censura patrocinada pelo Estado, não só nos EUA mas em qualquer lugar, estamos a assistir ao desmantelamento das nossas instituições fundamentais, do nosso Departamento de Educação; grande parte do nosso ensino público está subfinanciado. Estamos a assistir agora ao desmantelamento do National Endowment for the Arts e do National Endowment for Humanities, que apoiam artistas e pensadores. Acabámos de assistir ao desmantelamento do Instituto de Serviços de Museus e Bibliotecas, que protege as bibliotecas públicas e os museus e são o principal ponto de venda de livros e de acesso à arte. E ainda ontem o que vimos do Presidente Trump foi ele dizer que era contra a Internet de alta velocidade! Diz que está a ser fornecida a comunidades de baixos rendimentos que, de outra forma, não a poderiam pagar. Estamos numa era em que o acesso à educação, o acesso ao emprego e, em muitos casos, o acesso à saúde pública, tudo é intermediado. E em tudo é preciso ter acesso à Internet e ter acesso ilimitado. Como é que ele pode dizer isso? Não acredita que o acesso à Internet de alta velocidade para pessoas de baixa renda é constitucional. Isso, para mim, é um sinal de que a nossa democracia está em perigo, porque a nossa democracia assenta na oportunidade de procurar a felicidade. De perseguir uma vida plena e livre, e isso está a ser comprometido.
Qual é a sua biblioteca favorita?
Há tantas bibliotecas! Eu sou uma dessas pessoas que… Quando vou de férias, visito sempre uma biblioteca e diria que todos os anos muda sempre que vejo uma nova biblioteca. Mas neste momento há uma biblioteca em Oslo, na Noruega, que… aquilo que me chama a atenção é que, quando entramos, dão-nos a oportunidade de colocar o telemóvel numa bolsa para que possamos ler e vaguear sem ter de ir ao telemóvel a cada poucos minutos. E como sabemos, o telemóvel mudou a nossa vida. Mudou a forma como lemos. Mudou a nossa capacidade de atenção, tudo isso. Por isso, estar num espaço que se declara imersivo, adoro.
Há algum perigo para os livros em papel?
Eu diria que sim. O que vemos é que as pessoas continuam a recorrer às bibliotecas para obter materiais impressos, mas sabemos perfeitamente que não estamos a ler tanto como antes, nem em formato longo, nem em livros. Não estamos a ler tanto porque estamos a ler livros curtos e estamos definitivamente a assistir a grandes mudanças nos nossos hábitos de leitura, não estamos a ler tão imersivamente. Quando lemos, muitas vezes mudamos a direção em que estamos a ler. Normalmente, leríamos, dependendo da nossa cultura, da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda, mas porque a maior parte da nossa informação, agora, é lida na Internet, obtida a partir da Internet e a maior parte dela é obtida a partir dos nossos telemóveis, na verdade, estamos a mudar a direção da nossa leitura. Agora estamos a ler de cima para baixo, e alguns diriam que agora estamos a ler de baixo para cima, porque estamos apenas interessados em folhear para cima e, por vezes, isso significa que estamos a ler a frase inicial, nem sequer o parágrafo completo. E depois o resumo, e perdemos toda a substância no meio. Por isso, quando se trata de informação, estamos a engolir em vez de mastigar a informação. É por isso que a leitura de livros, quer sejam electrónicos ou impressos, é importante para nós, porque lemos de forma longa, de forma mais imersiva e somos capazes de ler com um pouco mais de discernimento.
Não sei se é religiosa ou mesmo católico, mas como é que é ter um Papa nascido nos EUA ?
E vindo de Chicago! E como é ter um Papa cuja mãe era bibliotecária numa escola? Então, estamos a celebrar o Papa Leão, o 14º, a mãe Mildred, era bibliotecária numa escola secundária. Ela era bibliotecária em pelo menos três escolas católicas. Pela pesquisa que fiz, espero que esteja correto, estamos entusiasmados porque agora temos um Papa que compreende que o ketchup não deve ser colocado nos nossos cachorros, o que faz parte do facto de, em Chicago, não colocarmos ketchup, apenas mostarda e condimentos nos cachorros quentes. Mas também temos um Papa que foi criado na classe trabalhadora e, esperemos, um Papa que deixa que as pessoas livres leiam livremente. É esse o lema da Associação Americana de Bibliotecas. A liberdade de ler é um fundamento. E porque a sua mãe era bibliotecária, espero que o Papa seja alguém que valorize as bibliotecas e os valores associados, como o livre acesso às ideias.
Já alguma vez leu algum autor português?
Ohh wow, agora estou a tentar pensar nos vários autores portugueses. Há muitos poetas que li e que foram traduzidos para inglês. Penso que há pessoas como John Kane, o grande poeta, que faz muitas traduções de poetas portugueses. E só a lírica, só a lírica, só de estar aqui agora em Lisboa e ver parques e espaços públicos onde estão alguns dos vossos poetas, bustos dos vossos poetas e estátuas dos vossos poetas, faz-me sentir que estou no sítio certo, porque adoro poesia. É uma das minhas formas favoritas de literatura e acho que o português se presta muito bem para a poesia, claro que sim.
Tem algum poeta preferido?
Oh, tantos poetas preferidos? Nikky Finney é, sem dúvida, uma das minhas poetas preferidas. Borges é um dos meus poetas preferidos. Wole Soyinka é um dos meus poetas favoritos. Claro que Neruda é um dos meus preferidos. Está no meu top 3. É o meu Monte Olimpo, sabes? Mas tenho tendência para gostar de poetas que são capazes de fazer poesia a partir da vida quotidiana.