Com mais de 100.000 desaparecidos, enterrados em valas comuns por todo o país, Espanha continua a ser uma sociedade muito polarizada.
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Em plena Gran Vía, uma das avenidas mais concorridas do centro de Madrid, o edifício Telefónica guarda ainda as marcas da Guerra Civil. Foi o primeiro arranha-céus de Madrid e um dos mais bombardeados durante o conflito. Se olharmos com atenção para a parte baixa do edifício, ainda se veem as marcas dos impactos.
É uma história desconhecida para a maioria dos madrilenos e que Luis de Sobrón y Enrique Bordes, arquitetos e professores universitários, quiseram tirar do baú nos 80 anos do fim da guerra. Desenharam então o primeiro mapa deste Madrid bombardeado para mostrar uma cidade cheia de cicatrizes.
"Era uma página da história de Madrid por escrever. Ao bando vencedor não lhe convinha fazer propaganda da destruição da cidade, preferiam ter Madrid como a cidade da vitória e, depois do final da guerra e já na ditadura, estes acontecimentos foram silenciados dentro de uma lógica de repressão", conta Luis de Sobrón.
Madrid foi uma das cidades mais sacrificadas por dois tipos de bombardeamentos. Uns que respondiam a uma estratégia militar, devido à proximidade de algumas zonas da cidade com o frente da guerra, e outros que se destinavam a "amedrontar a população, para a desmoralizar".
No caso do edifício Telefónica, além de "ser o mais alto e portanto um alvo fácil, tratava-se de um observatório militar e o centro de telecomunicações da cidade, o que fazia dele um objetivo importante".
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"Voltámos à dicotomia amigo/inimigo"
Oitenta anos depois, este mapa ajuda a perceber a dimensão dos ataques à capital espanhola, um capítulo essencial na narrativa do conflito. "A história da guerra civil é terrível, mas escondê-la não serve de nada. A forma de recuperar de uma tragédia é encará-la de frente. O caminho para fechar as feridas passa por limpá-las, dá-las a conhecer e assumi-las com naturalidade".
São feridas que passaram das fachadas dos edifícios para a sociedade espanhola, onde a guerra civil é ainda motivo de divisão. Rafael Escudero, professor de Filosofia do Direito e especialista em memória histórica, diz que Espanha está longe de fazer as pazes com o seu passado.
"Ainda hoje vemos como certos valores que deram lugar à guerra e à ditadura, ditos publicamente de forma terrível. Temos partidos políticos que defendem posições de extrema-direita, herdeiras dos que venceram essa guerra e fizeram a ditadura. Isto é uma demonstração de que ainda há muitas sequelas", analisa.
Em plena campanha eleitoral para as legislativas de 28 de abril, com um panorama político onde emerge com força, pela primeira vez, um partido de extrema-direita - o Vox -, os discursos dos partidos mais conservadores ressuscitaram esta polarização.
"Voltámos à dicotomia amigo/inimigo. Parece que somos espanhóis ou anti-espanhóis, patriotas ou anti-patriotas, pessoas de bem ou anti-espanhóis... Recorde-se que, para o franquismo, os republicanos representavam a anti-Espanha", explica Escudero.
"Faltou vontade política"
Oitenta anos depois do fim da guerra, ainda há mais de 100.000 desaparecidos. Mortos enterrados em valas comuns por todo o país, cujas famílias lutam, há anos, pelo direito a uma sepultura digna. A lei de memória histórica, implementada em 2007 e que condenava pela primeira vez o franquismo de maneira explícita, foi um passo de gigante mas ficou aquém daquilo que as vítimas precisavam.
"A ONU é clara: o Estado espanhol não cumpre os direitos humanos no que diz respeito ao direito à verdade, justiça e reparação das vítimas. No meu ponto de vista, não podemos falar de uma democracia se não incluirmos nela o respeito pelos direito e pela legislação internacional", refere. "Faltou sempre vontade política", sintetiza Escudero.
A guerra civil é, em Espanha, quase um tabu. E quando se tocam temas sensíveis como os desaparecidos ou o recente debate sobre a exumação do ditador, Francisco Franco, de um lugar público de culto, como é o Vale dos Caídos, as críticas aparecem. Que são coisas do passado, que não vale a pena abrir velhas feridas. Mas a memória de um povo, diz Escudero, não pode ser refém de uma história mal contada.
"Eu sou um fiel defensor das políticas de educação que atualmente não existem nas escolas e nas universidades. Faz falta ter um conhecimento real do que aconteceu, que a guerra foi provocada por um golpe de Estado, de que não foi uma guerra entre dois bandos, mas sim uma sublevação militar contra um regime estabelecido legalmente".
Conhecer os factos e reparar as vítimas. São os primeiros passos para apaziguar um país em eterno conflito com a sua história e com cicatrizes tão profundas que persistem 80 anos depois.