A luta de um indígena para ser prefeito no Brasil. "O cacique Marcos é uma afronta às oligarquias políticas"
Foi eleito prefeito, mas não pode cumprir mandato. Em 2003, o cacique Marcos, líder indígena, foi alvo de um atentado e acabou condenado a mais de dez anos de prisão. O acontecimento ameaça torná-lo inelegível, mas a luta nos tribunais eleitorais do país só agora começou. À TSF, conta ter um projeto para o país, assente no respeito pela "diversidade".
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Pesqueira, no agreste do estado de Pernambuco, a pouco mais de 200 km de Recife, é um município no centro de uma região semiárida, com biomas de preservação e matas nativas na serra Ororubá. A área onde vive o povo xukuru é mais verde do que as circundantes, garante o cacique Marcos, líder da comunidade indígena da região.
Marcos Luidson de Araújo, de 42 anos, é o cacique da "nação xukuru", uma população de pelo menos 12 mil pessoas, distribuídas por 24 aldeias, um território de 27.555 hectares. A 15 de novembro de 2020, saiu vitorioso das eleições que o tornariam o primeiro indígena prefeito de Pesqueira. Na principal praça do município, os populares concentraram-se para festejar os 51,6% dos votos - contra os 45,48% de Maria José - de "Marquinhos Xukuru".
Depois de o pai, cacique Chicão, ter sido assassinado em 1998, a vitória prometia abrir um novo capítulo para a comunidade indígena xukuru, mas um episódio, que remonta a 2003, ameaça impugnar a eleição. "No dia 7 de fevereiro de 2003, eu sofri um atentado em que morreram dois jovens, um com 22 e outro com 24 anos. Isso gerou uma revolta dentro da comunidade." Marcos Luidson conta à TSF o que aconteceu no dia em que tudo mudou.
"O cacique Marcos, naquele momento, fugiu para outra localidade. As pessoas não sabiam onde eu me encontrava. Os populares indígenas iam chegando e vendo aquela cena de dois jovens mortos e não sabiam onde o seu cacique se encontrava. As informações que surgiam eram de que eu tinha sido sequestrado por aquele grupo." A organização sociopolítica, fragilizada, não conseguiu estancar a revolta dos populares, que queimaram casas e carros de "um grupo que tinha relação com o acontecimento".
Nesse momento, rememora o cacique Marcos, passa "de vítima a réu neste processo". Indiciado pelo crime de incêndio e condenado a dez anos e quatro meses de prisão, o líder indígena passou anos a lutar para garantir que os mais de 30 processados não fossem presos. Todos reduziram as penas e cumpriram-nas ao serviço da comunidade, sem um único dia de clausura. "Foi uma luta judicial enorme, não só para mim: mais 35 pessoas foram indiciadas e condenadas pela Justiça Federal", garante.
"Eu não estava no local. Eu sofri o atentado, fugi para dentro do mato. Voltei uma hora depois, fui levado ao hospital, e, do hospital, levado até casa de minha mãe." No entanto, o cacique não foi poupado nas acusações de que tinha "incitado os populares a fazer a queima" das casas. "As denúncias que faziam eram: 'eu acredito que foi o cacique Marcos que mandou', 'acredito que ele estava lá', 'eu ouvi dizer que ele estava lá'. Nunca houve uma prova concreta de absolutamente nada. Mesmo as nossas testemunhas dizendo que eu estava noutro lugar, e apresentando provas, isso não foi levado em consideração."
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Quando o cacique Marcos se tornou o primeiro indígena eleito prefeito em Pesqueira, a candidata da oposição socorreu-se da Lei da Ficha Limpa, que preconiza serem "inelegíveis os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento da pena".
A contagem de tempo da Lei da Ficha Limpa tem sido alvo de discussão. Marcos Luidson de Araújo aguarda as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, mas confessa estar tranquilo. Por altura da conversa com a TSF, o cacique conseguiu eleger um prefeito interino alinhado com o projeto político que defende.
"Acredito que já fizemos História. Não vou desistir, porque acredito que é uma missão. Se tiver de dar a minha vida, estou pronto." O republicano diz já ter vencido o tabu ao vencer nas urnas e ao ter-se tornado o primeiro cacique eleito prefeito no Brasil, mas também reconhece que fica um gosto amargo na boca, que advém de compreender que a oposição à vitória seja "consequência da perseguição e criminalização política que os indígenas sofrem".
O povo escolheu eleger para o espaço de poder ocupado há mais de 30 anos pelo mesmo partido porque "enxergam" a possibilidade de um novo momento, garante o cacique Marcos. "Um indígena assumir uma cidade como Pesqueira, a cidade ser assumida por um indígena, um filho natural da sua terra, que é a terra ancestral do povo e que foi invadida há mais de 500 anos, é uma afronta tamanha."
Cinco séculos de perseguições e disputa pelo território
"Assumi a liderança muito jovem. O povo xukuru está numa trajetória de luta e de recuperação deste território há muitos anos, há mais de 500 anos, pela permanência, fisicamente falando, nesta região." Esta é a narrativa dos indígenas no Brasil, fundamenta o cacique Marcos, que acredita que a celeuma em Pesqueira "vai além das fronteiras do município".
Em 1500, quando os portugueses chegaram ao Brasil, a terra que pertencia aos povos indígenas foi invadida, e a evangelização obrigou a que os rituais da toré passassem de pais para filhos. Os indígenas mantiveram uma forte ligação com a ancestralidade, de forma a conectarem-se "com outro mundo cósmico".
"Com todo o processo de colonização e de invasão, para que não fosse perseguido, assassinado e dizimado totalmente, o povo xukuru começa a praticar os seus rituais de forma escondida, à noite, de madrugada, porque eram condenados pela Igreja", lembra o líder.
Séculos mais tarde, em 1936, uma lenda local, de que duas meninas que saíram para colher mamonas teriam visto a Nossa Senhora das Graças no alto da serra Ororubá, tornou Pesqueira destino de turismo religioso, e a comunidade xukuru teve de se mobilizar. "O povo xukuru teve uma grande participação para garantir que houvesse uma participação indígena, garantindo que a legislação pudesse contemplar minimamente a diversidade que existe no nosso país. O cacique Chicão, meu pai, e o nosso líder religioso começaram a envolver outras pessoas, e começa ali a grande mobilização pela recuperação do território."
"Os nossos irmãos indígenas no Brasil sofrem muito ainda para implementar e regularizar estas questões da demarcação de territórios. São anos de luta, com algumas terras a serem disputadas no Supremo Tribunal Federal e a começarem a ser judicializadas, porque os nossos adversários, ocupantes da terra indígena, começaram a tentar entrar por outras vias para inviabilizar o processo."
O cacique Marcos tem um sonho para o Brasil: que seja reconhecido como um "país pluriétnico e pluricultural", em que os indígenas tenham "direito ao território demarcado, homologado, direito à saúde, específico e diferenciado, à educação, ao próprio modo de vida, em termos de agricultura familiar e de relação com a nossa mãe-Terra, com a natureza sagrada".
Após "anos e anos nos tribunais", que causaram "muito sofrimento" ao povo xukuru, num "processo de mobilização, de pressão política e de reconquista dos espaços", com "vários assassinatos de pessoas da lideranças ", mantêm-se os défices de saneamento básico, saúde e educação nas povoações, e o cacique quer garantir que não haja um retrocesso. A verdade é que a administração Bolsonaro tem sido uma oposição à altura dos colonizadores, assegura o líder xukuru.
"A cada dia o Parlamento e os nossos governantes tentam desconstruir o que nós garantimos constitucionalmente. Desde o início deste Governo, precisamos de estar constantemente mobilizados, não só no aspeto da demarcação do território, como na questão ambiental." O agronegócio e os empreendimentos estão nas mãos dos grupos de poder que há anos oferecem resistência à forma de viver do povo indígena, agora com mais força e validade política. "As pessoas vão entrando, provocando queimadas. É uma pressão muito grande..."
"Uma ameaça às oligarquias políticas"
Nas primeiras sondagens, o nome de cacique Marcos já aparecia à frente nos índices de aceitação popular e nada previa um pedido de impugnação de candidatura. "Nós registámos a nossa candidatura, procurámos todas as entidades e tirámos todas as certidões. Em nada constava que estava inapto para as eleições, mesmo na Justiça Federal."
Marcos Luidson de Araújo não tem dúvidas de que "há uma perseguição política de um indígena", até porque o episódio que o compromete foi um atentado que o tinha na mira. "O cacique Marcos, que também sofreu um atentado, em que morreram dois jovens, é uma afronta às oligarquias políticas, que, no nosso município, tiveram o comando por muitos anos", argumenta.
Os que oferecem resistência, diz, são os grupos que sempre detiveram o poder económico e político na região. "Coloquei-me à disposição da população pesqueirense para disputar um cargo aqui, no nosso município. Os mesmos que eram ocupantes do território indígena e que saíram mediante toda esta luta e trajetória estão na cidade. Temos as mesmas pessoas ocupando os espaços de poder. Onde existem grandes riquezas há muitas pessoas passando fome."
Apesar de a "alta sociedade, que estuda nas melhores escolas e universidades e que tem outras regalias, continuar a ter esse poder", uma vitória já foi garantida, defende o líder brasileiro, que diz estar tranquilo com o processo e com o futuro. "O cacique Marcos saiu das cinzas, da serra, da aldeia, e hoje foi eleito prefeito de Pesqueira. Não vou desistir, porque acredito que é uma missão. Se tiver de dar a minha vida, estou pronto."
